Por: Cesar Sanson | 06 Novembro 2013
Seja pela grande visibilidade da repressão aos protestos, seja pela truculência com que age no dia a dia contra uma parte da população, a questão da desmilitarização da polícia foi incorporada à pauta das manifestações.
A reportagem é de Tânia Caliari e publicada pelo sítio Retrato do Brasil e reproduzida pela agência Brasil de Fato, 05-11-2013.
Sob o amplo vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp), um jovem conversa com um major da Polícia Militar (PM). Eles discutem a respeito do trajeto a ser seguido pelos manifestantes reunidos no local, que dali a pouco realizarão mais um protesto na capital paulista, centro difusor das grandes manifestações ocorridas em junho no País. É meados de agosto e o major da PM quer saber por onde eles pretendem seguir. “Não sabemos”, responde o militante. “Os manifestantes vão decidir na hora por onde ir”. “Não queremos vandalismo, queremos uma manifestação ordeira”, diz o policial. “Nós também. Vamos caminhar no meio da rua, se alguém sair para praticar alguma depredação, aí é com ele, não temos responsabilidade sobre ninguém”, rebate o manifestante.
“Mas então vocês nos apontam quem fizer algo errado”, sugere o PM, já cercado por mascarados vestidos de preto interessados na conversa. “Nós não vamos indicar nada, não estamos aqui para entregar ninguém”, é a resposta dada ao policial. “Vocês façam o seu trabalho de forma focada, sem dispersar a manifestação com gás ou tiro de borracha”. “Mas vocês têm de estar atentos…Vejam o que está acontecendo no Egito…”, argumenta o PM. A essa altura, mais atrás, outro manifestante diz em tom alto: “Qual é a brisa do Egito aí? Tá insinuando que a manifestação pode acabar com 600 mortos?” A referência ao país do Oriente Médio parece mesmo absurda. No dia anterior, conflitos ocorridos entre policiais e simpatizantes do presidente deposto por meio de um golpe, Mohammed Morsi, deixaram mais de 630 mortos em várias cidades egípcias.
A situação no Brasil é muito diferente: não houve golpe de Estado, o Exército não está nas ruas reprimindo os manifestantes, os protestos diminuíram e o nível de violência é muito menor que no Egito. Além disso, o regime democrático em vigor no País é o mais amplo de nossa história. E talvez seja por esse último aspecto que a discussão entre o militante e o policial, de alguma forma, evidencia as dificuldades da polícia brasileira em atuar nas recentes mobilizações. Como ajustar o controle da ordem pública com a democracia?
As grandes jornadas de junho, que levaram centenas de milhares de manifestantes às ruas a partir da mobilização do Movimento Passe Livre (MPL) pela redução das tarifas do transporte público em São Paulo e de amplos protestos contra a Copa das Confederações em capitais como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Fortaleza, além de na própria capital federal, colocaram a polícia diante do desafio de lidar com grandes multidões reunidas sem lideranças aparentes, que não raro acabaram com a dispersão violenta pela força pública.
Num segundo momento, de mobilizações esvaziadas, em várias cidades a polícia teve pela frente manifestantes propensos ao enfrentamento da ordem, seja depredando patrimônios, seja provocando e combatendo os próprios policiais. “Não há protocolo no mundo para atuar em turba ou confusão”, disse José Mariano Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, reagindo às críticas sobre a atuação da PM numa manifestação ocorrida em julho, que terminou com grande quebradeira de agências bancárias e lojas no bairro do Leblon, na capital fluminense. “Elas colocam a polícia entre a prevaricação e o abuso de autoridade”.
Beltrame referiu-se aos manifestantes que utilizam a tática black bloc – bloco negro –, marcada pelo enfrentamento à polícia e pela depredação de imóveis e bens públicos e privados, neste caso instalações de corporações apontadas como símbolos do capitalismo, como bancos e grandes cadeias de comércio e serviços. Muitos desses ativistas se vestem de preto, usam máscaras e se movimentam em grupo, daí o nome. Uma das expressões mais recentes da tática blackbloc ocorreu nos EUA, no ano passado, durante o Occupy WallStreet, movimento de contestação aos altos ganhos de executivos, corporações e operadores do mercado financeiro. O Occupy teve caráter pacífico, mas em várias cidades, como Oakland, na Califórnia, acabou marcado pela tática black bloc, classificada pelo jornalista Chris Hedges como “câncer”, já que teria prejudicado o movimento, que acabou isolado diante da ampla rejeição social ao uso da violência pelos manifestantes.
Para Rafael Alcadipani, professor e pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV), que acompanha as táticas black bloc em São Paulo, as PMs têm lidado com um tipo de protesto que carrega em si a lógica da guerrilha, para as quais não estão preparadas. “A estrutura militar das polícias é o exemplo clássico de organização que segue uma estrutura rígida e burocratizada”, explica Alcadipani em texto produzido recentemente. Ele contrapõe as limitações da organização policial com a capacidade constante de surpreender de um grupo guerrilheiro. “Os manifestantes caminham em conjunto, mas em momentos específicos se dividem, e grupos menores ou mesmo indivíduos praticam pichações, por exemplo”.
Segundo o pesquisador, o fato de os manifestantes que utilizam a tática black bloc se vestirem de forma igual mostra “a dimensão de pouca visibilidade guerrilheira”. “São manifestações que duram inúmeras horas e se deslocam pela cidade, causando cansaço na força policial, que, muitas vezes, carrega equipamentos pesados e veste uniformes bastante desconfortáveis”, diz ele a Retrato do Brasil.
Para Alcadipani, as manifestações ao estilo black bloc são uma nova forma de exercício de pressão popular sobre os governantes. “Elas também canalizam insatisfações com a desigualdade e com os problemas do País. O desafio é saber como manifestantes guerrilheiros e PMs conseguirão interagir preservando a ordem democrática”. Entrevistado em meados de agosto, Alcadipani avaliou que a PM paulista havia oscilado entre o justo uso da força e a violência durante as grandes manifestações de junho, enquanto, a partir de julho, nas pequenas marchas que passaram a ocorrer com a presença black bloc , a PM não tinha sido violenta. “O oficial que geralmente está presente é respeitado pelos meninos, há um diálogo, e o Batalhão de Choque quase nunca é chamado”, diz.
Menos de um mês mais tarde, analisando os confrontos ocorridos no dia 7 de setembro na cidade, Alcadipani revê sua avaliação – ele afirma ter visto várias reações destemperadas de policiais. “Vi nas ruas e em registros na internet: a polícia foi violenta sim”. Ele destaca três episódios: o ferimento de um rapaz por um estilhaço de granada de gás, que o levou a perder a visão; o atropelamento de um manifestante por uma viatura; e a ação de um policial que, acuado, sacou a arma e atirou para o chão – um dos tiros ricocheteou e feriu o fotógrafo Tercio Teixeira.
O fotógrafo conta que, ao seguir uma multidão que corria atrás de um carro – dirigido por um civil – que havia atropelado manifestantes, acabou bem ao lado de dois policiais da Rocan, que utilizavam motos. Com a proximidade dos manifestantes, um dos policiais deixou o local, mas o outro permaneceu e desceu do veículo, apontando sua arma para as pessoas e dando dois tiros – com munição real – a esmo. Teixeira percebeu que o policial ficou apavorado após um dos ativistas se aproximar e derrubar sua moto. Ele, então, fez vários disparos para o chão. “Foi uma besteira do policial, que resolveu enfrentar os manifestantes e depois se sentiu acuado”, diz Teixeira, autor de fotos publicadas nesta edição – ele acabou sendo alvejado, de forma superficial, por dois fragmentos de um dos projéteis que ricocheteou no calçamento.
Se a polícia agiu de forma mais violenta no dia 7, os adeptos do black bloc também se esmeraram em sua ofensiva, atacando a Câmara Municipal paulistana a pedradas e depredando várias agências bancárias, edifícios públicos e privados, além de viaturas policiais nas regiões da Praça da Sé e da avenida Paulista. Mas, então, a polícia não deveria agir? Ou deveria atuar de forma diferente? Afinal, o que é a polícia?
O coronel Ibis Silva Pereira, subdiretor de Ensino da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, expõe uma definição clássica: a polícia é a instituição que coloca em prática o monopólio legítimo da violência do Estado. “O Estado é um órgão que se estrutura a partir da ideia do monopólio da violência. É por isso que ele arranca nosso dinheiro pelos impostos, reboca nosso carro quando paramos no lugar errado, coloca a gente na cadeia, manda a polícia bater na gente quando a gente começa a quebrar o patrimônio dos outros”. “Esse é o Estado”, resume o policial, formado em Direito, com mestrado em História e pós-graduação em Filosofia, que dirigiu por dois anos a Academia de Polícia Militar Dom João VI, de formação de oficiais da PM fluminense.
O coronel explica que quando se trata de controlar as grandes manifestações, a competência prioritária – mas não exclusiva – é dos Batalhões de Choque. “No mundo inteiro é assim. Talvez esse nome devesse até mudar…”, diz Pereira. “Essa é uma nomenclatura usada desde os anos 1960, quando as grandes manifestações começaram no mundo: em 1968, na Europa e nos EUA, contra a guerra do Vietnã”. Reconhecendo que a PM fluminense foi violenta na repressão dos primeiros protestos realizados na capital durante a Copa das Confederações, o coronel diz que o que se busca agora é instruir os oficiais para trabalhar a possibilidade da negociação. “No exterior a gente vê no meio dessas manifestações um policial com megafone falando com a multidão. Mas isso não é fácil como parece. É um desafio”.
O batalhão de choque é geralmente subordinado a um comando específico e sua atuação é balizada por manuais das corporações que determinam funções e modos de ação. Há os policiais escudeiros, por exemplo, e há poucos com função de granadeiro ou atirador, responsáveis por atirar as bombas de gás e balas de borracha.
Em entrevista ao portal G1, o coronel Carlos Savioli, que no início de agosto recebeu o comando da Tropa de Choque da PM paulista – após a saída do coronel César Morelli debaixo de muitas críticas devido à atuação da tropa durante as manifestações de junho na capital –, disse que os pelotões de até 20 policiais que atuam nos protestos passariam a ter, em vez de três atiradores com munição de borracha, apenas um. “Eu sou contra o uso de elastômero [borracha]. Não vou proibir, porque se um manifestante acende um coquetel molotov, o policial precisa fazer o disparo para prevenir”. Em São Paulo, a tropa de choque tem 5,5 mil homens, divididos em quatro batalhões, incluindo a atual Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), equipe criada para coibir roubos a bancos nos anos 1970. Segundo Guaracy Mingardi, analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o novo comandante teria dois grandes desafios: acertar o trabalho da Tropa de Choque nas manifestações e manter a Rota sob controle.
A Rota e o Choque são duas forças já estigmatizadas como violentas. A Rota, pelo histórico de suas ações nas periferias, marcadas pelo alto grau de letalidade e ilegalidades. E o Batalhão de Choque, por ter atuado contra manifestações durante a ditadura militar. Nos protestos deste ano em São Paulo, o Choque esteve presente em quatro das nove manifestações ocorridas em junho. Em todas as ocasiões em que esteve nas ruas, houve confrontos com manifestantes, sendo que sua ação nos protestos realizados em 13 de junho foi particularmente desastrosa. Um exemplo foi o uso inadequado das balas de borracha, atiradas a menos de 20 metros de distância dos manifestantes, atingindo cabeça e tronco de várias pessoas, o que contraria recomendações do uso do equipamento.
“A Polícia Militar atuou dentro dos preceitos constitucionais para garantir o direito de livre manifestação, contudo é seu dever assegurar os direitos de toda a população, incluindo-se o direito de ir e vir”. Por meio dessa nota, a PM paulista não reconheceu abusos, mas as autoridades sentiram o golpe. O prefeito da capital, Fernando Haddad, declarou que os protocolos de ação não foram seguidos. E o governador paulista, Geraldo Alckmin, proibiu o uso de balas de borracha a partir da manifestação seguinte. Na coletiva à imprensa que antecedeu os protestos do dia 17 de junho, que reuniu 100 mil pessoas na capital e na qual o Batalhão de Choque não esteve presente, o secretário de Segurança Pública, Fernando Vieira, disse que “quem se desviou das suas normas de ação e agiu abusivamente tem que responder de acordo com as normas”.
O comandante-geral da PM, Benedito Meira, garantiu que os policiais que não portassem tarjeta de identificação seriam responsabilizados. Além disso, o secretário garantiu que ninguém seria detido por portar vinagre, em referência ao grande número de manifestantes levados para delegacias por estar com o produto no dia 13.
Esse tipo de atitude da PM levou o MPL e outras nove entidades do movimento popular e de direitos humanos a solicitarem ao Ministério Público o oferecimento de denúncia contra o tenente-coronel Ben Hur Junqueira Neto por abuso de autoridade. Junqueira admitiu em uma gravação que estava prendendo manifestantes para averiguação, prática comum durante o período da ditadura militar. A atual Constituição, no entanto, estabelece que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Segundo Nina Cappello, militante do MPL, a denúncia dos movimentos se concentrou nas prisões porque há o registro da confissão do oficial. “Há inúmeros casos de agressões físicas, mas às vezes é difícil até mesmo saber o nome do agressor, muitos não usavam identificação”, disse.
Blogs, o site YouTube e redes sociais na internet, além de órgãos da grande imprensa, registraram fartamente abusos e uso desproporcional da força policial cometidos durante as manifestações em várias cidades do Brasil. Um registro de 7 de setembro mostra o caso do capitão Bruno, da PM do Distrito Federal, que, depois de jogar gás de pimenta sobre manifestantes que agiam dentro dos limites impostos por ele, diz para uma câmera: “Joguei porque eu quis. Pode me denunciar. Capitão Bruno, batalhão do choque”.
Representantes de Ministérios Públicos em vários estados estão se servindo dessas imagens para encaminhar denúncias ou pedidos de esclarecimentos às corregedorias das PMs. Em alguns casos, como no Rio de Janeiro, em que policiais foram filmados tirando a roupa de uma moradora de rua durante a repressão a um protesto, e o de um oficial usando spray de pimenta deliberadamente sobre jornalistas e advogados, os policiais foram afastados do serviço mesmo antes das apurações.
Paulo Cunha Jr., da 2ª Promotoria de Justiça de Auditoria Militar do MPE-RJ, é um dos promotores que têm usado as imagens na apuração das denúncias. Em agosto, enviou uma série delas para que a Corregedoria Interna da PM identificasse, num prazo de cinco dias, os policiais envolvidos. O prazo não foi cumprido, “por excesso de trabalho da Corregedoria por esses dias”, segundo o promotor. Perguntado se as câmeras representavam um fortalecimento do poder popular contra a ação ilegal da polícia, o promotor ponderou: “Sim e não. Sim, porque nos permite tomar ciência de um contingente muito maior de fatos. E não, porque a imagem, por si só, não substitui os meios tradicionais de apuração. Ainda é necessário, por exemplo, ouvir a vítima, identificar o agressor, ouvir testemunhas, providenciar as provas periciais… Assim, não basta postar uma filmagem editada na internet e pedir providências. É preciso trazer o seu depoimento, fornecer as imagens sem cortes, enfim, é preciso envolver-se com a situação, o que muitas pessoas não querem”.
Diante das denúncias, as autoridades, em geral, responsabilizam individualmente os policiais envolvidos. A socióloga Ariadne Natal, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, para quem a atuação da PM paulista nos protestos foi “uma coisa de tentativa e erro ao longo do processo”, diz que é preocupante quando a responsabilidade cai sempre sobre a ação dos indivíduos. “A gente acompanha outras atividades da polícia, não só nas manifestações, e quando há erros a tentativa de explicação é sempre a de colocar o foco no indivíduo. Nunca é um problema sistemático, nunca é um problema de treinamento ou orientação. Essa não é a nossa percepção, porque quando algo acontece com frequência não dá pra você usar a explicação de que o problema está no indivíduo”.
Seja pela grande visibilidade da repressão aos protestos, seja pela truculência com que age no dia a dia contra uma parte da população, a questão da desmilitarização da polícia foi incorporada à pauta das manifestações. Uma aula pública, ministrada no vão do Masp, reuniu no início do mês passado acadêmicos e especialistas para falar a uma plateia de cerca de 200 pessoas. O encontro pretendia avançar no debate do tema “a polícia que queremos”. Durante a discussão a desmilitarização foi apresentada como algo necessário, mas insuficiente. Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito da FGV, diz – aos berros, devido à falha do microfone –, que há uma percepção forte de que a segurança pública no País não funciona. “Temos que reivindicar ao Estado uma política de segurança pública capaz de assegurar a liberdade das pessoas, a vida e, eventualmente, o patrimônio. Mas é fundamental que haja essa garantia de forma igualitária. A democracia passa pela ideia de que a polícia tenha a mesma resposta para toda a população, e a mesma abordagem. É totalmente diferente uma abordagem policial a mim, homem branco, 50 anos, bem vestido, acadêmico, e uma abordagem a um jovem negro e pobre”.
O sociólogo Renato Sérgio Lima, do Fórum Nacional de Segurança Pública, falando ao microfone já consertado, diz que temos um modelo ineficaz e caro. “Gastamos como Alemanha, França e Reino Unido, anualmente, 50 bilhões de dólares com segurança pública, e temos os policiais que mais matam e mais morrem. Por que esse padrão operacional ainda é aceito pela própria corporação?”.
“A gente, muitas vezes, odeia a polícia”, diz Carolina Ricardo, do Instituto Sou da Paz. “Mas ela está aí, e não é pouca coisa. Polícia é o órgão autorizado a usar a força, e a força pode ser boa para nos defender em vários casos”. Para ela, nem todos os problemas se devem à militarização. A real questão, em sua concepção, é que a polícia não realiza um ciclo integrado de prevenção, repressão e investigação. A PM faz o policiamento ostensivo e prende o suspeito. A Polícia Civil é quem faz a investigação, frequentemente sem aproveitar o conhecimento do policial que o prendeu. O número de casos solucionados pela Polícia Civil é pífio. “Não adianta pedir mudanças só na PM. Temos que olhar as duas polícias. E olha que sobre a Polícia Civil não temos nenhum controle. A PM, pelo menos, identificamos pela farda”, diz. De fato, no rastro dos protestos há também fortes críticas a policiais civis. Advogados de São Paulo, Belo Horizonte e Recife afirmam que houve vários casos em que os defensores tiveram dificuldades para localizar e ter acesso a manifestantes presos em delegacias.
Talvez para não desanimar a plateia, Vieira retoma o microfone e diz que o Brasil não é o primeiro e nem o único país em que a polícia enfrenta impasses com a instauração da democracia. “Como era a polícia na Alemanha quando acabou o nazismo? E na África do Sul, com o fim do apartheid? A nossa polícia já foi pior, melhorou muito e esta não é uma questão insolúvel, mas precisa ter uma direção”.
No quartel-general da PM do Rio de Janeiro, no centro da cidade, o coronel Pereira atesta essa evolução. “Em nenhuma escola do Brasil um policial entra numa sala de aula para ouvir: a sociedade é inimiga, você tem que bater em manifestante. Mas é aí que eu acho que tem o grande nó da violência no Brasil”. Para Pereira, “a violência ainda é uma gramática que nós admitimos válida para azeitar as nossas relações sociais”.
O coronel sabe que o processo de mudança é lento. E que não é linear. Seu grande inspirador como pensador e educador na polícia é o coronel Carlos Cerqueira, que nos períodos de 1983-1987, durante o governo Leonel Brizola, e de 1991-1994, na administração Nilo Batista, acumulou os cargos de secretário e comandante-geral da Polícia Militar. Intelectual, autor de vários ensaios, pioneiro em criar uma literatura sobre polícia no Brasil, Cerqueira assumiu a missão de mudar a política de “pé na porta” no trato da polícia com a população, então em voga. No texto “As políticas de segurança pública do governo Leonel Brizola”, Cerqueira afirma: “Não tinha dúvidas de que as diretrizes políticas e o novo contexto democrático estavam exigindo uma nova polícia, um novo policial e uma nova concepção de ordem pública que fugisse dos parâmetros, até então adotados, da doutrina de segurança nacional. Tinha certeza de que havia necessidade de uma nova formulação filosófica, organizacional e operacional da polícia brasileira, acreditando que aquele momento democrático era uma importante oportunidade para tal empreendimento (como me enganei!)”. Em seu segundo período à frente da polícia, Cerqueira teve que enfrentar duas chacinas cometidas em 1993 por policiais: a da Candelária e a de Vigário Geral. Foram afastados vários agentes envolvidos. O coronel acabou assassinado em 1999, num crime jamais solucionado.
Não muito longe do centro de comando da PM, um protesto reúne cerca de 150 pessoas em frente à Câmara Municipal. A manifestação é contra a composição totalmente governista da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga os contratos de transportes coletivos da cidade.
Sentado entre vários manifestantes na escadaria que dá acesso à Câmara, um rapaz expõe um argumento simples para aderir à tática black bloc: “Faço isso porque a polícia é covarde”. Ele se levanta, sobe os degraus e segue para uma das colunas da fachada neocolonial voltada para o amplo espaço da Cinelândia, tradicional local de manifestações populares na cidade. O rapaz se abaixa e aponta para uma foto pregada na base da coluna. A imagem mostra um policial utilizando spray de pimenta contra uma menininha negra, que está ao lado de sua mãe e de sua irmã. Não era uma imagem dos protestos atuais, mas de 2011, quando moradores do Morro do Bumba, em Niterói, manifestaram-se cobrando solução para seu problema de moradia.
Para o rapaz, indignado com a atuação policial, faz sentido tentar evitar por meio da tática black bloc que outros manifestantes sejam atingidos pela polícia.
Analisando essa questão, proposta por RB, o promotor Paulo Cunha Jr. diz que o órgão responsável pelo controle externo da polícia é o Ministério Público. “O cidadão pode e deve colaborar denunciando, filmando etc. Mas colocar-se como uma tropa paramilitar com a intenção de atacar a polícia nunca será a solução. “Violência gera violência e a capacidade de ação do Estado é sempre maior do que a de qualquer grupo como o black bloc”. O promotor lembra que vivemos num Estado Democrático de Direito e não numa ditadura. “Todos os excessos policiais estão sendo apurados; a imprensa age livremente; ninguém foi privado de sua liberdade arbitrariamente; temos vários advogados e promotores de justiça atuando nas manifestações. Não há razão para se utilizar da violência como forma de se antagonizar com a polícia. Isso, na verdade, apenas eleva o grau de tensão e insegurança durante as manifestações”.
O coronel Pereira também considera a atitude do rapaz preocupante. “Mas ao mesmo tempo, ele aponta para alguma coisa sobre a qual a gente precisa pensar. Precisamos democratizar o nosso sistema de justiça criminal, tornando-o mais acessível à população, mais compreensível”. Segundo Pereira, do sistema de justiça criminal, a maior parte da população só tem contato com a polícia. “O Ministério Público, que é o fiscal da polícia, que é o dono da ação penal no Brasil, é ainda muito distante. O Poder Judiciário, atuando no final da linha para mandar as pessoas para a cadeia, também é algo distante. A polícia é o órgão da justiça criminal que a população mais sente. Um sistema mais democrático esvaziaria o discurso desse rapaz”.
Enquanto o sistema não melhora, o que preocupa o coronel é que, para ele, há algo de fascista na atitude black bloc de enfrentamento à polícia. “As SA [abreviação de Sturmabteilung, ou "divisão de assalto"] formaram uma organização paramilitar ligada ao partido nazista, que depois deram origem às SS [abreviação de Schutzstaffel, em português “tropa de proteção”, que formou a elite nazista do Exército alemão], começaram exatamente com esse argumento – de proteger as manifestações dos militantes do partido. Exatamente o mesmo discurso!”. Dias depois, a filósofa Marilena Chauí iria à Academia da Polícia Militar do Rio participar de um ciclo de palestras aos futuros oficiais. Durante sua conferência, ela também disse que a ideologia black bloc estava mais para fascista do que para anarquista – seu argumento central foi o de que esses ativistas atacavam indivíduos.
Esther Solano, socióloga e professora da Universidade Federal de São Paulo, acompanha os adeptos da tática black bloc em seus protestos na capital paulista. Ela discorda totalmente das avaliações de Pereira e Marilena e diz nunca ter visto um militante agredindo pessoas. Ela caminha durante horas nos protestos para trocar algumas palavras com os rapazes e moças mascarados e tentar entendê-los. “Pelo que pude perceber, a maioria vem de uma classe meio baixa, alguns da periferia, outros de áreas populares do centro. Alguns trabalham, mas a maior parte é de estudantes de escolas públicas e alguns são universitários”.
Esther avalia que a maioria dos jovens que adere ao black bloc está na fase de iniciação política e muito interessada em se aprofundar no tema. “Eles vão pegando um suporte daqui, uma leitura de lá, vão conversando entre eles, vão às manifestações, mas o grande meio de informação são as redes sociais”. As páginas black bloc na internet trazem geralmente literatura anarquista – textos de autores como Proudhon, Malatesta, Bakunin. E muitos clips de música anarcopunk. Há na página do black bloc do Rio de Janeiro, no Facebook, um alerta para que os manifestantes ataquem apenas símbolos do capitalismo, sem depredar pontos de ônibus ou lixeiras, por exemplo. Há pelo menos um caso, registrado em São Paulo, em que ativistas queimam um veículo particular. Nas manifestações, os militantes mais “iniciados” tentam orientar os novos, alertando que o alvo é o “sistema” e não o cidadão comum.
A pesquisadora concorda com a linha de interpretação sobre os black blocs que vê em suas atitudes uma violência simbólica, feita para chamar a atenção para aqueles que são os verdadeiros exploradores. Com essas ações, os ativistas também estariam tentando redefinir o conceito de vândalo, ou melhor, redefinir quem é o vândalo. “O [filósofo francês Michel] Foucault aponta uma lógica muito forte entre o poder e o saber. E o poder está com quem estabelece as categorias, com quem define o que é violência, o que é vandalismo, o que é política. E essa definição tem uma ideologia por trás”, diz.
Como o conceito de vândalo está no Código Penal brasileiro e é tipificado como crime, o Estado já definiu que vândalo é aquele que atenta contra a propriedade particular ou pública. “E o que eles querem é contestar essa lógica de categorias. Um menino falou comigo: ‘nós não somos vândalos, vândalos são eles, Estado e empresas, que nos impõem esse transporte, que deixam o povo morrer na fila do hospital’. Eles querem resignificar o termo”.
A pesquisadora evoca novamente Foucault para dizer que a sociedade vive sob o poder disciplinar do Estado, a cara política do poder, acompanhado das corporações, que são a cara econômica, que na verdade permeia tudo. A sociedade é, geralmente, passiva, objeto do poder disciplinar cujos agentes ativos seriam o Estado – com suas instituições –, a mídia e as corporações, com capacidade de vigiar e punir. “A sociedade geralmente absorve a informação da mídia e não está preocupada em criar sua própria interpretação. Assim, fica fácil classificar os adeptos do black bloc como vândalos”. Esther percebe na constante provocação que esses manifestantes fazem à polícia e nas quebradeiras que promovem a vontade de contestar o monopólio da violência do Estado. “Acho que o pensamento deles é um pouco esse”.
Se essa é uma luta de saberes, poderes e definições, é certamente uma luta desigual, ainda mais com o crescente isolamento dos militantes black bloc, recriminados pelo Estado, por partidos políticos e por amplos extratos sociais. No protesto da Cinelândia contra a CPI que investiga os contratos de transporte público, um adolescente de 16 anos diz que não toma parte do black bloc, mas que admira suas ações. “Eles têm muita disposição e grande potencial, mas falta formação política”. Ele milita na Unidade Vermelha, “um grupo comunista revolucionário”, que realiza estudos e discussões de textos marxistas. “Amanhã vai ter uma aula sobre anarquismo aqui na escadaria”, diz.
Rafael Viana, militante da Federação Anarquista do Rio de Janeiro (Farj) é o jovem que dará a aula. Formado em História e fazendo mestrado sobre o anarquismo no Brasil entre 1946 e 1964, Viana afirma que a Farj está participando desde o início das articulações das manifestações, mas não é adepta da prática black bloc. Explica que o anarquismo tem duas vertentes clássicas: a que adota a estratégia de massa e a insurrecionalista. As duas defendem o uso da violência, e a diferença entre as duas está no papel atribuído aos confrontos no processo. Para os insurrecionalistas, a violência é o gatilho que vai provocar alguma mudança. Já a vertente de estratégia de massa, que sempre foi hegemônica no anarquismo, defende que o papel da violência deve ocorrer a partir dos movimentos de massa bem constituídos, em movimentos populares e sindicatos.
Segundo Viana, tanto a Farj, como a Confederação Anarquista Brasileira, defendem a tradição de acumular força social, em grupos autogestionados, autônomos, organizando o poder popular. “Quando os grupos estiverem organizados a ponto de serem capazes de ameaçar e confrontar os poderes constituídos, aí sim, vamos à violência inevitável dos confrontos de interesse”. Naquele momento, o PSTU havia acabado de divulgar texto contrário às práticas black bloc. Para o partido, a tática não contribui e só atrapalhava os movimentos sociais. “Nós não concordamos. Nós não fazemos a prática black bloc, mas não condenamos. Ora, o capitalismo é violento. A paz num sistema capitalista é em si uma violência de classe”.
Após dois meses provocando e enfrentando a polícia, a partir de setembro os ativistas black bloc passaram a enfrentar o rigor da lei. O Estado fechou o cerco, isolando-os dos demais – e cada vez mais raros – manifestantes que ainda insistiam em protestar. No 7 de setembro, em São Paulo, no início da tarde, o tenente Becker, que comandava um dos pelotões da Companhia de Patrulhamento de Área Metropolitana 1, aguardava a saída da manifestação em frente ao Masp. Até aquele momento, seus policiais já haviam abordado vários militantes mascarados. “Pedimos a identificação, tiramos as máscaras e registramos seus rostos”, explica Becker apontando para a câmera ajustada em seu peito. “Estamos gravando tudo, para provar que não há abuso. Se tiver confusão depois, quebradeira, eu envio o material para o Ministério Público dizendo que essas pessoas estavam na confusão”. Por fim, um policial se aproxima, pede e anota a identificação da repórter.
A ação do pelotão do tenente Becker em identificar manifestantes mascarados fazia parte de um conjunto de ações efetivadas pelos governos estaduais a partir da crescente utilização da tática black bloc nos protestos e da convocação de um “badernaço” nacional em várias páginas de grupos autointitulados Anonymous e Black Bloc, marcado para o dia da independência. Na véspera, o governador Alckmin declarou que as máscaras não estavam proibidas nos protestos, mas instruiu sua polícia a abordar os mascarados para identificação.
As atitudes mais articuladas contra os adeptos do black bloc ocorreram no Rio de Janeiro, onde o governador Sérgio Cabral foi o principal alvo dos protestos e cuja capital passava por confrontos semanais entre policiais e manifestantes, mascarados ou não. Antes mesmo de ter uma lei proibindo o uso de máscaras aprovada na Assembleia Legislativa, o governo fluminense obteve uma decisão judicial que obrigava a identificação de quem tivesse o rosto coberto nas manifestações. E que previa a ida do mascarado à delegacia para fazer identificação criminal, deixando arquivados foto e impressões digitais, caso se recusassem a se identificar nas ruas, ou se o policial assim julgasse necessário.
O pedido à Justiça havia sido feito por uma comissão criada pelo governo estadual para “reprimir conjuntamente as ações de vandalismo em manifestações de forma mais intensa”. O decreto original de criação desse órgão determinava que as empresas operadoras de telefonia e provedores de internet teriam no máximo 24 horas para atenderem pedidos de informações feitos pela comissão sobre a comunicação de clientes. Diante do protesto das operadoras, de juristas e da Ordem dos Advogados do Brasil, que apontavam a medida como inconstitucional,o governo Cabral recuou sobre a quebra de sigilo, mas manteve a comissão em atividade.
Os deputados estaduais do Rio aprovaram, por fim, a lei proibindo o uso de máscaras em manifestações. Diante da derrota de sua posição na Assembleia,contra a proibição das máscaras, o deputado Marcelo Freixo (Psol) disseque “o uso de máscara não é anonimato”. “A máscara é um símbolo de protesto. Essa lei é um grande equívoco que só vai criar mais conflitos nas ruas criminalizando quem decidir usar máscaras para protestar”. Para o deputado Paulo Melo (PMDB),presidente da Assembleia e autor da lei, os mascarados são uma “afronta às autoridades”.
Mas o golpe mais pesado veio no início do mês passado, dias antes do 7 de setembro,quando a Polícia Civil fluminense prendeu quatro administradores da página do BlackBloc-RJ no Facebook. Os policiais apreenderam em suas casas máscaras,computadores,uma faca e um pedaço de madeira com pregos afixados nas pontas, artefato conhecido como”jacaré”. Dois dias depois,a Justiça decretou a prisão preventiva dos rapazes, que foram indiciados por formação de quadrilha armada e incitação à violência. Desta vez o Estado usou seu poder para, inclusive,criar nova legislação contra o vandalismo.
O rigor da lei caiu também sobre manifestantes presos em São Paulo no dia 7, que foram acusados de tentativa de homicídio por terem atacado uma viatura da Guarda Civil Metropolitana com dois policiais dentro. E em Belo Horizonte, onde o dia da independência terminou com a detenção de mais de 50 manifestantes, a Polícia Civil abriu inquéritos criminais para apurar as responsabilidades individuais de 15 pessoas, acusadas de formação de milícia armada (crime inafiançável), dano ao patrimônio público e desacato à autoridade.
Em Pernambuco, onde o secretário de Defesa Social, Wilson Damásio, foi o primeiro do Brasil a anunciar a proibição do uso de máscaras nas manifestações e teve firme oposição do Ministério Público Estadual (MPE), o governo decidiu, afinal, não proibir os mascarados. E chamou várias instituições para discutir novos protocolos de atuação da polícia e de manifestantes nos protestos. Reuniu primeiramente representantes do Tribunal de Justiça, do MPE, da OAB e secretários de Estado. Depois, chamou ao debate entidades de direitos humanos e estudantis.
Convidado para discutir o protocolo, o advogado Alexandre Pachêco, do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social, entidade tradicional de direitos humanos do estado, disse que as organizações presentes não se sentiram à vontade para dar sugestões pontuais na proposta apresentada pelo governo. “Achamos que devemos discutir esses temas de maneira mais ampla, mais profunda”.
Para Pachêco, o País vive um momento de grandes contestações, perda de legitimidade da democracia representativa, e há uma expectativa muito grande de avanços democráticos. “Nos últimos dez anos tivemos avanços de certa ordem, mas a expectativa criada foi maior. Daí vem essa insatisfação canalizada por movimentos e coletivos sem estruturas hierárquicas e sequer projetos. Mas teriam de ter? Estão começando agora por meio da contestação e querem participar”. Segundo Pachêco, esse momento é crucial para a democracia. “Ou avançamos agora no processo democrático, ouvindo de fato esses manifestantes e criando canais reais de participação, ou caminharemos para um fechamento democrático, endurecendo as regras, endurecendo as leis em nome de uma suposta ameaça anarquista e vândala ao estado democrático de direito”.
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Polícia: Para que polícia? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU