21 Mai 2008
Conhecemos todos os acusados por crimes bárbaros no país, pelo menos todos aqueles amplamente divulgados, mas onde está nosso foco quando analisamos a memória da dor por parte das vítimas ou pessoas próximas a elas? Como o direito trata dessa memória? Essa é a problemática discutida na entrevista com Dani Rudnicki. Ele afirma que a memória das vítimas deve ser resgatada para que, enfim, elas possam se fazer sujeitos.O tema da entrevista será também discutido durante o III Simpósio da Cátedra Unesco – Unisinos sobre Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança. A entrevista foi realizada por telefone.
Dani Rudnicki é jornalista e advogado, com mestrado em Direito, pela Unisinos, e doutorado em Sociologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, é professor do Centro Universitário Ritter dos Reis.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que forma o campo do direito trata, atualmente, da memória das vítimas envolvidas diretamente em um crime?
Dani Rudnicki – Existe uma série de previsões no ordenamento do campo jurídico em relação a esse tema, desde a Constituição no artigo 245, que fala na necessidade de socorrer às vítimas, até posições que são apresentadas pelo Código Penal e pelo Código Civil. Ou seja, há uma série de previsões normativas para atendimento da vítima. Ainda que esse atendimento aconteça hoje nessa perspectiva de atendimento, a vítima hoje não possui mais, como no passado, um papel ativo, ou seja, antigamente ela poderia se vingar, caso fosse vítima de um crime, agindo da forma como bem desejasse. Hoje, já não pode mais. A atuação dela está limitada pelo preceito da lei, normativo.
IHU On-Line – Como a justiça restaurativa deveria ser aplicada hoje?
Dani Rudnicki – Eu não gosto muito desse termo “justiça restaurativa”, pois, para mim, ela se apresenta como um novo paradigma, mas não passa de uma nova “roupagem” para uma proposta antiga, que é a proposta de conciliação, ou seja, é o de resgatar um pouco esse papel da vítima como agente. Para mim, isso não é uma exclusividade da justiça restaurativa. Existem outras formas de se pensar o direito que também trabalham nessa perspectiva. As justiças indígenas e as justiças dos países orientais sempre trabalharam com essa perspectiva de conciliação.
IHU On-Line – Como isso é trabalhado numa sociedade complexa como a nossa, nas quais, inclusive, aconteceram ditaduras?
Dani Rudnicki – Eu não vejo muita relação e possibilidades. Hoje, se quer justiça e isso fica claro quando se fala em penalizar e criminalizar os responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura. Nós não pretendemos punir as pessoas, mas resgatar a memória das vítimas para que elas possam se fazer sujeitos. Com isso, não se pretende a punição, mas a restauração do estado democrático de direito.
IHU On-Line – A memória da dor por parte das vítimas da ditadura militar instaurada no Brasil em 1964. O direito brasileiro está sabendo lidar dessa memória da dor?
Dani Rudnicki – Essa é uma questão do direito político. A ditadura acabou há 24 anos. Para algumas pessoas, pode parecer muito tempo já, mas 24 anos, do ponto de vista histórico, representam muito pouco tempo. E as dores da ditadura ainda estão muito vivas. No Brasil, talvez se viva a pior situação em relação à América Latina. No Chile, no Uruguai, na Argentina e na Argentina, existem avanços em relação ao resgate da memória, isto é, ainda que não se curem as pessoas, se resgata o que aconteceu e se mostra que o terrorismo de estado não pode ficar impune. No Brasil, isso não acontece. O Governo FHC mandou fechar os arquivos, e o governo Lula ratificou essa posição, seguindo uma posição de não resgatar essa memória. Agora, em dezembro de 2007, a justiça italiana indiciou inclusive brasileiros pela morte de cidadãos que tinha dupla cidadania (brasileira e italiana).
Em Montevidéu, recentemente, foi inaugurado um museu da memória para recordar as ditaduras latino-americanas. Nesse museu, aconteceu, no dia 10 de maio, o primeiro encontro de filhos dos presos políticos. O tema era “Crianças e Adolescentes vítimas do terrorismo de Estado – Construindo a memória coletiva”. Existem muitas pessoas que estão tentando resgatar essa memória, tentando saber o que aconteceu passado e tentando construir um país pautado pelos direitos humanos. Nesse sentido, o Movimento de Justiça e Direitos humanos está se preparando para lembrar, neste ano, os 30 anos do seqüestro de Lilian Celiberti e de Universindo Diaz que aconteceu em Porto Alegre. Eles eram uruguaios e foram seqüestrados e entregues à ditadura uruguaia, pela qual foram torturados. Esse lamentável fato aconteceu há 30 anos. Há 40 anos, também aconteceu a promulgação do ato institucional nº 5. Mas, felizmente, algo de bom também será comemorado: os 60 anos, em dezembro, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que vem sendo desrespeitado em muitos aspectos, mas, mesmo assim, ajuda a construir um mundo melhor.
IHU On-Line – A memória das vítimas muitas vezes é expandida através da mídia, como, por exemplo, no caso TAM e no caso Isabella, em que a divulgação dos fatos é tão grande que a memória da dor é repassada para além das vítimas próximas à vítima principal. Como fica a justiça restaurativa nesse caso? Como o senhor avalia a presença da mídia em casos como esses?
Dani Rudnicki – A justiça restaurativa tenta fazer com que as pessoas se envolvam. Mas, geralmente, são as pessoas mais próximas. A justiça restaurativa tenta fazer com que as pessoas trabalhem seus problemas e respondam suas questões. Não se sei essa problemática maior seria muito adequada à justiça restaurativa. Todo o clamor popular existente não diz respeito exatamente à justiça restaurativa, embora diga respeito à justiça. Então, surge o desafio: saber o que e como fazer, porque a justiça tem uma série de limitações impostas por princípios garantidos por um estado democrático de direito e que precisamos repensar a partir da dor das vítimas. Com isso, o que se pode colocar? Que não devemos retomar um direito penal do terror e que a vítima, por ter sido vítima ou seus familiares, não pode atuar de forma desmedida. Nós vivemos em outra perspectiva e precisamos saber como atuar em relação aos criminosos. A mídia e a justiça podem estabelecer e mostrar esses padrões de comportamento e como eles são desejados. Ao invés de, por exemplo, mostrar cenas de quase barbárie onde as pessoas queriam fazer “justiça” com as próprias mãos, nós precisamos ter um trabalho a fim de que essas pessoas sejam julgadas, que haja uma acusação correta e uma defesa.
Há programas que apenas incitam as pessoas a se manifestarem de forma agressiva aos envolvidos nesse tipo de caso. Outras mídias informam. É necessário termos noção de que os direitos humanos de todas as pessoas são importantes. Ou seja, não é porque alguém cometeu ou está sendo acusado de um crime que ela perde seus direitos e deixa de ser humana. Por isso, precisamos de muita cautela para preservar o direito das outras pessoas.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o tratamento dado para a violência social, que cresce cada vez mais no Brasil e no mundo?
Dani Rudnicki – A violência social é um outro problema muito grave e algo que se tem que combater também dentro do estado de direito. Ela, muitas vezes, está vinculada aos nossos dirigentes políticos, que geram muito dessa violência social. Quando percebemos, há corrupção em todos os níveis de governo, o que precisa ser muito bem refletido, pensado, analisado. Além disso, precisa-se buscar respostas para essa questão, porque, efetivamente, ela é tão responsável por crimes quanto outras formas de violência.
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O que fazer com a memória de uma vítima de crime? Entrevista especial com Dani Rudnicki - Instituto Humanitas Unisinos - IHU