Por: Jonas | 12 Novembro 2013
Roberto Alifano (foto) é poeta, jornalista e escritor argentino. Conhece o papa Francisco. Foi discípulo, amigo, e, de certo modo, continuador de Jorge Luis Borges. Também manteve uma relação muito próxima com Pablo Neruda.
Fonte: http://goo.gl/VW10HN |
Ele conta que Neruda morreu “porque, quando ocorreu o golpe militar de Pinochet, interromperam o seu tratamento contra o câncer de próstata que tinha”, e recorda que, dez dias após a morte do poeta, “colocaram-me na prisão pelo simples fato de ter falado em seu enterro”.
Considera que sua relação com Borges “é um presente que a ele devo a vida”, e opina que o papa Bergoglio tem a sabedoria do escritor argentino.
Após nos narrar outros episódios em relação a personalidades como Fellini ou Buñuel, confessa que ter conhecido Borges é para ele “o mesmo que ter conhecido a Dante, a Petrarca, a Shakespeare ou a Quevedo”. E lamenta que no mundo de hoje “faltam gênios como esses”.
A entrevista é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 10-11-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Até que ponto você viveu próximo destas duas celebridades?
Tocou-me falar em um momento muito dramático, que foi quando morreu Pablo Neruda, após o golpe militar de Pinochet. Eu era o correspondente do jornal La Opinión, de Buenos Aires, e tinha muito contato com Neruda. Ia visitá-lo todos os fins de semana. Ele morreu em circunstâncias terríveis, pobre Neruda...
Circunstâncias que não são totalmente conhecidas publicamente.
Já exumaram seus restos, mas não estão totalmente claras. Eu acredito que a morte de Neruda ocorreu porque lhe interromperam o tratamento, um tratamento médico rigoroso porque tinha um câncer de próstata com alguma metástase. Nessa época, não existia a quimioterapia, mas talvez tivesse vivido três ou quatro anos a mais. Já havia sido operado em Paris, e lhe aplicavam raios, que era o tratamento que existia nesse momento. Contudo, quando ocorre o golpe militar, interromperam o tratamento, e isso fez com que sua enfermidade se agravasse e que se acelerasse o processo de câncer que tinha. Tiveram que levá-lo a Santiago, e morreu dois dias depois. Isso que dizem, que lhe aplicaram uma injeção não é correto, porque Neruda já estava sentenciado à morte.
Já faz 40 anos do golpe...
Sim. Quanto tempo! Puxa... Eu vi tirar o cadáver de Allende do Palácio La Moneda.
Você foi preso?
Sim. Eu passei bastante mal. O fato de ser argentino, espanhol ou mexicano já era bastante suspeitoso para a gente de Pinochet. Eu não tinha nada a ver com o Partido Comunista, nem com o socialismo. Era um simples jornalista. Entretanto, dez dias após a morte de Neruda, colocaram-me na prisão pelo simples fato de ter falado no enterro de Neruda.
O que você disse no enterro?
Não me recordo o que exatamente. Foi uma despedida em nome dos poetas e escritores hispano-americanos. Foi um pedido de Matilde (sua esposa) e do diretor da Academia de Letras do Chile. Foram algumas palavras a mais, como as de outras três ou quatro pessoas que falaram. No entanto, isso saiu na capa do “Mercurio”, e no dia seguinte quase me fuzilaram. Salvei milagrosamente a minha vida. Sou um sobrevivente.
E Borges? Era uma pessoa complexa?
Não, para nada. Borges era uma pessoa encantadora: um grande conversador, um homem divertido, que não tinha lugares comuns, com um grande senso de humor... Eu tenho um livro que se chama “El humor de Borges”, no qual conto todas as nossas anedotas. Minha relação com Borges é um presente que a ele devo a vida. Borges era formidável. Sempre trabalhava com as palavras, utilizando um pouco a técnica de Oscar Wilde, desse humor inglês, dessa ironia.
Uma vez, convidaram-nos para almoçar e, quando fomos lavar as mãos, não saia água da torneira. Então, perguntei-lhe: “O que está acontecendo, Borges? Não sai água?” E ao virar me respondeu: “Sim, mas com escrúpulos”.
Outro dia, estando aqui em Madri, tínhamos que ir a um lugar e nós nos perdemos. Acreditava-se que eu era “o guia”, então, disse-me de pronto: “Felicito-o, Alifano: você tem um perfeito senso de desorientação”.
Borges foi um gênio literário. Não tenho dúvidas em afirmar que foi o escritor mais importante do século XX. E o escritor mais literário, talvez, de toda a história da literatura. O único escritor para o qual se justifica a obra completa. Porque se você adquire a obra completa de um escritor, irá perceber que conta com altos e baixos, histórias melhores e outras com menor qualidade... Pelo contrário, em Borges está tudo escrito em um mesmo registro. Na realidade, não é um escritor complexo para nada, o que ocorre é que ele jogava com essa erudição. E antes de tudo é um grande humorista. Em suas milongas, por exemplo, o humor se dá de maneira rasante.
Você que também conhece Bergoglio, acredita que possui algo de “borgiano”?
Acredito que possui a sabedoria de Borges. Ele confessou que é um devoto leitor de Borges, e como professor de Literatura, sempre pediu para ler Borges em suas aulas. Bergoglio gosta muito da poesia, ele mesmo também já escreveu poesia, e, além disso, é um devoto do tango. Logo, alguns amigos meus do Instituto Gardeliano irão visitá-lo, e o levarão a coleção completa das obras de Gardel.
Você acredita que é um Papa querido?
É claro. Além disso, acredito que significa uma grande revolução para a Igreja.
Realmente é o que parece ser?
É verdade que enquanto foi arcebispo de Buenos Aires, a imagem que passava era mais ríspida, e que agora parece mais alegre e, inclusive, mais jovem. O amigo que agora irá vê-lo (o diretor do Instituto Gardeliano) é muito bom escritor e melhor pessoa ainda. Ele fazia um programa no canal da arquidiocese, um programa muito lindo e interessante que era transmitido duas vezes por semana. Ele não tinha amizade com Bergoglio, mas um dia o encontrou no metrô. Bergoglio estava lendo, e meu amigo se aproximou para cumprimentá-lo. Bergoglio levantou a cabeça, reconheceu-lhe, fez o cumprimento e continuou lendo, e meu amigo ficou muito consternado porque ele continuou com sua leitura.
Mais tarde, voltaram a se encontrar numa festa de final de ano, do canal da arquidiocese, e disse-lhe que tinha ficado muito consternado pelo encontro no metrô. Então, Bergoglio explicou-lhe que ele aproveitava esses minutos para ler as coisas que gosta e que realmente precisa ler, porque assim que chegava a seu escritório ficava louco com as coisas que tinha para fazer. Bergoglio viajava no metrô justamente para poder ficar tranquilo, de 15 a 20 minutos, e ter esse tempo para ler. Às vezes, inclusive intencionalmente, passava da estação para continuar lendo.
Você consegue imaginar um cardeal europeu viajando em um metrô?
Para nada. Ao contrário disso, Bergoglio continua morando em Santa Marta. E seu local de residência em Buenos Aires era compartilhado com outro sacerdote.
É uma pessoa extraordinária em todos os sentidos. E, além disso, é um homem que conhece a vida, que tem muita experiência.
É o Papa que a Igreja necessita hoje?
Sem dúvida. Estou definitivamente convencido disso. E, inclusive, acredito que poderia ter sido antes. Todavia, ele não quis.
Há uma filmagem da televisão italiana na qual se vê a forma como Ratzinger lhe diz: “da próxima vez você terá que aceitar, porque você é um soldado meu” (pelo fato dos jesuítas serem “soldados” do Papa).
Você é crente?
Sou crente, mas um pouco agnóstico. Sigo um pouco o caminho de Borges, Pío Baroja e outros muitos. Entretanto, ao agnóstico não há impedimento para acreditar em Deus. Simplesmente, os agnósticos consideram que o homem não está capacitado para resolver o problema do Absoluto. Eu continuo tendo minhas dúvidas, como todos. Parece que Henry Miller dizia “se houvesse um clube dos duvidosos, eu seria o presidente”.
A nomeação de um pontífice vem revestida pelo sobrenatural, porque se supõe que os cardeais não elegem unicamente como homens, mas que há um sopro do Espírito, etc. Contudo, acontece que nesta última nomeação parece ainda mais sobrenatural a decolagem que a Igreja fez, em muito pouco tempo, quando vinha de uma situação dramática.
Eu acredito que sim. Estas coisas acontecem de uma maneira muito misteriosa, e o Vaticano é um Estado muito particular. Eu estive estudando o tema da corrupção no IOR, e cheguei a conhecer todos os personagens envolvidos. R. Calvi, por exemplo, pareceu-me uma espécie de mecenas. Ele viajava muito para a América espanhola e esteve a ponto de levar uma exposição de Caravaggio ao Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires. O diretor do Museu era muito meu amigo (eu o ajudava, às vezes, na parte de imprensa), e Calvi o prometeu que levaria a exposição ao Museu. No entanto, era dessa gente mafiosa, que é tão encantadora como terrível.
Encantadores de serpentes?
Sim. Todos os personagens perigosos são especiais. A genialidade e o mal tem uma afinidade, uma espécie de atrativo.
Após toda uma vida dedicada ao jornalismo, ultimamente você está se inclinando mais pela literatura?
Sim. Estou começando a fazer um balanço, a escrever minhas coisas... Embora não tenha abandonado totalmente a PROA, a revista que Borges fundou, da qual já saíram quase 100 números. Nesse momento, a Biblioteca Miguel de Cervantes irá digitalizá-la, já está trabalhando com isso.
Você também teve conversas e experiências com personalidades como Perón e Fellini...
Sim. Algumas dessas conversas estão publicadas no livro “La entrevista”. Tive a sorte também de conhecê-los de perto, de ter uma relação de amizade com muitos deles. Por exemplo, com Fellini e sua mulher tive uma relação muito íntima, assim como com Buñuel, com quem estive a ponto de trabalhar no México. Buñuel é uma pessoa extraordinária. Ele conversou com Franco, aqui, embora não se saiba a razão pela qual isso foi ocultado durante muito tempo. Conversaram durante uma hora, o galego e o aragonês, e quando Buñuel ia sair, parece que Franco abriu uma porta e disse a Carmen que preparasse uma panqueca para que Buñuel ficasse para comer com eles. Buñuel também me contou que o final de Viridiana foi lhe sugerido por Franco. De fato, foi um filme que não censuraram.
Quais os projetos que você tem para o futuro?
Continuar escrevendo. É o que faço todos os dias.
Você gastou muitos anos de sua vida e de sua pesquisa em um projeto sobre Dante...
Sim. Foi um trabalho longo e continuado (fiquei aproximadamente 15 anos pesquisando sua vida). Para mim, ter conhecido a Borges é como ter conhecido a Dante, a Petrarca, a Shakespeare ou a Quevedo. São equivalentes.
Já não restam gênios dessa grandeza?
Acredito que são um pouco escassos. No entanto, talvez existam, e o que ocorre é que nós os desconhecemos. Costuma acontecer isso.
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“O papa Francisco tem a sabedoria de Borges”, afirma o jornalista e poeta Roberto Alifano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU