21 Abril 2010
Envolvido em questões relativas ao Rio São Francisco há 15 anos, o pesquisador João Suassuna acaba de lançar o livro “A Transposição do Rio São Francisco na Perspectiva do Brasil Real”. A ideia da obra, segundo Suassuna, é esclarecer a existência do projeto para o centro-sul do país. Em entrevista à IHU On-Line, feita por telefone, o pesquisador fala a respeito da situação atual das obras do projeto. “O projeto da transposição do Rio São Francisco vai utilizar esses volumes para abastecer 12 milhões de pessoas no nordeste. Então, se já há um conflito, fisicamente será impossível a retirada desses volumes para o abastecimento do povo”, lamenta.
Preocupado com o agravamento do processo de desertificação da região nordeste, Suassuna constata que no núcleo de Cabrobró, já existe um deserto praticamente formado, isso pela retirada da vegetação da caatinga para o fabrico de carvão. Este será um impacto crucial, e inclusive já está acontecendo”. Sobre as possíveis obras de revitalização do rio, Suassuna garante que tudo não passa de falácia. “O governo Lula deveria apostar todas as suas fichas na revitalização, no replantio de árvores e na reconstrução de matas ciliares, que não existem mais”, diz.
João Suassuna é engenheiro-agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor está lançando este livro sobre a transposição do Rio São Francisco. Quais os aspectos positivos e negativos do projeto?
João Suassuna – O São Francisco é um rio com múltiplos usos, mas já houve prioridades dos usos ao longo do tempo. É um rio que tem um potencial gerador de energia elétrica importantíssimo. 95% da energia que é gerada no nordeste são do São Francisco. Ele também tem um potencial de irrigação muito importante. Nas margens do rio, temos cerca de um milhão de hectares para serem irrigados, dos quais 340 mil já estão irrigados, mas já há um uso muito conflituoso entre esses usos. Para termos uma ideia, em 2001, o Rio São Francisco correu com pouca água, e tivemos que racionar a energia no nordeste, onde a coisa foi mais grave, pois as autoridades adotaram os feriadões, já que não havia volume suficiente no rio para gerar energia elétrica. Existe um conflito enorme entre o uso da água do São Francisco para gerar energia e para irrigar. O projeto da transposição do Rio São Francisco vai utilizar esses volumes para abastecer 12 milhões de pessoas no nordeste. Então, se já há um conflito, fisicamente será impossível a retirada desses volumes para o abastecimento do povo.
Estou envolvido com essas questões há 15 anos, isso gerou uma quantidade grande de artigos, tenho cerca de 80 artigos publicados e circulando na Internet. Sabemos que o centro-sul do país desconhece totalmente a existência do projeto, não sabe nem do que se trata. Afirmo isso, pois participei de uma caravana, em 2008, que visitou onze capitais brasileiras, discutindo esse projeto. Da Bahia para baixo, o que observamos é que ninguém estava sabendo absolutamente nada sobre esse projeto. Reuni os 80 artigos que escrevi sobre o tema e transformei-os em um livro. Temos a ideia de divulgar esse livro para o centro-sul do país, para começar a esclarecer ao pessoal do sul a existência desse projeto. Uma coisa interessante é que, quando chegar a hora de pagar essa conta, todos irão pagar, do Oiapoque ao Chuí, pois fazemos parte de uma federação.
IHU On-Line – Qual a situação atual das obras de transposição do rio São Francisco?
João Suassuna – Os eixos leste e norte do projeto, que vão retirar água do São Francisco, da represa de Itaparica e de Cabrobró, em Pernambuco, e levar essa água para o setentrional nordestino, na Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, para abastecer as principais represas do nordeste, já estão com as construções bem adiantadas. Estes canais irão ter 25 metros de largura, 5 metros de profundidade e algo em torno de 700 km de extensão. No final de 2010, com o fim do governo Lula, ele promete que a água do eixo leste chegue à Paraíba. O eixo norte, cuja água será retirada de Cabrobró e vai para o Ceará, será concluído lá por 2012. Essa é a estimativa das autoridades.
IHU On-Line – Até esse momento, quais são os impactos sociais, econômicos e ambientais que a obra já causou?
João Suassuna – Os eixos estão saindo do nordeste, uma região semiárida, onde já foram identificados alguns núcleos de desertificação. No núcleo de Cabrobró, já existe um deserto praticamente formado, isso pela retirada da vegetação da caatinga para o fabrico de carvão. O que o exército brasileiro está fazendo com a construção dos canais naquele ponto é agravar o processo de desertificação que já está em curso. Este será um impacto crucial, e inclusive já está acontecendo. Futuramente, teremos impactos na geração de energia e na qualidade da água que irá chegar ao nordestino. A água do São Francisco hoje está muito ruim, em termos de qualidade biológica. Para termos uma ideia, a cidade de Januária, no norte de Minas, está à margem do Rio São Francisco, e sua população bebe água de poços tubulares, cavados pela prefeitura local, pois a qualidade da água do rio está imprópria para o consumo humano. É com essa água, com essa qualidade, que querem abastecer as principais represas do nordeste. Se fizerem isso, levarão um problema de saúde pública enorme. Teremos problemas de hepatite, esquistossomose, xistossomose, entre outras doenças veiculadas pela água.
IHU On-Line – As obras de revitalização do S. Francisco, conforme o prometido, estão em andamento?
João Suassuna – Isso é uma falácia. Inclusive, o programa de revitalização deveria ser a “menina dos olhos” do governo Lula, e não está sendo. O governo Lula deveria apostar todas as suas fichas na revitalização, no replantio de árvores e na reconstrução de matas ciliares, que não existem mais. O São Francisco é um rio de barranco, e um rio sem mata ciliar sofre com um desabarranqueamento natural, e esse material será carreado para a calha do rio, irá assorear tudo, irá impedir a navegação, como já está impedindo, e irá diminuir a vazão do rio. Deve haver um trabalho sério no tratamento dos esgotos, que estão sendo lançados in natura para dentro da calha do rio. O governo Lula deveria estar apostando todas suas fichas neste tipo de obra e não está. No Orçamento Geral da União, no ano passado, foram reservados um bilhão de reais para o projeto da transposição do Rio São Francisco. Para a revitalização, 100 milhões, dez vezes menos. Não consigo acreditar num programa desses.
IHU On-Line – E aí entram projetos de saneamento básico?
João Suassuna – Existem muitas cidades na orla do São Francisco onde já se começou alguma coisa neste sentido. É um trabalho que está sendo iniciado agora, mas já existe uma preocupação. Porém, a bacia do São Francisco são 640 mil km². Existem trabalhos pontuais e que precisam ser acelerados e implementados, pois ainda é feito muito pouco.
IHU On-Line – Existem alternativas à transposição?
João Suassuna – Existem sim. O próprio governo federal apresentou esse tipo de alternativa através de um trabalho da Agência Nacional de Águas (ANA), que editou em dezembro de 2006, o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água. O governo e as autoridades mostram que é possível resolver os problemas de abastecimento de município com até cinco mil habitantes, com água de boa qualidade, que já existe na região nordeste. Temos 70 mil represas no nordeste, que acumulam um potencial de cerca de 37 bilhões de metros cúbicos de água. É o maior valor represado em regiões semiáridas do mundo. Existem regiões sedimentares onde é possível perfurar poços e obter água de subsolo. Tudo isso está sendo previsto pela ANA, que colocou isso no Atlas Nordeste, para resolver os problemas de 34 milhões de pessoas no nordeste. Inclusive, é um programa bem mais abrangente do que o da transposição do Rio São Francisco, que visa o abastecimento de água para apenas 12 milhões de pessoas, e com a metade dos custos previstos pelo programa da transposição. Para a transposição, está previsto um custo de 6,6 bilhões de reais, na primeira fase. O Atlas Nordeste prevê a metade disso, 3,3 bilhões de reais, para ter um programa de abastecimento bem mais abrangente, abastecendo cinco vezes mais pessoas no nordeste.
Porém, também temos uma população que chamamos de difusa, falo algo em torno de 10 milhões de pessoas, que vivem nos pés de serra e nos pequenos vilarejos. Para esse tipo de população, a solução é através de um programa que está sendo desenvolvido pela Articulação no Semi-Árido Brasileiro, ASA Brasil, uma ONG que congrega 600 outras ONGs que trabalham a convivência com o semiárido. Essas ONGs estão propondo alternativas interessantes de abastecimento através de barragens subterrâneas e de cisternas rurais. Só de tecnologias na área hídrica, a ASA Brasil tem mais de quarenta. O trabalho da ASA Brasil resolveria os problemas dessas populações difusas do nordeste. Nossa visão é que, para a solução dos problemas de abastecimento do povo nordestino, teríamos que contar, necessariamente, com o trabalho da ANA e da ASA Brasil.
A transposição do São Francisco seria desnecessária para o nordeste. Não tem o menor sentido, tendo água na região, abdicar o uso dessa água na região e ir buscar água do São Francisco, há 500 km do local de consumo. Isso mostra que a água do São Francisco, ao cair nas principais represas do nordeste, será utilizada no agronegócio, na criação do camarão e no uso industrial. No Porto de Pecém, em Fortaleza, está sendo construída a Ceará Steel, uma siderúrgica que, sozinha, irá demandar volumes equivalentes a um município de 90 mil habitantes. Se a água do São Francisco cair nas principais represas do nordeste, não terá o uso de abastecimento do povo, que é o mais necessitado. Hoje, esse povo, que está sendo abastecido por frotas de caminhões pipa, vai continuar assim. É aí que reside a indústria da seca.
IHU On-Line – A resistência contra a obra cessou?
João Suassuna – Não acabou não, a resistência continua, e essa situação irá se agravar porque, neste ano, teremos eleições. É possível que os candidatos utilizem essa obra como a panacéia da solução de tudo, e não será. Nossa preocupação é essa, é que isso sirva como moeda de troca para voto. Isso, certamente, irá acontecer. Eles irão centrar as campanhas no nordeste para o abastecimento das pessoas, e utilizarão como pano de fundo o projeto da transposição. Mas sabemos que isso terá um engodo, porque o abastecimento das populações não irá se proceder com esse projeto, que vai se utilizar da água para o agronegócio.
IHU On-Line – Em sua opinião, quem vai se beneficiar com a transposição do São Francisco?
João Suassuna – Os beneficiários da transposição do São Francisco serão as empreiteiras, os industriais, o grande capital. O povo está sendo iludido, não terá acesso a uma gota d’água sequer da transposição. Não está claro no projeto como essa água sairá das grandes represas para abastecer o povo. Está claro que a água irá caminhar nos 700 km de canais e abastecerão as principais represas do nordeste, para promover aquilo que as autoridades estão chamando de sinergia hídrica, que é a forma dessas represas não virem a secar. Mas essas represas foram dimensionadas para nunca secarem, porque elas têm volumes suficientes para aguentarem secas sucessivas, mesmo com o uso continuado de suas águas.
IHU On-Line – O senhor considera que essa obra aumentará no futuro a popularidade de Lula no Nordeste ou funcionará ao contrário, ficará como uma herança maldita do seu governo?
João Suassuna – Do jeito que está sendo construída, ela está sendo orientada ou divulgada para resolver o problema de abastecimento do povo. Futuramente, quando o povo começar a raciocinar no sentido de as águas do São Francisco estarem sendo utilizadas para o agronegócio, e não para o abastecimento, haverá uma espécie de revolta popular no nordeste.
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Transposição do São Francisco. Uma obra desnecessária. Entrevista especial com João Suassuna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU