Por: André e Jonas | 11 Fevereiro 2014
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia. Para as análises eclesiais conta-se também com a contribuição de André Langer, que realiza traduções diárias para o sítio do IHU.
Índice
Renúncia de Bento XVI – encerramento de um ciclo de ‘revisão’ do Concílio Vaticano II?
Um ano da renúncia do Papa Bento XVI
Do “edifício novo” a “um edifício de cimento armado sem janelas”
A involução começa logo depois do Concílio
A hermenêutica ratzingeriana do Concílio Vaticano II
Caminho aplainado para um novo Concílio?
Conjuntura da Semana em frases
Eis a conjuntura.
No dia 11 de fevereiro de 2013, há um ano, o mundo foi surpreendido por uma notícia que demorou para ser digerida: a renúncia do Papa Bento XVI. Passado um ano, começa-se a perceber a amplitude daquele gesto profético e providencial. Retomamos, nesta conjuntura, o tema, com vistas a refletir sobre duas questões, importantes para um debate sobre o presente e o futuro da Igreja: com a renúncia de Bento XVI, encerra-se um ciclo de várias décadas de ‘revisão’ do Concílio Ecumênico Vaticano II? O pontificado de Francisco estaria preparando, de forma remota, as bases para um novo concílio?
Com vistas a jogar luz sobre estas questões, propomos a presente análise. Boa leitura!
Um ano da renúncia do Papa Bento XVI
Atualmente, uma onda de otimismo e de esperança parece ter tomado conta do mundo eclesial; contudo, ainda estão muito frescas na memória de todas e todos as constantes crises vivenciadas pela Igreja católica, que faziam com que a mesma se tornasse uma vitrine a ser estilhaçada pelas verborragias de agências de comunicação sedentas de informações sensacionalistas e pouco refletidas. Além disso, também é muito recente a carga de cansaço e pessimismo, recorrentemente presente nas análises de teólogos, pastoralistas e especialistas em Igreja. Diante da atual conjuntura eclesial, é difícil pensar que há um ano a situação era totalmente oposta.
Tudo começou a mudar em razão de uma decisão histórica e fundamental para uma nova perspectiva à vida da Igreja: a renúncia de Bento XVI. Quando, no dia 11 de fevereiro, o atual papa emérito anunciou a sua decisão de renunciar, ainda que, novamente, grandes meios de comunicação continuassem a espalhar suas análises rasteiras, aos poucos, o significado e as consequências do gesto de renúncia começaram a ser mais bem analisados, tornando-se um momento de grande aprendizado eclesial e de um rico debate sobre a natureza da instituição eclesial e do papado.
Em razão desse acontecimento, no dia 03 de março de 2013, publicamos uma análise da conjuntura intitulada “Bento XVI. As primeiras avaliações de um pontificado”, uma compilação do rico material (artigos, entrevistas e reportagens) publicado pelo IHU.
A magnitude do gesto de Ratzinger era tamanha, que a própria concepção de papado, já cristalizada em nossas mentes, foi posta em xeque. A renúncia escancarou que o papado não se trata de uma posse pessoal, mas, sim, de um serviço à Igreja, que deve ser desempenhado dentro de condições favoráveis, sejam elas físicas, psíquicas ou espirituais. Quem não se lembra da própria mensagem de Bento XVI? “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino”.
Tratou-se de um verdadeiro gesto de humildade, que não passou despercebido nas análises mais consequentes daquele momento. O teólogo Hans Küng, grande crítico do pontificado de Bento XVI, considerou surpreendente, legítima, compreensível, corajosa e revolucionária a decisão da renúncia. E o sociólogo Zygmunt Bauman avaliou a dimensão humana desse gesto, pois Ratzinger não hesitou em demonstrar que mesmo sendo papa possuía os seus limites. O papado passa a ser visto, então, em seu nível humano.
Já o jornalista Marco Politi enfatizou que essa decisão significou o fim da tradição vitalícia para o papado. Ao passo que o especialista em catolicismo, Philippe Levillain, concluiu que a partir daquele momento passou a existir um antes e um depois de Bento XVI, sendo a decisão uma verdadeira modernidade para a Igreja.
A força da renúncia de Bento XVI também respinga nos poderes laicos. Na opinião do filósofo Giorgio Agamben, trata-se de uma oportunidade para que os poderes se interroguem novamente sobre sua própria legitimidade, uma vez que “esse homem, que estava à frente da instituição que exibe o mais antigo e significativo título de legitimidade, revogou em questão, com o seu gesto, o próprio sentido desse título”. Uma verdadeira lição interna, para uma Cúria muito preocupada com o poder temporal e bastante esquecida do poder espiritual, além de ser um exemplo para todos os que concentram o poder político.
Não é o caso de pormenorizar elementos de nossa análise de conjuntura especial para aquele momento, mas cabe apenas citar os principais pontos que foram considerados nevrálgicos no governo de Bento XVI: o duro combate aos abusos sexuais cometidos pelo clero, a polêmica tentativa de reaproximação dos lefebvrianos, a reforma litúrgica e as incessantes intrigas curiais, com a quebra de confiança a partir dos vazamentos de documentos.
Além desses aspectos que tocam a dimensão pastoral e a do zelo com a instituição eclesial, seu pontificado também foi a continuidade do anterior (de João Paulo II) em sua tendência ao centralismo e à disciplina, ficando relegadas para segundo plano as potencialidades de uma Igreja mais colegial e de maior abertura e diálogo com o mundo.
Por isso, sua renúncia é surpreendente, pois nada houve de tão moderno como essa decisão. Surpreendentemente, tal decisão veio de um pontificado pouco marcado por gestos de modernidade. Eis as peripécias da história.
Do “edifício novo” a “um edifício de cimento armado sem janelas”
A renúncia de Bento XVI coloca uma pergunta da qual dificilmente se pode fugir: com sua renúncia, e, consequentemente, com a eleição do Papa Francisco, encerra-se um ciclo de várias décadas de ‘revisão’ do Concílio Ecumênico Vaticano II? Ou, com outras palavras, terá chegado ao fim o tempo da “volta à grande disciplina”, como prognosticava já em 1983 o teólogo João Batista Libanio, recentemente falecido, ao analisar a conjuntura da Igreja?
O Concílio Vaticano II significou uma grande abertura na Igreja e desta com o mundo. Mais importante do que as reformas individuais – muitas delas necessitariam hoje de uma nova atualização, por isso a perguntam que algum se fazem sobre a necessidade ou a conveniência de um novo concílio – é o clima radicalmente diferente que o concílio trouxe à Igreja. Referindo-se àquele tempo, o cardeal Carlo Maria Martini declarou: "Guardo a recordação da atmosfera daqueles anos, uma sensação de entusiasmo, de alegria e de abertura. Finalmente saía-se de uma atmosfera que cheirava um pouco de mofo, de bolor, e se abriam portas e janelas, circulava o ar fresco". É justamente isso que estava na mente de João XXIII, quando instava a Igreja a abrir as janelas para que "possamos olhar para fora, e para que as pessoas possam olhar para dentro".
Em 1961, entre o anúncio do Concílio e o seu efetivo início, João XXIII, em um discurso, pautou o que esperava do mesmo: “O concílio pretende construir ‘um edifício novo’ sobre os fundamentos colocados no curso da história... dilatará as dimensões da caridade às diversas necessidades dos povos e lhes proporá de modo claro a mensagem de Cristo”.
Mas, passados 50 anos do início do concílio, onde estamos? Novamente, o cardeal Martini responde: "O que se perdeu foi precisamente aquele entusiasmo, aquela confiança, aquela capacidade de sonhar. Voltamos a uma certa mediocridade". O ar, enfim, novamente tornou-se pesado. E na última entrevista sua, Martini lamenta: “A Igreja ficou 200 anos para trás”.
Aquele entusiasmo inicial cedeu lugar ao cansaço e ao medo. “A Igreja está cansada na Europa do bem-estar e na América. A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes, as nossas casas religiosas estão vazias, e o aparato burocrático da Igreja aumenta, os nossos ritos e os nossos hábitos são pomposos. Essas coisas expressam o que nós somos hoje?”, pergunta-se na mesma entrevista. “Como é possível que ela não se sacuda? Temos medo? Medo ao invés de coragem?”
Medo tantas e tantas vezes denunciado nas últimas décadas e que tomou múltiplas formas, paralisando, de certa forma, o espírito criativo na Igreja. Imposto por uma disciplina que incutiu medo e silêncio em bispos, sacerdotes, teólogos e leigos. A corresponsabilidade, a colegialidade, a multiformidade cedeu lugar ao centralismo, ao servilismo e ao “pensamento único” dentro da Igreja. O sonho de um “edifício novo”, de João XXIII, com portas e janelas bem amplas, na verdade cedeu lugar a um projeto arquitetônico estranho: “um edifício de cimento armado sem janelas”, na linguagem de Bento XVI. E o vento de ar puro foi gradativamente aprisionado.
A involução começa logo depois do Concílio
A abertura proporcionada pelo Concílio Vaticano II só foi possível porque houve uma maioria de bispos progressistas que conseguiu quebrar a espinha dorsal da cúria romana, que desejava um concílio rápido e sem grandes mudanças, dando, desta maneira as costas aos clamores de mudança que vinham de todos os lados. Mas o lacre curial foi rompido...
No entanto, desde cedo o grupo mais conservador, mas influente, foi ganhando força até tornar-se, 50 anos depois, majoritário. “À distância de meio século, a minoria de então tornou-se a maioria de hoje, sinal de uma mudança abrangente em nível mundial, com tempos cada vez mais incapazes de alimentar ideais e cultivar esperanças”, avalia o teólogo italiano Vito Mancuso.
Vito Mancuso, na esteira de Martini, situa na publicação da Encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, publicada em 1968, o começo do “fim da renovação conciliar”. Já como Papa, durante o Concílio, retirou da discussão dos padres conciliares a temática da sexualidade e assumiu a responsabilidade de forma pessoal e solitária. Preocupado em manter a unidade da Igreja, Paulo VI foi ‘conservador’ ao seguir um “caminho de uma interpretação estrita. Não quis que surgissem dúvidas neste campo” (Martini, Diálogos noturnos em Jerusalém. São Paulo: Paulus, p. 118).
Vista no longo prazo, avalia Martini, a publicação de forma “solitária” da Humanae Vitae “não foi favorável para o tratamento do tema da sexualidade e da família”, lembra. E o ex-cardeal de Milão tributa na conta da Humanae Vitae o abandono de muitos fiéis. “O mais triste é que a Encíclica tem parte da culpa quando muitos já não levam a Igreja a sério como parceira de diálogo ou como mestra. (...) Reconheço que a Encíclica Humanae Vitae infelizmente desencadeou um desenvolvimento negativo. Muitas pessoas se afastaram da Igreja e a Igreja se afastou das pessoas. Foi grande o prejuízo” (Martini, Diálogos..., p. 115-116). Na sua opinião, ainda, João Paulo II “seguiu o mesmo caminho de uma interpretação estrita” (p. 118).
O Papa Francisco coloca a Encíclica Humanae Vitae em debate no questionário enviado a todas as Igrejas locais para ser debatido e respondido em vista da preparação do Sínodo Extraordinário sobre a Família, que acontecerá em outubro próximo. Ressoa como uma abertura ao diálogo aberto e fraterno e um apelo à corresponsabilidade de todos os batizados em tema de tão grande relevância e atualidade. Representará isso uma nova página da Igreja no trato com essa temática?
Mas é apenas com os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI que a ala minoritária do Concílio torna-se majoritária e impõe sua linha a toda a Igreja. O teólogo suíço Hans Küng mais de uma vez lamentou este desfecho: “Infelizmente, aqueles que o seguiram [João XXIII] não foram igualmente construtivos. João Paulo II bloqueou reformas, o ecumenismo e o diálogo entre as Igrejas. Bento XVI é ainda mais conservador. Segue um curso reacionário, confere espaço para aqueles que pensam como ele. É uma espécie de restauração crescente daquilo que defende. Eu esperava que ele estivesse disposto a atos de coragem, mas ele se tornou cada vez mais radical e se cercou apenas de pessoas pouco críticas e que apenas o seguem. Não possui uma equipe de acadêmicos e bispos questionadores. Comete um erro após o outro e não há nenhum bispo para corrigi-lo. Não gosta de ser contestado”.
Hans Küng identifica no Maio de 68 o ponto de viragem ou de inflexão de Ratzinger-Bento XVI. As revoltas estudantis são de tal maneira impactantes que deixam marcas no seu pensamento para o resto da vida. Küng, em uma entrevista que concedeu em 2009, retoma este momento singular na vida do seu colega teólogo. Diz que Ratzinger é movido por “um conservadorismo profundamente arraigado que, na atmosfera de mudança dos começos dos anos 60, chegou a superar por algum tempo. Mas, depois de três anos na Universidade de Tübingen, onde trabalhamos juntos de maneira construtiva, o choque que as revoltas estudantis de 68 produziram nele pôs fim a qualquer veleidade reformista. A partir de então, seguiu um curso estritamente reacionário, que perseguiu, primeiro, como arcebispo de Munique, depois como cardeal, e agora como Papa. Com grande prejuízo para a Igreja Católica”, diz.
Conservadorismo que começa a imprimir já no pontificado de João Paulo II, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Ratzinger contribuiu, prossegue Küng, “de maneira substancial para a elaboração dos documentos doutrinais mais reacionários de João Paulo II: pense, por exemplo, na posição doutrinal pretensamente ‘infalível’, segundo a qual o bom Deus não quer mulheres sacerdotes”.
Em termos de América Latina, basta pensar na responsabilidade de ambos – João Paulo II e Ratzinger – no sufocamento da Teologia da Libertação e na perseguição a alguns de seus expoentes, como de resto, aliás, a teólogos no mundo inteiro, sobretudo nos anos do papado de João Paulo II. Essa implacável perseguição contribuiu muito para que se instalasse o medo, de que fala o cardeal Martini.
A interpretação que Ratzinger faz do Maio de 68 tem a ver com sua tentativa de “revisão” do Concílio Vaticano II. Novamente, com a palavra, Hans Küng: “Em relação ao Concílio, Bento XVI defende sua hermenêutica da continuidade contra uma hermenêutica da ruptura. Mas é uma mentira dizer que nós consideramos o Vaticano II como uma ruptura. Era uma mudança, uma reforma. Esta “hermenêutica da continuidade” é a única coisa que o Papa encontrou para interpretar o Concílio segundo sua visão de um retorno ao passado. Mas não se pode aceitar isso! Não se pode ir contra o Concílio”.
Vale a pena deter-se um pouco mais nesta questão.
A hermenêutica ratzingeriana do Concílio Vaticano II
Em julho de 2007, em plenas férias, Bento XVI teve um encontro com o clero de duas dioceses italianas. Entre as perguntas feitas ao papa há uma que diz respeito ao Concílio Vaticano II. Bento XVI aproveita a ocasião para falar das duas rupturas que o Vaticano II sofreu. A primeira se deu em 1968, chamada de “grande crise cultural do ocidente”. Ela seria decorrência do fracasso do projeto de modernidade que explode com “a crise da cultura ocidental”.
Desta crise nasce o desejo da construção de grandes relatos, dentre os quais está o marxismo, citado pelo papa. Mas a segunda cesura se dá em 1989, com o desmoronamento dos regimes comunistas, que coincide com a crise dos grandes relatos. A queda abre caminho não para um “retorno à fé”, como esperava ele, mas para o niilismo, o “ceticismo total, a assim dita pós-modernidade”.
Neste novo contexto, chama a redescobrir a grande herança do Concílio que se encontra acima de tudo na humildade que se adquire diante do “Crucificado ressurgido, que tem e conserva as suas feridas”.
Para Ratzinger, que participou do Concílio como perito e assessor do cardeal Joseph Frings, arcebispo de Colônia, Alemanha, o Vaticano tivera entre as suas preocupações a relação entre a Igreja e o Estado moderno. As experiências políticas que se dão na Europa na segunda metade do século XX, especialmente as da social-democracia, acenam na direção desejada por Ratzinger, isto é, apontam para a possibilidade da relação com o Estado moderno, uma relação de aliança e de diálogo, não de confronto e negação. Ratzinger explicita isso em outra ocasião, como mostra o artigo do historiador norte-americano Joseph A. Komonchak. Diz Ratzinger: “estadistas católicos mostraram que pode existir um Estado moderno laico que, no entanto, não é neutro com respeito aos valores, mas vive retornando às grandes fontes éticas abertas pela cristandade”. Seria essa uma referência a Konrad Adenauer?, pergunta Komonchak. Em todo o caso, estas ainda são experiências cristãs. Bento XVI destacará isso na conversa com o clero italiano: “Acabara a geração do pós-guerra, uma geração que, após todas as destruições e vendo o horror da guerra, do cruel combater-se, e constatando o drama daquelas grandes ideologias que haviam realmente conduzido as pessoas para a voragem da guerra, haviam redescoberto as raízes cristãs da Europa e haviam começado a reconstruir a Europa com estas grandes inspirações”.
No entanto, se a primeira cesura não rompe com o cristianismo, a segunda o fará. Passa a imperar o niilismo, nessa que passaria a ser uma sociedade sem ética.
Diante deste contexto, há alguns caminhos que podem ser tomados, caminhos que implicam em hermenêuticas diferenciadas. Para Bento XVI, há ou a hermenêutica da continuidade dos “grandes textos conciliares” ou a hermenêutica da descontinuidade. Na prática, para Bento XVI, a hermenêutica da continuidade se afirma melhor na volta para trás, ou seja, no reforço da hierarquia, na centralidade do papado e no Vaticano, na centralidade da Igreja no mundo, no retorno da missa em latim...
Mas, acredita ele, “uma hermenêutica da descontinuidade não precisa ver ruptura por toda parte, e uma hermenêutica da reforma, por sua vez, admite algumas descontinuidades importantes”.
A crítica de Komonchak refere-se à dureza na disjunção “entre orientações hermenêuticas rivais” que se tornam muito menos “duras no decurso de sua argumentação”. As hermenêuticas contrapostas poderiam representar aquilo que os sociólogos chamam de “tipos-ideais”. “a ‘reforma’ que Bento vê como o coração da realização do Concílio é ela própria um tema de ‘novidade e continuidade’ de ‘fidelidade e dinamismo’, pois, de fato ela envolve importantes elementos de ‘descontinuidade’”, conclui.
Seguindo esta linha de pensamento, Ratzinger computa na conta da “interpretação errônea” do Concílio Vaticano II que muitos faziam a “perda de fiéis”. E diz isso justamente aos bispos brasileiros, em 2009, país onde mais prosperou a Teologia da Libertação, interpretação do Concílio Vaticano II mais contestada por Ratzinger.
Poucos dias antes da sua renúncia, falando aos padres da diocese de Roma, Bento XVI retorna uma vez mais à questão das interpretações. Desta vez o centro do discurso está na contraposição entre "o Concílio dos Padres do Concílio, o da fé" e "o Concílio dos meios de comunicação". Aponta uma contraposição entre Concílio teológico (dos bispos, dos teólogos, dos fiéis) e Concílio sociológico (dos meios de comunicação e do "mundo", na sua acepção metafísica).
Segundo o historiador italiano Massimo Faggioli, “estamos aqui no núcleo do pensamento ratzingeriano: uma antropologia agostiniana fundamentalmente pessimista, uma Weltanschauung que vê o mundo e a Igreja como duas forças em contraposição e irreconciliáveis senão às custas da eliminação do ‘caráter cristão’ da Igreja. O Concílio Vaticano II de Ratzinger é um Concílio ainda válido na sua teologia, especialmente naquela relativa à interpretação da Palavra de Deus nas Escrituras, a teologia da constituição Dei Verbum. Mas o Concílio foi, infelizmente, desviado pela interpretação interessada que lhe foi dada pelos meios de comunicação e – sobre isso, nessa última vez em que fala sobre o assunto, Bento XVI foi misericordioso – por aqueles teólogos e católicos convictos de que o Concílio havia finalmente reaproximado Igreja e mundo”.
Em outro momento, Faggioli retoma o tema da hermenêutica em Bento XVI com as seguintes palavras: “A partir de fins de 2005, um papa, Bento VI, sentiu-se no direito de questionar o que tinha sido alcançado pelos estudos históricos e teológicos sobre o Vaticano II publicados pela comunidade científica internacional desde a década de 1980, ao menos. Por um lado, Bento XVI pôs fim ao ‘nominalismo do Vaticano II’ típico de João Paulo II – o Vaticano II usado como cobertura ou manto para dar legitimidade a muitas coisas que não provinham dele. Por outro lado, Bento XVI também começou a remover programaticamente da mensagem proveniente do Vaticano aquelas ‘improvisações’ feitas por João Paulo II (judaísmo, islã, inculturação) que tinham permitido aos teólogos católicos não falar de um repúdio completo do Vaticano II por parte dos papas pós-conciliares”.
Caminho aplainado para um novo Concílio?
Com a renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco, terá se concluído um ciclo de ‘revisão” do Concílio Vaticano II e de involução da Igreja? Um ano depois, há fortes razões para se acreditar que sim. Mas, uma resposta definitiva é temerária.
O primeiro trabalho em ação no Pontificado de Francisco é justamente o de procurar as “brasas sob as cinzas”, para retomar uma expressão utilizada por Martini, mas atribuída originalmente ao teólogo alemão Karl Rahner. Martini, na sua última entrevista, já citada, indica que é preciso ver onde estão essas brasas e procurar aquelas pessoas que “ardem interiormente” do desejo de mudança. O Papa Francisco parece ter compreendido esta urgência, assoprando as cinzas que escondem as brasas, reserva de fogo para um novo momento da história da Igreja. O que explica em grande medida a mudança do discurso, do tom e da linguagem utilizados por Francisco. Coloca o acento na práxis sem, evidentemente, ignorar a teoria. Utiliza uma linguagem mais próxima das preocupações e anseios das pessoas comuns. Prega uma Igreja itinerante, desinstalada, que esteja onde e ao lado dos mais pobres e desprotegidos. E isto é cativante... Mas isto já é matéria para outra análise.
A renúncia de Bento XVI coloca outra questão: estaria ela possibilitando a preparação de um novo concílio? Estaria este novo concílio já sendo preparado? Em caso positivo, como?
A questão não é nova, é de tempos em tempos fez-se presente nos últimos anos. A proposição de um novo concílio é paradoxal, pois, de um lado, é preciso permanentemente voltar ao espírito do Concílio Vaticano II, conforme as insistências de Francisco e outros. Ou seja, há uma percepção de que o Concílio é um poço ao qual é preciso voltar e continuar a beber. Por outro lado, 50 anos depois, há questões novas, não abordadas pelo concílio, e outras que bem mereceriam uma nova abordagem, menos eurocêntrica. Além de que poderia oferecer um novo impulso missionário à Igreja.
Mas há outra questão fundamental a se ter presente. O teólogo italiano Vito Mancuso, comentando o livro de Luigi Sandri sobre os Concílios, aponta que os Concílios Vaticano I e II tiveram, na sua origem, um mesmo conflito e que estaria na raiz de um novo concílio: “o conflito com o mundo moderno. Trata-se de um conflito até agora ainda não resolvido”. E indica que o Concílio Vaticano II foi “positivo”, mas “insuficiente”, uma vez que “os problemas continuam, subsistem e por isto é certo que haverá um Vaticano III se a Igreja ainda será um organismo vivo, vital, capaz de compreender o mundo e renovar a própria mente, a própria doutrina, a própria impostação, para continuar o caminho com o mundo moderno”.
Mancuso, no entanto, se pergunta: “haverá um Vaticano III ou será um Jerusalém II? Ou um México I, ou um Nairóbi I, um Manila I?” E argumenta que a localização será importante, porque imprimirá ênfases próprias dependendo do lugar de realização.
Em sua reportagem, Andrea Gagliarducci, levanta outra questão pertinente: “o centralismo de Roma veio a partir do Concílio Vaticano II. Quando João XXIII morreu, o cardeal Giovanni Battista Montini ganhou amplo apoio do colégio cardinalício por causa de seu prestígio pessoal e, acima de tudo, por causa de seu compromisso em levar adiante o Concílio em direção de seu objetivo pretendido. Este objetivo era o de apoiar a inovação baseado em uma Igreja unida, centralmente coordenada de forma que ela não se tornasse dispersa nem perdesse terreno”. Esta preocupação marcou qual bússola os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, e que a ala mais conservadora esgrime contra a prática mais colegial e corresponsável do Papa Francisco.
Além disso, comenta Gagliarducci, “é provável que o Papa Francisco também esteja pensando num grande concílio para quebrar a rotina. Mas não à maneira como estamos acostumados a imaginar. Ele recentemente deixou claro não gostar do ‘sempre foi feito assim’ como sendo um princípio orientador para um modo de vida”. E acrescenta que as reformas pretendidas já estão ocorrendo. Basta, para isso, atentar-se para o enorme leque de reformas já em curso ou pensadas por Francisco.
Além das reformas pontuais, “o Papa Francisco parece querer ir ainda além. Ele coincide com João XXIII no compromisso pela paz, em sua vontade de renovar a Igreja e mesmo numa certa intolerância pela prisão vaticana. Todavia, ele parece aspirar à visão utópica do falecido cardeal jesuíta Carlo Martini mais do que à utopia de João XXIII”, analisa Gagliarducci.
Na verdade, Martini falou com frequência na necessidade de um novo concílio. Era um “sonho” seu com vistas a uma “Igreja mais colegial”. Estaria, pois, Francisco entre as utopias de Roncalli e Martini?
Utopias que ele vai moldando diariamente. Talvez não seja fora de propósito afirmar que um novo concílio já esteja, de maneira remota, em preparação. Pode-se verificar isso nos seus pronunciamentos, nas homilias na missa da Capela da Casa Santa Marta – transmitidas pela Rádio Vaticano e transmitidas para cerca de 40 idiomas e que despertam crescente interesse –, nos seus múltiplos gestos, na metodologia empregada – com um questionário enviado a todas as Igrejas locais – para a preparação do Sínodo dos Bispos sobre a Família, em outubro próximo, nas entrevistas – que se tornaram uma marca registrada do Papa argentino e que vem atraindo a atenção de todos –, no contato e trato direto com as pessoas, nos seus documentos... Em tudo isto é possível ver um magistério diferenciado do Papa Francisco, que, dentro de pouco mais de um mês, estará completando seu primeiro ano de pontificado.
Conjuntura da Semana em frases
Seleção de frases extraídas das “Frases do dia” publicadas diariamente no sítio do IHU. Frases publicadas entre os dias 03a 10 de janeiro de 2014:
Francisco
“O papa Francisco, sem deixar de olhar a teologia, fala e faz. Fala dos problemas sociais e vai a Lampedusa ver os prófugos; chama o mundo inteiro para jejuar para que não se jogue mais bombas na Síria” - D. OraniTempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro – Folha de S.Paulo, 03-02-2013.
“Francisco procurou tornar a igreja mais proativa, que toma a iniciativa. Não é mais aquela que se defende respondendo às questões, mas sim a que propõe as questões” – D. OraniTempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro – Folha de S.Paulo, 03-02-2013.
Coutinho
"Era o cineasta mais íntegro. Ele inventou um cinema que era só dele" - Nelson Pereira dos Santos, cineasta – Folha de S.Paulo, 03-02-2013.
“Aonde ainda poderia chegar? Muito longe, ainda. Coutinho era um mestre absoluto e um fumante inveterado com fôlego sem fim” – Inácio Araujo, crítico de cinema – Folha de S.Paulo, 03-02-2013.
"Bom é o filme que faz perguntas, o que tem respostas, você joga no lixo" – Eduardo Coutinho, cineasta, morto nesse domingo, 02-02-2014.
Beijo gay
“A TV, como a cavalaria, é sempre a última a chegar. Se a cena foi veiculada no horário nobre, é porque a maioria da sociedade já não considera tal ato obsceno ou escandaloso” - Hélio Schwartsman, jornalista - Folha de S.Paulo, 04-02-2014.
“Não se muda um país de uma hora para a outra - ou com um capítulo de telenovela. Mas, com todos os limites, o Brasil talvez venha a se tornar menos intolerante depois daquele beijo” – Editorial Folha de S.Paulo, 05-02-2014.
06-02
Marina
“E eu não entendo nada do que a Marina fala: ‘Podemos superar a fragmentação do mundo em crise compondo novas sínteses baseadas em novas harmonias’. Tradução: o pinto do meu pai fugiu com a galinha do vizinho. A Marina é o Bial da política. É um Bial de coque!” – José Simão, humorista – Folha de S.Paulo, 04-02-2014.
Desabafo do bom senso
"Fiz um ato solidário a um desconhecido e agora a cidade está contra mim. Estou de saco cheio dessa sociedade"- Yvonne Bezerra de Mello da ONG Projeto Uerê, responsável pela chamada dos bombeiros para soltar o adolescente preso pelo pescoço a um poste do Aterro do Flamengo com uma tranca de bicicleta – O Estado de S.Paulo, 06-02-2014.
Médica Cubana
“A médica cubana levou quatro meses entre ‘descobrir que ganha muito pouco’ e procurar o deputado Ronaldo Caiado para pedir asilo, em vez de um dos três ministérios apropriados no seu caso. Interessante, aliás, a escolha que fez, de um deputado pouco conhecido até dos brasileiros e que nem é do Pará, onde ela estava. Sabe das coisas a brava senhora, ao menos quanto a parlamentares” – Janio de Freitas, jornalista - Folha de S.Paulo, 06-02-2014.
“Há milhares de cubanos no Brasil com olhos, ouvidos e corações ligados nessa aventura, por ora solitária, de Ramona. Se ela tiver êxito - e as condições são favoráveis-, poderá servir de exemplo e criar uma legião de desertores do Mais Médicos. Uma tragédia política para o governo” – Eliane Cantanhêde, jornalista – Folha de S.Paulo, 07-02-2014.
Pizzolato
“Estou comparando a situação dele com a dos outros. Quando você foge parece que você está assumindo a culpa, é um sentimento de vergonha e constrangimento que fica para a militância do PT” – Vicentinho, líder do PT na Câmara - O Estado de S.Paulo, 07-02-2014.
“O Henrique sempre foi um C. D. F. Sempre fez tudo direitinho e certinho. É um sujeito organizado. Você pode ver a história dele. De repente ele está preso, acusado de ter desviado R$ 73 milhões do Banco do Brasil” – Andrea Haas, mulher do ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato – IstoÉ, 07-02-2014.
"A Globo recebeu R$ 5 milhões do fundo Visanet. Todos os documentos estão no processo. Ele está preso e vocês da Globo estão devendo dinheiro publico. Não pagaram imposto. Isso é vergonha. Mais de R$ 700 milhões" – Andrea Haas, mulher do ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato – O Estado de S.Paulo, 09-02-2014.
STF
"O papel do ministro da Suprema Corte é falar nos autos do processo e não ficar falando para a televisão o que ele pensa. Se quer fazer política, entre num partido político e seja candidato" – Luis Inácio Lula da Silva, ex-presidente – Folha de S.Paulo, 09-02-2014.
"Quando você indica alguém [para o STF], você está dando um emprego vitalício. O cidadão, se quiser fazer política, que diga: Não aceito ser ministro, vou ser deputado, vou entrar num partido político e mostrar a cara'"– Luis Inácio Lula da Silva, ex-presidente – Folha de S.Paulo, 09-02-2014.
Copa das covas
“O ufanismo do governo federal e a irresponsabilidade social marqueteira querem nos convencer de que teremos a Copa das Copas” – Juca Kfouri, jornalista – Folha de S.Paulo, 10-02-2014.
“As sete mortes de operários nas obras dos estádios não os transformam em cemitérios - e o título da coluna (Copa das Covas) alerta para o que aponta a Organização Internacional do Trabalho: o Brasil é quarto país do mundo no trágico ranking dos acidentes de trabalho” – Juca Kfouri, jornalista – Folha de S.Paulo, 10-02-2014.
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