26 Março 2014
No sábado, o Papa Francisco nomeou oito pessoas com boa reputação como reformadores na luta contra o abuso sexual de crianças como membros de uma nova "Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores", uma lista que inclui o padre jesuíta alemão Hans Zollner, que está há muito tempo na linha de frente dos esforços de recuperação da Igreja.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no jornal The Boston Globe, 24-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nascido na cidade bávara de Regensburg, mais ou menos a cidade natal do Papa Bento XVI, Zollner atua como vice-reitor acadêmico da universidade jesuíta Gregoriana, em Roma, e diretor do seu Instituto de Psicologia. É formado em filosofia e teologia, e obteve a licença de psicólogo e psicoterapeuta em 2004.
Em 2010 e 2011, ele atuou como membro do grupo de trabalho científico da "Mesa Redonda sobre Abuso Infantil", criado pelo governo federal da Alemanha. Zollner estudou profundamente a dura história da Igreja em relação ao tema dos abusos, publicando em 2010 o livro The Church and Pedophilia, An Open Wound: A Psychological and Pastoral Approach [A Igreja e a pedofilia, uma ferida aberta: uma abordagem psicológica e pastoral], junto com o colega jesuíta Giovanni Cucci.
Em 2012, Zollner foi presidente do comitê organizador de uma grande cúpula internacional sobre a crise dos abusos sexuais, realizada na Gregoriana e copromovida por vários departamentos vaticanos. Dentre outras coisas, essa cúpula marcou o lançamento de um Centro de Proteção à Criança e de um curso à distância para profissionais da Igreja, voltado a promover "boas práticas" na prevenção dos abusos, detectando-os quando ocorram, respondendo a eles em termos do direito civil e canônico, e indo ao encontro das vítimas.
Zollner falou com o jornal The Boston Globe no dia 22 de março sobre a nova comissão antiabusos do Vaticano.
Eis a entrevista.
Qual é a importância dessa comissão?
É claro que o Santo Padre quer seguir em frente, de modo que as coisas estão em um estágio em que podemos avançar. Quando você lê o anúncio, a nossa primeira tarefa será ajudar a Santa Sé a encontrar outras pessoas que possam ser envolvidas, assim como estabelecer estatutos para a comissão e desenvolver um plano de ação.
É um bom sinal o fato de o Papa Francisco estar pessoalmente engajado?
Claro, com certeza.
O que você acha da lista de membros?
Há um bom número de mulheres e também há uma vítima. Isso é extremamente significativo, porque significa que a voz de uma vítima será ouvida diretamente, em vez de ser filtrada por meio de outra pessoa. Há também uma boa mistura de especialidades, com especialistas em direito canônico, diversos tipos de psiquiatria e psicologia, e teologia moral.
Temos o nível político de representação com Hanna Suchocka, temos a experiência em dinâmicas familiares e incesto com Catherine Bonnet, e temos intuições sobre o abuso entre os grupos vulneráveis com Sheila Hollins, que é uma especialista em abusos de pessoas com deficiência. Por enquanto, apenas as Américas e a Europa estão representadas, embora, com Hanna Suchocka, ao menos temos alguém da Europa Oriental. Acho que isso se deve principalmente ao fato de facilitar que esse primeiro grupo se reúna. Muito em breve, eu imagino que estaremos tentando somar pessoas de outros países e continentes.
Quantas pessoas você acha que acabarão compondo a comissão?
Essa é uma das coisas que temos que discutir, e existem diferentes modelos. Dadas as questões gerais estabelecidas pelo comunicado vaticano, podemos imaginar um pequeno grupo, talvez 15 pessoas ou mais, trabalhando com uma rede mais ampla de assessores e especialistas em áreas específicas.
Ao nomear você, o papa provavelmente quer que a experiência da conferência "Rumo à cura e à renovação", que você organizou em 2012, faça parte da base do trabalho da comissão. Que lições você aprendeu?
Acima de tudo, é preciso que haja um compromisso inabalável de pôr as vítimas em primeiro lugar. A Igreja também tem que fazer tudo o que for do seu poder e da sua capacidade para evitar futuros abusos. Do meu ponto de vista, é claro que essa comissão não é um órgão legislativo e não vai tirar autoridade de nenhum departamento vaticano existente. Ela foi concebida para auxiliar o trabalho da Santa Sé e para fomentar discussões em várias partes do mundo. Essa é outra razão pela qual eu acho que o papa quis nomear ao menos alguns membros de fora da Europa, por exemplo alguém da América Latina, porque a Igreja tem que lidar com essa questão em um escopo mais amplo. Temos que ter certeza de que esse tema está no topo da lista de prioridades em todas as partes do mundo.
O que significa lidar com a questão dos abusos sexuais de uma forma global?
Por um lado, os norte-americanos e europeus têm que perceber que não só as sensibilidades culturais diferem de uma região ou continente para outro, mas também os sistemas jurídicos. Eu acho que há um erro comum em muitas declarações norte-americanas ao pressupor que o sistema jurídico norte-americano se aplica para todas as partes do mundo, o que simplesmente não é verdade.
Para dar um exemplo, eu li várias vezes em muitos comentários norte-americanos que deve haver um dever absoluto de denunciar os abusos à polícia. O fato é que essa exigência não existe em mais da metade dos países do mundo, e pode haver boas razões para isso. Na Alemanha, o ex-ministro da Justiça sugeriu tal exigência e foi contestado tanto pelas vítimas de abuso, quanto pelas organizações de psicoterapeutas, que estavam preocupados não só em proteger a confidencialidade, mas também o risco de retraumatização. Precisamos ouvir o que as vítimas pensam, em vez de impor as nossas soluções.
Às vezes, diz-se que os esforços antiabusos da Igreja estão muito avançados em lugares como Europa e a América do Norte, onde os escândalos foram mais intensos, enquanto o resto do mundo católico fica para trás. Isso ainda é verdade?
Isso não é verdade em todos os lugares. Muitas conferências episcopais na África de língua inglesa, por exemplo, têm feito um bom trabalho e hoje estão significativamente à frente de outras instituições sociais e até mesmo do Estado. O Quênia é um bom exemplo. A mesma coisa vale para partes da Ásia, onde as Filipinas têm agora uma boa prevenção e programas educacionais em ação.
Dito isso, acho que essa vai ser uma preocupação para a comissão, para ajudar as conferências episcopais e outros grupos católicos a fazer disso uma prioridade, desenvolvendo diretrizes fortes e realmente as implementando. A situação é bastante diferente de um país para outro, porque há diferentes sensibilidades e formas de abordar o problema. É importante para os ocidentais, que têm lidado com esse tema há décadas, não pensar que nós temos a única abordagem possível.
Nós realmente temos que ouvir, assim como as pessoas em áreas que não lidaram muito com essa questão precisam ouvir as nossas experiências. Deve-se tratar de uma escuta mútua. Se fizermos isso, talvez algo maravilhoso pode resultar daí, como o fato de a Igreja Católica se tornar uma líder mundial na proteção das crianças, como já acontece em alguns países.
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''É preciso pôr as vítimas em primeiro lugar''. Entrevista com Hans Zollner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU