14 Novembro 2013
"Se atualmente estão sendo lançados, de Sobradinho para o Sub Médio e o Baixo São Francisco, apenas cerca de 1100 m³/s, um volume muito parecido deve estar chegando à foz do rio. E, quando isso ocorre, o peixe desaparece das redes dos pescadores, os bancos de areia se evidenciam e a cunha salina tende a adentrar mais ainda em direção à nascente do rio", constata João Suassuna, engenheiro-agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, em artigo publicado por Combate Racismo Ambiental, 12-11-2013.
Eis o artigo.
As regiões do Alto e Médio São Francisco, localizadas no Estado de Minas Gerais, são responsáveis pela formação de cerca de 70% do volume da água existente no Velho Chico. O Estado de Minas é, portanto, o nascedouro e o principal responsável pela gênese volumétrica daquele rio, caudal que tem uma vazão média histórica de cerca de 2800 m³/s. A construção da represa de Sobradinho, no final de seu Médio curso, com capacidade de 34 bilhões de m³ (volume correspondente a aproximadamente 14 baías da Guanabara), foi de fundamental importância para a regularização da vazão do rio, cabendo às chuvas, que ocorrem sobre as citadas regiões mineiras, a manutenção do regime de enchimento da referida represa. Elas são intensas, no período de novembro a abril, intervalo no qual Sobradinho pode atingir a sua capacidade máxima; e reduzidas de intensidade, de maio a outubro, quando a represa utiliza o volume acumulado, no período chuvoso, para a manutenção da vazão do rio, nos seus cursos Submédio e Baixo São Francisco, regiões onde estão localizadas suas usinas hidrelétricas.
O ex- ministro de Minas e Energia, José Jorge, em pronunciamento no Senado Federal, em 2002, alertou a Nação brasileira sobre o indesejável risco hidrológico existente quanto ao uso das águas do Rio São Francisco o qual, segundo ele, deveria exigir atenção redobrada, por parte das autoridades do setor elétrico. Infelizmente foi ignorado, como se não houvesse irrigação na bacia do rio, e o estoque de água de Sobradinho – à época com 40% de sua capacidade útil – estivesse em níveis satisfatórios, sem haver, portanto, a probabilidade de novos racionamentos de energia, como ocorreu em 2001.
Sua excelência estava com a razão ao fazer aquele pronunciamento, como se demonstra, a seguir, de forma muito simples: em outubro de 1955, o rio São Francisco apresentou um volume de apenas 595 m³/s, tendo registrado, em anos subsequentes, enchentes monumentais, de cerca de 20 mil m³/s.
Essa característica hidrológica do rio (secas e enchentes em sua calha) demandava um mecanismo que, além de regularizar sua vazão, impedindo comprometimento na geração de energia no Complexo de Paulo Afonso, amortecesse os piques de cheias frequentes em sua bacia hidrográfica. A solução encontrada pela Chesf foi a construção da barragem de Sobradinho, que conseguiu a proeza de regularizar a amplitude volumétrica que havia até então, mantendo a vazão média do rio em 2060 m³/s.
Ocorre que, a caída de chuvas abaixo da média se tornou um fato corriqueiro na bacia do São Francisco. Esse fenômeno, aliado ao uso indiscriminado de suas águas nos projetos de irrigação, bem como nas atividades interligadas ao setor elétrico brasileiro (as hidrelétricas do São Francisco têm gerado e enviado energia para consumo em outras regiões do País), vêm resultando em frequentes depreciações da represa de Sobradinho, a ponto de torná-la, cada vez mais, incapaz de cumprir os objetivos para os quais foi idealizada. Para se ter ideia dessa problemática, no mês de abril do corrente (2013), a represa de Sobradinho, que deveria estar próxima ao vertimento (sangria), apresentava, apenas, cerca de 35% do seu volume útil. Muito pouco, portanto, para uma represa que tem importância vital no atendimento das demandas do setor elétrico nordestino. As consequências disso passaram a se refletir em dificuldades na geração de energia pelo sistema Chesf. O sistema já não consegue mais gerar a energia necessária para o desenvolvimento do Nordeste. Em 2010, por exemplo, as suas hidrelétricas geraram 6000 MW médios e a região necessitou de 8000 MW médios. Dois mil megawatts médios já tiveram que vir de outras regiões geradoras do País.
Atualmente, no mês de novembro, Sobradinho encontra-se com menos de 25% de sua capacidade. Só há uma maneira para se recuperar uma represa desse porte: fazendo com que o volume de água que entra (volume afluente), seja maior do que o volume que sai dela (volume defluente). Tentando minimizar o problema, a Chesf conseguiu autorização da Agência Nacional de Águas (ANA) para lançar, de Sobradinho para o Submédio e Baixo São Francisco, cerca de 1100 m³/s, o que contraria uma determinação do IBAMA, que exige, em sua foz, volume de cerca de 1300 m³/s, as chamadas vazões ecológicas.
Temos acompanhado sistematicamente de perto o regime de recuperação volumétrica daquela represa e publicado as informações no Portal Rema Atlântico. Ora, se atualmente estão sendo lançados, de Sobradinho para o Sub Médio e o Baixo São Francisco, apenas cerca de 1100 m³/s, um volume muito parecido deve estar chegando à foz do rio. E, quando isso ocorre, o peixe desaparece das redes dos pescadores, os bancos de areia se evidenciam e a cunha salina tende a adentrar mais ainda em direção à nascente do rio.
Ainda em relação às questões volumétricas do Velho Chico, José do Patrocínio Tomaz Albuquerque, experiente hidrogeólogo paraibano, relata, em um de seus trabalhos, a influência das vazões de base, provenientes dos principais aquíferos do São Francisco, na garantia da regularização do rio. Nesse trabalho, ele alerta sobre as consequências que a exploração da água nos projetos de irrigação, sem o devido controle, poderá exercer no fluxo basal ao escoamento fluvial que chega a Sobradinho, o que poderá acarretar, em futuro próximo, a redução significativa da vazão de regularização da referida represa, com reflexos nefastos na geração de energia e no atendimento de outras demandas, inclusive no projeto de transposição.
Essas análises de Patrocínio são muito pertinentes e já nos levam a crer que a vazão regularizada do Velho Chico já está sofrendo influências reais, sobretudo da irrigação pesada, com a utilização de fortes demandadores de água, a exemplo do pivô central, sobre o aquífero Urucuia, no extremo oeste da Bahia, principalmente nas culturas do café e da soja. Nossa crença se deve à observação do comportamento da vazão média regularizada do rio que vem caindo de forma assustadora: após a construção de Sobradinho, se apresentava na esfera dos 2060 m³/s.
Atualmente, mensurações dão conta de cerca de 1850 m³/s, em sua foz. Esse fato tem-nos preocupado sobremaneira, principalmente em relação aos alertas de Patrocínio.
Fizemos questão de fazer esse breve histórico da problemática da vazão do Rio São Francisco, para mostrar a incapacidade do rio de comprometimento com novas demandas, principalmente aquelas que surgirão quando da ampliação do parque de geração de energia elétrica da região.
Essa questão da geração de energia em rios com problemas de vazão foi questionada por Célio Bermann, ao escrever o capítulo Impasses e controvérsias da hidreletricidade, no Dossiê de Energia da USP (vol 21 nº 59 jan/abr 2007), o qual tratou da complementação da motorização do sistema elétrico do complexo Chesf. No referido capítulo Bermann menciona o seguinte:
“A Usina de Xingó foi projetada para abrigar dez turbinas de 500 MW, de forma a possuir uma capacidade instalada total de 5.000 MW. Entretanto, atualmente apenas seis turbinas estão instaladas. Trata-se, portanto, de 2.000 MW que poderiam ser acrescentados se as outras quatro turbinas previstas fossem instaladas. A Usina de Itaparica também apresenta condições semelhantes. Projetada inicialmente com dez turbinas de 250 MW, ela conta atualmente com apenas seis turbinas, perfazendo 1.500 MW. Outros 1.000 MW poderiam ser acrescentados se as turbinas fossem instaladas. Com respeito às duas usinas no rio São Francisco, continua Bermann, a Companhia Hidrolétrica do São Francisco alega que houve um superdimensionamento nos dois projetos e que não existe água suficiente (grifo nosso) para efetivar a complementação da motorização de ambas.”
Foi nesse cenário de penúria hídrica, que recentemente tivemos acesso a um vídeo publicitário, que mostra as pretensões do Governo Federal de construir uma nova hidrelétrica, a montante de Xingó e do complexo de Paulo Afonso: A Hidrelétrica de Riacho Seco.
Essa hidrelétrica, localizada no município de Santa Maria da Boa Vista (PE), próxima ao lugarejo denominado Riacho Seco, faz jus ao nome que recebeu. A geologia da região é de embasamento Cristalino e os cursos d´água existentes na localidade são temporários (eles interrompem seus fluxos na época de estiagem).
De acordo com o vídeo em questão, essa hidrelétrica, irá operar a fio d´água, com 8 máquinas tipo Bulbo, utilizando baixa queda (cerca de 9 m) e grandes vazões, com potência total de 276 MW e custo estimado em R$ 1,5 bilhão de reais. Pelo fato de ser a fio d´água, essa hidrelétrica não terá reservatório de acumulação (as águas irão atingir apenas a cota máxima de cheias do rio) e, portanto, não terá poder de regularização de vazões a sua jusante.
Ora, fica muito difícil de entender o fato acima relatado, principalmente diante da impossibilidade da conclusão da motorização de Itaparica e Xingó, devido à inexistência de vazão no rio. Apesar de sabedoras dos indesejáveis riscos hidrológicos existentes no Rio São Francisco, mesmo assim, as autoridades elaboraram a proposta para construção dessa nova hidrelétrica a montante de Itaparica, em cujo local são frequentemente auferidas vazões diminutas e, portanto, inadequadas à geração de energia com a segurança desejada. O rio São Francisco não terá vazão suficiente para gerar energia com essa nova hidrelétrica! Por que 8 máquinas, ao invés de 3 ou 4? Não seria, portanto, muito mais lógico e economicamente mais barato, a motorização de mais uma máquina em Itaparica, cuja potência equivale àquela que poderá ser gerada pelas 8 máquinas de Riacho Seco, do que se partir para a construção de uma nova hidrelétrica no rio?
Finalmente, e diante do relato acima, torna-se imperioso que as autoridades do setor elétrico do nosso País divulguem, junto à sociedade nordestina, documentos que atestem não só a viabilidade técnica e econômica da construção da Hidrelétrica de Riacho Seco (em local cuja vazão do rio está sendo deliberadamente manipulada em detrimento da recuperação volumétrica da represa de Sobradinho), como também justifiquem a impossibilidade de conclusão da motorização das hidrelétricas de Itaparica e Xingó (localizadas em sua parte jusante), em razão da debilidade hídrica no rio para o atendimento das demandas do setor elétrico. Com a palavra a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).
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“A hidrelétrica de Riacho Seco faz jus ao nome que tem!”. Artigo de João Suassuna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU