Por: Andriolli Costa | 01 Novembro 2013
Fotos: Susana Rocca |
Desde 1988 a Constituição Federal normatiza a propriedade dos territórios indígenas e de áreas quilombolas como de usufruto exclusivo dos povos originários e seus descendentes. Atualmente, no entanto, o grande desafio é o de fazer cumprir o que está na letra da lei. “Por que, depois de 25 anos da Constituição, ainda há um número ínfimo de comunidades quilombolas tituladas?”, questiona a analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário do Incra/RS, Janaína Lobo. Ela, que atualmente é doutoranda em Antropologia Social pela UFRGS, ressalta que existem 82 processos em aberto para o reconhecimento destas comunidades, contra apenas três que já receberam esse título.
Dificuldade semelhante é apontada pelo professor da UFRGS e etnoarqueólogo José Otávio Catafesto, em relação ao reconhecimento de terras indígenas. Para ele, não é apenas a questão econômica que representa um dos grandes gargalos para o avanço da questão indígena no país. A dificuldade de romper com um sistema de pensamento ocidental e eurocêntrico, que enxerga erroneamente os indígenas como fósseis vivos ou representantes da infância da humanidade, também cumpre papel fundamental na questão. “Esta dificuldade vem de um nó de construção de identidade que está colocado no Brasil. A maior parte da população possui uma avó ou bisavó indígena, mas as pessoas sempre remetem a uma ascendência europeia, deixando a outra de lado.”
Estas foram as discussões que permearam a mesa-redonda Reconhecimento de culturas, direito à terra e a Constituição Federal de 88, que aconteceu na Unisinos no dia 28-10-2013 e contou com a participação dos dois pesquisadores. O evento, que fez parte do ciclo Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania, ocorreu na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Confira alguns dos principais pontos da discussão:
Morosidade das demarcações
O artigo 68 da Constituição Federal afirma: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Para a antropóloga Janaína Lobo, no entanto, é preciso humanizar o texto para o seu entendimento. “Leis regem pessoas, pessoas possuem trajetórias e não são abstrações.” Exatamente por isso, era importante começar com manifestações concretas da lentidão que envolve os processos de demarcação das terras quilombolas, todas no Rio Grande do Sul.
A Comunidade Quilombola de Palmas em Bagé, por exemplo, entrou com um pedido para o reconhecimento da área como terra quilombola em 2008. No ano seguinte, o Incra realizou um relatório antropológico, onde é descrito todo o percurso histórico do quilombo, com um trabalho de memória etnográfica. “Essa pesquisa mostrava que os três núcleos de Palmas possuíam relação irrefutável com o território”, pontua ela. No entanto, tão logo o relatório foi concluído, começaram a surgir problemas com os colonos do local.
“Em 2010, fazendeiros da região bloquearam as ruas com o intuito de reter a entrada do Incra. Sob um forte discurso reacionário e preconceituoso, os produtores de Bagé justificavam seus atos afirmando que nunca existiram quilombos em Bagé, que a relação com os negros sempre foi amistosa e que o Incra implementava conflitos”, lembra Lobo. Ainda segundo a pesquisadora, as 50 famílias quilombolas espalhadas entre os 800 hectares do local foram coagidas e perderam seus empregos nas fazendas da região devido à discussão que se sucedeu. O resultado: ainda em 2013, nada foi resolvido.
Povos contemporâneos
Janaína Lobo resgata o caso da Comunidade Quilombola dos Alpes, uma comunidade urbana localizada em Porto Alegre. O exemplo ainda hoje suscita muitas dúvidas, que são frequentemente endereçadas ao Incra. “O que é um quilombo? Para as pessoas é um local ermo aonde os negros se dirigiam. Mas ainda existe quilombo hoje em dia? Isso parece tão abstrato. Como se não tivesse ressonância com a contemporaneidade”, elenca ela. “Na verdade, as identidades coletivas que compõem o quilombo extrapolam essa definição”, ressalta. O quilombo não pertence a uma pessoa, mas a um grupo delas, que identificam esse lugar como sua propriedade coletiva. A prova de sua capacidade de organização e resistência é que persiste existindo mesmo com os conflitos agrários ou as pressões imobiliárias.
De modo semelhante, os indígenas também são vistos como fora de seu tempo. Segundo Catafesto, um em cada três índios está na cidade, o que faz a sua presença urbana mais frequente do que se imagina. “As pessoas acreditam que o índio legítimo não é o que está entre nós. Mas as terras indígenas no Sul do Brasil giram em torno de 10, 20 hectares. Querer que eles mantenham hoje o mesmo estilo de vida e reproduzam os sistemas que tinham antes é muita ilusão”.
Existem algumas diferenças entre os territórios indígenas e os quilombolas. A primeira é que a terra quilombola realmente pertence à coletividade do povo, sendo inalienável e intransferível. Já as terras indígenas pertencem à União e, quando desapropriadas, os produtores rurais que as possuíam não podem ser ressarcidos pelo governo. “Isto acontece porque aquela nunca deixou de ser terra de usufruto dos povos originários. Ou nunca deveria ter deixado de ser”, pontua Catafesto. E são justamente estes fatores que colaboram para a manutenção do imbróglio permanente entre estes povos e os ruralistas.
Quem é Janaína Lobo?
Janaína Campos Lobo é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão — UFMA e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS. Atualmente é doutoranda em Antropologia Social na UFRGS e desenvolve pesquisa sobre agenciamentos territoriais entre afrodescendentes, na província de Esmeraldas, Equador. Pesquisadora do Núcleo de Antropologia e Cidadania — Naci — UFRGS. Janaína também é analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário junto ao INCRA/RS.
Quem é José Otávio Catafesto?
José Otávio Catafesto de Souza é etnoarqueólogo, pesquisador e professor interessado por temas relacionados às questões dos povos originários do Mercosul. É formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS, onde também realizou mestrado e doutorado em Antropologia Social. Atua como professor adjunto na mesma universidade, onde coordena o LAE — Laboratório de Arqueologia e Etnologia, que desenvolve projetos de pesquisa sobre Territorialidade Mbyá-Guarani, Etnoarqueologia Ameríndia e Quilombola e Avaliação dos Impactos de Projetos de Desenvolvimento sobre coletivos rurais.
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Reconhecimento de culturas, direito à terra e a Constituição Federal de 88 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU