Por: Cesar Sanson | 17 Janeiro 2014
"Um projeto de intervenção capitalista dentro de um plano neocolonial da Amazônia se apresenta com ares de filantropia. Nos discursos oficiais, construir barragem aqui vira condicionante para garantia de direitos elementares de populações empobrecidas e de energia para o desenvolvimento do país". O comentário é de Claret Fernandes, militante do MAB e missionário na Prelazia do Xingu em artigo no portal do MAB, 15-01-2014.
Segundo ele, "esse discurso transforma os atingidos terrivelmente impactados em ‘beneficiários’ do projeto e equipamentos estranhos, como as previstas barragens-plataforma, em elementos de harmonia e preservação da natureza".
Eis o artigo.
O filme ‘A vida é bela’ do italiano Roberto Benigni guarda uma semelhança sinistra com Belo Monte, barragem privada financiada com dinheiro público em fase de construção desde junho de 2011, no rio Xingu, Amazônia brasileira: o efeito ilusório!
A película lançada em dezembro de 1997 obteve grande sucesso em grande parte pela sua capacidade criativa de esconder a verdade dos fatos. O contexto é o da Segunda Guerra Mundial. O personagem Guido, um judeu, e seu filho pequenino são levados para o campo de concentração nazista. Preocupado com o menino, Guido usa sua imaginação fértil para fazê-lo crer que todo aquele terror não passava de uma brincadeira. O menino se entusiasma e, mesmo questionado por outras crianças de sua idade, buscando convencê-lo de que estão todos condenados à morte, ele segue animado com a possibilidade de ser um dos vencedores ao final da suposta gincana.
Benigni zomba da crueldade! À noite, antes de dormir, dois personagens, Guido e Ferruccio Papini, fazem brincadeiras com o filósofo alemão, Arthur Shopenhauer, o escritor favorito de Adolf Hitler.
Esse efeito ilusório, que transforma um campo de concentração nazista em brincadeira de gente grande e pequena, ocorre atualmente em Belo Monte. A diferença é que o personagem de Benigni o faz por amor ao filho e os detentores do poder em Belo Monte, e seus sequazes, o fazem pelo cinismo macabro de acumulação de capital a qualquer custo.
Um projeto de intervenção capitalista dentro de um plano neocolonial da Amazônia se apresenta com ares de filantropia. Nos discursos oficiais, construir barragem aqui vira condicionante para garantia de direitos elementares de populações empobrecidas e de energia para o desenvolvimento do país. Esse discurso transforma os atingidos terrivelmente impactados em ‘beneficiários’ do projeto e equipamentos estranhos, como as previstas barragens-plataforma, em elementos de harmonia e preservação da natureza.
Quando o questionamento vai fundo, meninos de recado do governo federal apelam e afirmam que o bem de todos exige o sacrifício de alguns. É o cúmulo do cinismo! E da mentira! O bisturi que corta o Xingu, e sangra o seu povo, tira um bem natural de uso comum e o torna um recurso privado.
Prometem-se três bilhões e meio de reais a título compensação ambiental e social. Se esse dinheiro existe, ele é investido a bel prazer da Norte Energia, empresa que congrega os gigantes donos de Belo Monte.
Prometem-se diversas obras com o Xingu Sustentável nos onze municípios de influência de Belo Monte. É verdade que algumas delas aqui e ali saem, mas em todas há muitas pendências. Há estudantes que morrem de calor em suas escolas, por exemplo, porque a reforma do prédio em nome da Norte Energia não considerou o redimensionamento energético para o ar condicionado.
O recurso do Xingu Sustentável, um total de 500 milhões que estão sendo aplicados em longos 20 anos, vem, na verdade, do bolso dos brasileiros, através dos custos exorbitantes das contas de luz, e, não, do cofre dos donos de Belo Monte. Eles levam a fama, mas o povo é que paga a conta.
Existem obras, é verdade, mas há muito mais placas! E com a aproximação do período eleitoral, há políticos de tudo enquanto é cor e tendência que buscam agarrar-se a essas placas.
À Norte Energia interessam as fotos, que garantem a formalidade, se é que precisa disso. Ela manda e desmanda no pedaço! Aos políticos das diversas esferas, o que lhes interessa é colar suas imagens nessas migalhas de obras para sua perpetuação no poder. Onde existe a negação histórica do direito, qualquer coisinha serve, e já rende votos, e a política pública como garantia constitucional sai atropelada.
Quase sempre, as obras não condizem com as reais necessidades do povo. Brasil Novo sofre com problemas de abastecimento de água, na sua quantidade e qualidade.
Altamira padece com o caos social
Vitória do Xingu, com nove milhões mensais de ISS, deixa quase mil famílias acampadas há mais de um ano. Souzel tem problemas crônicos com o serviço de energia. Vilas ao longo da Transamazônica, algumas com mais de 500 famílias, não podem ter um freezer maior, pois a rede de energia não suporta.
Parabéns a Benigni pelo efeito ilusionista por amor ao seu filho. Parabéns, também, ao povo da Amazônia, que vem descobrindo a verdade escondida sob o manto da ilusão. Apesar da eficiência dos detentores de Belo Monte, com seus efeitos especiais, transformando mentiras lavadas em verdades (quase) inquestionáveis, a verdade começa a prevalecer. Por ora ainda se invertem os fatos, transformando as vítimas em culpados, mas isso não deve durar por muito tempo.
Raimundo, morador de Assurini, vai ao escritório da Norte Energia e reclama dos estouros de pedras, que ocorrem duas vezes ao dia, às seis e dezoito horas; eles estão provocando rachaduras em sua casa. A empresa apenas responde que as bombas estão dentro do padrão. Ou seja: a casa de Raimundo, morador ribeirinho há anos, é que está fora do lugar e do padrão.
Indígenas se organizam, resistem, lutam por seus direitos. Agora se dispersam! Muitos estão perdidos nas ruas de Altamira, vítimas da miséria e do preconceito. Mas Edison Lobão, Ministro de Minas e Energia, com sua cara lavada, afirma de pés juntos que nenhum índio é molestado em Belo Monte.
Fala-se de reassentamento urbano coletivo para as mais de trinta mil pessoas moradoras próximas ao Xingu em Altamira. Espalham-se panfletos colocando casas de alvenaria de três tipologias. O que se está construindo, porém, são casas de concreto em loteamento.
A partir de hoje, 15 de janeiro de 2014, se inicia o processo de transferência de um grupo de famílias a cada dia para esses loteamentos. É um dia histórico! E penso que o efeito ilusório, por forte que seja, vai romper-se antes que as trinta mil pessoas atingidas se transfiram para lá. Ou recebam míseras indenizações.
Há três cenários possíveis: muita bala de açúcar para adoçar a vida, alguma bala de chumbo para intimidar os ânimos exaltados ou uma rebeldia organizada pela garantia do direito enquanto é tempo.
Não basta estarmos certos; é preciso força popular para fazer valer a nossa verdade! Ajudar na organização do povo é a nossa principal tarefa!
Lá na obra, funcionário do médio escalão informa que houve festa em comemoração ao pequeno número de acidentes durante o ano de 2013: teriam sido apenas dois! Não sei quantos morreram em cada um desses acidentes. Nem sei que critério se usou para se chegar a esse número. Incrível! Mas faz parte do jogo da ilusão.
O que se sabe é que, infelizmente, morre gente todos os dias, dentro e fora dos canteiros, e a imensa maioria dessas mortes tem relação direta ou indireta com Belo Monte.
Além de esconder a verdade, a ilusão possibilita transformar tragédias em negócio rentável. A morte solta rende muitos cifrões! Aos assassinatos por encomenda, que continuam na região, somam-se, agora, as mortes provocadas pela violência da expansão do capital patrocinada pelo Estado brasileiro.
Operários de outras regiões vitimados em acidentes fatais são embrulhados em bolsas próprias e, depois, devidamente preparados, enviados à sua terra de origem. Isso gira um comércio considerável!
Localmente, há convênios com funerárias que, a preços salgados, oferecem serviços completos. As salas de velório são aconchegantes com ambiente climatizado. Ali os corpos bem tratados, de pessoas que perderam a vida antes do tempo, refrescam a cabeça dos parentes condoídos e evitam comoções indesejáveis.
Belo Monte, à semelhança do filme de Benigni, é também do gênero comédia trágica. É como o fato ocorrido recentemente no hospital do câncer, em Muriaé - MG. Um homem, buscando consolar o esposo de uma mulher muito querida internada ali, em fase terminal, diz-lhe: ‘É uma honra para qualquer um de nós morrer num lugar assim, tão cheio de recurso e tão bonito!’.
O nome do filme ‘A vida é bela’, segundo o próprio Benigni, é uma citação de Léon Trotsky. Aguardando a morte no exílio, ele escreve que, apesar de tudo, a vida é bela.
Pode-se parafrasear Trotsky, com um pequeno adendo: apesar de tudo, a vida é bela, pois a verdade há de revelar-se e a soberania de nosso país há de impor-se pela força do poder popular.
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Apesar de Belo Monte, a vida é bela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU