29 Janeiro 2014
No final do ano passado foi lançado, em Roma, o livro “Dal Gerusalemme I al Vaticano III. I Concili nella storia tra Vangelo e potere” (em tradução livre: De Jerusalém I ao Vaticano III. Os Concílios na história entre o Evangelho e o poder) de autoria de Luigi Sandri, publicado por Il Margine, Trento 2013, 1080 páginas.
Vito Mancuso, teólogo, comenta o livro em artigo publicado pela revista mensal de fé, política e vida cotidiana intitulada Confronti, fevereiro de 2014. A tradução é de IHU On-Line.
Eis o artigo.
No que diz respeito ao livro de Luigi Sandri, atesto que estamos diante de uma obra que conseguiu seu objetivo.
Para que um livro consiga seu objetivo dois elementos, pelo menos, estejam bem amalgamados: conteúdo e forma. O conteúdo é correto: sobretudo quando se trata de uma matéria tão ampla, complexa e labiríntica. Se se segue Luigi a gente não se perde. Pelo contrário: caminha-se bastante rápido e tem-se a possibilidade de ver do alto panoramas complexos...
Depois tem a forma. O que faz um livro é união destes dois aspectos. A forma que sabe dizer as coisas de um certo modo e que faz que o leitor ouça a voz do autor. Aprecio os livros onde se ouve a voz do autor, a sua personalidade, que toma decisões, que diz “eu penso... eu estou de acordo... eu não concordo”. Enfim, quando se encontra um homem que pensa, que decide que tem uma personalidade.
Quem lê este livro encontra tudo isto, por isto é uma aventura lê-lo. Fez-me bem, colocou em ordem tantas ideias, encontrei tanto material útil.
Concordo com a avaliação feita por ele dos dois últimos pontificados. A avaliação catastrófica feita sobre o pontificado de Bento XVI. Sem dúvida, a coisa melhor que Bento XVI fez, sem ironia, foi a renúncia porque, realmente, foi um ato corajoso, sobretudo para um tradicionalista como ele. Ela mostrou que este homem soube superar a si mesmo, soube olhar o bem maior, enfim, foi um gesto grande. E estou de acordo com as esperanças que o pontificado do Papa Francisco abre.
O livro em questão é pesado, difícil de lidar com ele, enfim, um livro com mais de mil páginas... Isto é um símbolo do peso que comporta hoje ser católico.
Há religiões leves e religiões pesadas. Religiões que estruturalmente são leves, que querem ser leves. Por exemplo, o budismo é uma dessas religiões. O budista quer “ser leve”, até o esvaziamento de si mesmo. E há religiões que, ao contrário, são pesadas. Não necessariamente em sentido negativo, mas porque elas têm um aparato, uma história, uma dogmática, uma ética. Elas têm costumes e impõem uma visão precisa do mundo, entrando, inclusive, até no quarto e no leito dos casais.
Aqui no livro há páginas e páginas sobre as questões tratadas pelos papas e concílios que dizem respeito ao leito dos casais.
Daí porque o peso deste livro é simbólica da condição cristã.
Mas o que significa “concílio”?
É simbólico também do ponto de vista a partir do qual a vida cristã vem pesquisada, que é o dos concílios.
Mas donde vem o termo concílio? Confúcio dizia que a primeira coisa que ele faria se o Imperador Celeste lhe dera o comando do império celeste seria apurar os termos, compreender o que as palavras querem dizer, qual é o seu significado e qual é a sua relação com a realidade.
Concílio é uma daquelas palavras que hoje têm um sentido unicamente cristão. Quando dizemos ‘concílio’ imaginamos que se trata de uma coisa de Igreja, uma assembleia dos chefes da Igreja.
No entanto, no latim originário, esta e outras palavras eram ligadas à religião pagã, ou seja, tinham um sentido totalmente laico. Pensemos em ‘pontifex”, pontífice: eram os sumos sacerdotes da religião romana; pensemos no termo ‘basílica’: era um edifício laico onde se localizavam os tribunais, o mercado, a bolsa.
Pensemos em ‘sacramentum’.
Hoje dizemos ‘sacramentum’ e pensamos nos sacramentos. Mas sacramentum era o penhor, o depósito judiciário, a quantia de dinheiro depositada num processo civil.
E assim ‘concilium’: hoje pensamos numa assembleia de altos prelados, de bispos, quando no latim originário ‘concilium’ significava antes de tudo união, vínculo. Lucrécio fala de “concilia rerum”, para expressar propriamente a combinação da matéria. Cada um de nós, no seu corpo, é um ‘concilium rerum’, somos um agregado de diversos elementos. Significa também união carnal porque existe esta conjunção. E, naturalmente, significa reunião, assembleia.
O cristianismo é a única religião que tem os concílios, além do budismo.
Chamo, no entanto, a atenção para o fato que o termo concílio, que significa união, gerou o verbo que na nossa língua significa outra coisa. Quando dizemos “conciliar” nós pensamos em unir-se, em reunir-se, porque ‘conciliar’ é o momento em que de dirimem os conflitos. Realmente, a ação de conciliar não é uma reunião, é uma conciliação.
Esta evolução lingüística nos faz entender como na origem da cristandade havia conflitos, contrastes. O termo ‘concílio’, que propriamente significa simplesmente reunião, gerou uma ação, conciliar, e um produto, conciliação, que significa acordo, resolução dos contrastes. Assim, o princípio que já Heráclito afirmava dizendo que o “conflito é o pai de todas as coisas”, vale também para os concílios da Igreja católica.
Se não tivesse havido, logo no início, um conflito, não teria havido o Jerusalém I que, em si, não faz parte dos vinte concílios ecumênicos da Igreja católica, mas é mérito de Luigi ter partido de Jerusalém I e do conflito entre a ala mais aberta, helenista, e a ala mais fechada, judaizante, da cristandade primitiva. Um conflito que emerge no livro dos Atos dos Apóstolos e nas cartas de Paulo (que estão cheias de polêmica, onde há termos chocantes, que são tudo, mas nada pacificadores). Portanto, na base dos concílios há os confltios que os geraram, de Nicéia I até os contrastes que geraram os últimos dois concílios: Vaticano I e II.
O conflito com o mundo moderno
Quem lê o livro de Sandri, verá qual foi o conflito que originou o Concílio Vaticano I e o Vaticano II. É o mesmo conflito em ambos.
O que originou os primeiros concílios da cristandade, desde Nicéia ao Constantinopolitano III (de 325 a 680)? Foi o contraste entre a essência do cristianismo e a mentalidade corrente, sobretudo o politeísmo pagão, de um lado, o rígido monoteísmo judaico, do outro. Tratava-se de compreender como colocar Jesus, a sua figura, a sua mensagem, no interior deste contexto. E ali nasceram os concílios que depois produziram o dogma trinitário e o dogma cristológico.
Depois do fim deste período, que durou três séculos e meio, a mente cristã foi pacificada, porque compreendera, o conflito fora superado, ou seja, concílios deste gênero (sobre estas temáticas) não mais aconteceram, porque não mais surgiram no interior do mundo cristão (independente de ter realmente compreendido ou não) grandes contestações de tipo trinitário e de tipo cristológico, ao menos naquela primeira fase.
E qual foi o conflito que gerou o Vaticano I e o Vaticano II, que, segundo eu entendo, é o mesmo conflito que gerará (eis-nos aqui com o título do livro) o Vaticano III?
É o conflito com o mundo moderno. Trata-se de um conflito até agora ainda não resolvido.
Simbolicamente podemos dizer que este conflito começa em 1600, ou mais precisamente, no dia 17 de fevereiro de 1600, quando, aqui em Roma, foi queimado vivo Giordano Bruno. E 33 anos depois, também aqui em Roma, no dia 22 de junho de 1633, Galileu Galilei foi obrigado a abjurar.
Temos assim, de um lado, a declaração de guerra à filosofia, e, de outro, a declaração de guerra à ciência. Eis o grande conflito entre a Igreja católica e a modernidade, no melhor sentido do termo, que significa o uso da inteligência sem a tutela da autoridade. É o que dirá Kant, em 1787, no famoso escrito Resposta à pergunta: que coisa é o Iluminismo? O que a filosofia quer fazer? O que a ciência quer fazer? Usar a razão, usar a consciência sem nenhuma tutela.
No entanto, quando se tentou isso, no Estado Pontifício, em 1600 e em 1633, aconteceu o que acabamos de lembrar.
Eis, portanto, a declaração de guerra entre a Igreja católica, de um lado, e a modernidade, do outro.
A primeira resposta sistemática da Igreja foi, provavelmente, em 1864 com o Sillabus que, depois continuou no Vaticano I. Uma resposta totalmente insuficiente, somente de tipo apologético, incapaz de apreender as verdadeiras perguntas e que não funcionou porque, logo depois surge o Modernismo e, sobretudo, porque apareceu aquela corrente que desembocou no Vaticano II, que, por sua vez, foi uma tentativa de responder ao conflito entre a Igreja católica e o mundo moderno.
Vaticano II: positivo mas insuficiente
A resposta do Vaticano II foi positiva? Sim, foi positiva. Mas foi suficiente? Não, não foi suficiente, tanto que os problemas continuam, subsistem e por isto é certo que haverá um Vaticano III se a Igreja ainda será um organismo vivo, vital, capaz de compreender o mundo e renovar a própria mente, a própria doutrina, a própria impostação, para continuar o caminho com o mundo moderno. Se a Igreja for viva, é natural que haverá um Vaticano III. Mais. Se antes haverá um Vaticano III mais ela demonstrará vitalidade, capacidade de ler os sinais dos tempos.
No livro de Sandri a discussão é: haverá um Vaticano III ou será um Jerusalém II? Ou um México I, ou um Nairóbi I, um Manila I?
Naturalmente a escolha do lugar é significativa. Se haverá um Vaticano III provavelmente se quererá continuar a linha de fidelidade à sé romana, isto é, Roma como centro do catolicismo (ainda que dos vinte concílios ecumênicos, somente sete foram celebrados em Roma, os cinco do Laterano e os dois do Vaticano).
Se, ao contrário, será um Jerusalém II, isto significaria banhar-se no Jordão, querendo redescrever o cristianismo banhando-se novamente no Jordão. E então o diálogo com o hebraísmo seria colocado em primeiro plano. Seria um concílio arqueológico, no sentido bonito do termo.
Se, ao contrário, será Manila, México ou mesmo Buenos Aires, ou em qualquer parte da América Latina, importante será a dimensão social, a teologia da libertação.
Se, no entanto, for numa cidade africana – ou, mais ainda, numa cidade asiática – uma atenção especial será dada à dimensão do diálogo inter-religioso e o verdadeiro ponto crucial será o confronto com as grandes tradições espirituais do oriente: hinduísmo, budismo, as religiões chinesas, as religiões cósmicas.
Se eu fosse decidir, optaria por este último, pois é ali que se joga o desafio da espiritualidade mundial. É lá que sopra o espírito, hoje. Eu, pelo menos, vejo assim. O Ganges é o rio onde é preciso se banhar. Muito mais do que o Jordão.
“As chatas e velhas questões”
O conflito com a modernidade não terminou. Quem lê este livro verá como há toda uma série de crônicas muito interessantes no pós-Concílio. Há páginas muito interessantes onde se discute quais são estes problemas abertos. Anotei os que emergiam durante a leitura. Mas são coisas que todos nós falamos todos os dias. Isto porque não são estes os problemas, mas o que os faz surgir.
Estes são epifenômenos. O verdadeiro fenômeno que deve ser visto, compreendido e enfrentado é outro. Quais são estes problemas?
É muito signficativa uma afirmação de Hans Küng, em 1987, citada por Sandri, que fala “chatas e velhas questões”. Já em 1987 as temáticas deste elenco eram “chatas, velhas questões”. Hoje elas são exatamente as mesmas que retornam quando se fala de Concílio, de reforma da Igreja, de renovação. Quais são?
1.- controle da natalidade: é muito bonita, no livro, a reconstrução da Humanae Vitae e estou totalmente de acordo com o juízo duro – porque a verdade sempre deve ser dita – em relação a Paulo VI. Ele, normalmente, não é colocado ao lado de Wojtyla e Ratzinger na dimensão de restauração ou de conservação. Isto é verdadeiro em alguns aspectos, mas na Humanae Vitae ele traiu o método conciliar: primeiro, ao tirar da pauta do Concílio a possibilidade de falar destas coisas e, em segundo lugar, não levando em conta os resultados da comissão que João XXIII e depois ele mesmo instituíra;
2.- a questão da identidade sexual e
3.- a admissão dos divorciados à comunnhão;
4.- nova regulação do divórcio;
5.- a escassez de clero. Um detalhe: escassez de clero mas também escassez da qualidade do clero jovem. Viajo muito pela Itália e sempre faço a pergunta a amigos, teólogos, párocos que encontro: “E os padres jovens?”. E todos respondem que são muito menos críticos, muito mais fechados, muito mais conservadores, muito mais tradicionalistas que o clero pós-conciliar. Portanto, o problema não é somente a escassez mas também qualitativo: falta o fogo que caracteriza o ambiente jovem;
6.- o celibato dos padres;
7.- a nomeação dos bispos;
8.- a colegialidade como método de governo;
9.- a verdadeira e própria representação do povo de Deus. Sandri insiste muito neste ponto. De que modo o povo de Deus se representa (que segundo a Lumen Gentium é o verdadeiro sujeito eclesial)?
10.- a questão ecumênica;
11.- o diálogo inter-religioso;
12.- a questão feminina. Sobre esta, permito-me discordar do Papa Francisco quando, perguntado sobre a possibilidade de mulheres serem cardeais, respondeu: “não se deve clericalizar as mulheres”. Não estou de acordo porque se trataria simplesmente de fazer o contrário: desclericalizar o cardinalato. No livro se diz muito bem que há muitas propostas para o caso. Bastaria abrir o cardinalato aos leigos e se abriria efetivamente a possibilidade de fazer com que toda esta retórica sobre as mulheres que contam tanto (Nossa Senhora que conta mais que os Apóstolos e assim por diante) se torne efetiva capacidade de ter poder. Sem isto, trata-se somente de retórica sobre o “gênio feminino” e tantas outras coisas que ouvimos já tantas outras vezes. É preciso sermos concretos.
13.- o respeito aos direitos humanos no interior da Igreja. Esta é uma outra coisa que emerge no livro, nas páginas que abordam o pós-Concílio. A Igreja foi paladina dos direitos humanos, particularmente da liberdade religiosa, mas no seu interior não há liberdade religiosa. Muitas vezes, os religiosos e as religiosas não têm uma série de direitos elementares;
14.- a pesquisa no âmbito teológico;
15.- a reforma da cúria romana;
16.- as questões de bioética;
17.- a penitência e o perdão dos pecados.
Luigi Sandri no início do livro se pergunta: “A Igreja foi sábia ao dogmatizar o cristianismo?”
A minha resposta intuitiva é que, analisando o êxito histórico desta dogmatização, deve-se responder positivamente. A dogmatização permitiu que o cristianismo chegasse aos nossos dias, difundindo-se em todo mundo, se ser, no bem e no mal, a primeira religião do planeta em termos numéricos.
No entanto, é preciso também ver que aquela formalidade que foi a força do cristianismo no passado, hoje constitui a sua fraqueza. O problema, portanto, não é julgar negativamente o passado. Mas a pergunta é: É sábio, hoje, continuar mantendo vinculantes para a identidade cristã a dogmatização imposta do passado? Ela ainda é capaz de satisfazer a sede de espiritualidade do homem e da mulher contemporânea? Trata-se de mil e poucas páginas de peso. Dar conta deste rio caudaloso e, muitas vezes, agitado, de coisas que pesam sobre as costas e que te levam, no fim, à incapacidade de tocar a fluidez da realidade?
É incrível que, muitas vezes, as pessoas dogmáticas, que querem ser completamente fieis ao que é dito tradicionalmente, precisamente por isso se tornaram incapazes de perceber a fluidez da vida e, assim, de viver aquilo que é a essência da experiência espiritual.
Espírito significa vento e o vento é o símbolo por excelência da liberdade. Ou existe esta liberdade existencial, cuja fonte é a experiência espiritual, ou a experiência espiritual morre.
O grande dilema, que depois gera como epifenômenos todos os problemas acima elencados, do problema da moral sexual ao perdão dos pecados, é este peso dogmático-doutrinal que durante os séculos se construiu e que chega a impedir o genuíno da vida espiritual, a leveza, a liberdade da experiência espiritual.
Para mim, este é o verdadeiro problema, o “mal estar da inteligência” de que falava Simone Weil na famosa carta que escreveu para um padre dominicano e que nunca teve resposta.
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O peso de ser católico e um Vaticano III. Ou Manila I? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU