Por: André | 06 Julho 2013
Nestes dias em que o mundo segue com reverente atenção o que parece ser o fim da vida de uma das pessoas mais queridas e admiradas dos últimos tempos, Nelson Mandela, que ganhou um lugar proeminente na história universal por sua liderança na libertação de seu povo do ignominioso sistema do apartheid, queria fazer referência a uma das contribuições mais significativas de seu legado, a colocação em prática da justiça restaurativa.
A reportagem é do pastor Francisco Rodés, coordenador nacional da Pastoral da Capelania Carcerária do Conselho de Igrejas de Cuba (CIC), e publicada no sítio da Agencia Latino-Americana y Caribeña de Comunicación, 04-07-2013. A tradução é do Cepat.
Quando, no curso para a formação de capelães nas prisões, entramos na matéria da chamada justiça restaurativa (o que nos introduz num mundo conceitual diferente da justiça punitiva, baseada no código penal de cada país, que pensa apenas em esclarecer e castigar adequadamente o crime), nos demos conta de que a primeira, sem anular radicalmente a anterior, enfoca uma análise mais ampla, que inclui respostas às perguntas: quem foi prejudicado? Que responsabilidade deriva do prejuízo? Que se pode fazer pela vítima? Como a comunidade se envolve em um processo de restauração tanto do ofensor como da vítima? Pode parecer, no início da discussão, que navegamos em um mundo conceitual muito idealista, com poucas possibilidades reais de uma colocação em prática.
Felizmente, temos à mão o exemplo dado ao mundo por Nelson Mandela ao derrubar o vexatório sistema imposto pela minoria branca, colonialista e racista. Muitos pensaram que ao o primeiro presidente negro assumir a presidência da República da África do Sul, explodiria um novo ciclo de violência, agora vingativa contra todos os que cometeram violações e crimes dos direitos humanos. Mas Mandela surpreendeu o mundo anunciando que haveria uma anistia de todos os violadores, mas na condição de que reconhecessem tudo o que haviam feito e pedissem perdão às pessoas e famílias afetadas, assumindo a responsabilidade material pelas consequências do crime.
Com um desafio tão grande, não podemos senão imaginar quão difícil se fazia o caminho a ser trilhado. As feridas estavam frescas, o sangue havia corrido das veias de muitos jovens. Muitas famílias não perdoariam facilmente aqueles que haviam arrebatado a um de seus filhos. Foi um processo complexo e difícil, do qual toda a comunidade teve que participar e, de uma maneira especial, os próprios ministros religiosos, como mediadores. Sem dúvida, foi um processo de cura doloroso, testemunhado por alguns filmes que conseguiram captar as dramáticas cenas. Mas foi a salvação da África do Sul, o fim da espiral de violência, o começo de uma vida de unidade nacional e de paz.
Certa ocasião, no corredor de uma prisão, um interno relativamente jovem aproximou-se de mim e puxou conversa. Contou-me que havia cumprido 14 anos de prisão por ter matado sua esposa. O fez bêbado, já que se havia alcoolizado trabalhando em um bar. Mostrava-se otimista sobre sua saída próxima, havia parado definitivamente de beber, estava casado novamente, e sua conduta na prisão lhe valeram uma redução da pena. Eu o felicitei, mas me atrevi a lhe perguntar: “Me diga, pediste perdão à família da sua ex-esposa?”. Ficou calado. Não havia pensado nas feridas que havia causado, em sua responsabilidade. Ele mesmo necessitava da cura interior que traz paz. Disse-lhe: “Há quem foi até a sepultura da vítima para pedir perdão”. Ficou pensativo. O sistema penal o fez crer que sua única dívida era com a instituição carcerária. A justiça restaurativa recorda que não se paga com anos de condenação, mas com uma nova atitude e uma responsabilidade em relação às vítimas.
Os cristãos, às vezes, são responsáveis por pregar um perdão muito barato. É certo que Jesus Cristo nos liberta da culpa diante de Deus, e nos recebe não importa quão grande sejam os nossos pecados. Mas a responsabilidade diante das vítimas de nossos pecados não desaparece automaticamente. Há feridas para curar, o dano infringido a uma pessoa perdura e os frutos amargos podem seguir envenenando as relações humanas para além da geração que o perpetuou.
Por isto, não se pode esquecer facilmente um passado que provocou dor a outros e outras. Jesus nos ensina a tomar a sério a verdadeira restauração: “Se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois, volte para apresentar a oferta” (Mt 5, 23-24).
Nelson Mandela constitui-se no maior desafio para o mundo atual, repleto de violências e abusos, do caminho que leva à paz e à reconciliação, o mesmo caminho que há dois mil anos nos mostrava o Mestre da Galileia. Não é um caminho fácil, mas é a única forma de curar as feridas, a única possibilidade para a paz e a restauração das relações quebradas pela injustiça.
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Nelson Mandela e a Justiça Restaurativa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU