Por: Jonas | 08 Junho 2013
“O Concílio Vaticano II deu respaldo ao papa Paulo VI para que reduzisse a importância do Santo Ofício, mudando o seu nome (passando a ser chamado de Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé), abolindo-lhe o qualificativo de “Suprema” e retirando-lhe conotações de repressão (“para a Doutrina”)”, enfatiza o teólogo Celso Alcaina, também rememorando a centralidade que a Secretaria de Estado passa a ocupar na Cúria Romana, a partir de Paulo VI. O artigo é publicado em seu blog Enigma, 05-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Durante vários séculos, a razão e o fundamento da primazia do papa sobre a Cristandade foi a doutrina e a moral. As funções sacramentais, a disciplina, o governo, incluídas as nomeações de bispos, eram algo não reservado ao papado. Somente no século XX, ano de 1903, como consequência das novas prerrogativas outorgadas pelo Vaticano I ao papa (jurisdição imediata e direta em todo o mundo), é que Pio X criou a Congregação “De Episcopis”. Ela se ocuparia em selecionar – e não apenas empossar – os bispos e isto para algumas regiões específicas.
Esta congregação, que durou apenas cinco anos, analisou exclusivamente candidatos para bispos das dioceses italianas. Até então, exceto em épocas ou lugares (Espanha, França e Alemanha, por exemplo) em que estiveram ou ainda estavam vigentes as “investiduras” por governantes civis, os bispos de cada província eclesiástica, reunidos em sínodo, escolhiam e consagravam o candidato para uma sede vacante. Os bispos em suas respectivas dioceses e, quando necessário, os concílios particulares ou ecumênicos, atendiam ao regime da Igreja e à pureza da doutrina. Nos problemas de fé, os bispos recorriam, em última instância, à autoridade do bispo de Roma.
A partir do pontificado de Paulo III (ano 1542), com os Inquisidores Gerais e mais tarde (a partir de Sixto V, em 1588) com a Suprema Sagrada Congregação da Inquisição, até o Vaticano II, a principal tarefa do bispo de Roma e sua Cúria era a velar pela pureza da fé e da moral. Por isso, o próprio papa presidia a Romana Inquisição, chamada depois como Suprema Sagrada Congregação do Santo Ofício. O cardeal à frente deste dicastério era apenas secretário e, depois, a partir do Concílio Vaticano II, pró-prefeito. O papa era o prefeito. Tal era a importância dessa Sagrada Congregação. Nenhum outro dicastério ou escritório era superior. Inclusive, a Secretaria de Estado estava sujeita aos ditames do Santo Ofício.
O Concílio Vaticano II deu respaldo ao papa Paulo VI para que reduzisse a importância do Santo Ofício, mudando o seu nome (passando a ser chamado de Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé), abolindo-lhe o qualificativo de “Suprema” e tirando-lhe conotações de repressão (“para a Doutrina”). Da mesma forma, o papa deixará de ser prefeito de tal dicastério. No Anuário Pontifício do ano de 1967, ainda aparece o cardeal Ottaviani como “Pró-Prefeito”, ao passo que, no Anuário de 1968, o cardeal Seper aparece como “Prefeito”. Além disso, com o Vaticano II, suprime-se a Congregação do Índice, que poucos anos antes já tinha sido reduzida a uma Seção do Santo Ofício.
Segundo o organograma da Cúria Romana, que o papa Paulo VI estabelece em sua Constituição Apostólica “Regimini Ecclesiae Universae”, a preeminência, que até então o Santo Ofício ostentava, passa à Secretaria de Estado. Entretanto, esta mudança de gravidade – do doutrinal para o diplomático – não foi repentina. Remonta-se à perda do poder temporal, durante o pontificado de Pio IX, assim como ao racionalismo e ao liberalismo dos séculos XIX e XX. O papado já não podia sustentar sua preeminência e impor seu poder à base de dogmas, condenações e excomunhões. Suas doutrinas tinham sido postas em suspeição pela ciência moderna até chegar ao desprestígio. O Vaticano escolheu outros caminhos para perpetuar sua existência e recuperar sua reputação. Ele multiplicou as representações diplomáticas pelas quais, a partir do Concílio Vaticano II, todos os núncios teriam a dignidade de arcebispo. Desdobraram-se alocuções e participações nos diversos campos: cultural, filosófico, político e diplomático. Pio XII tinha se manifestado como um “sabe-tudo” e foi peça diplomática relevante e muito controvertida na segunda guerra mundial.
A partir de João XXIII e, principalmente, de Paulo VI, o Vaticano escolhe a estratégia populista das viagens apostólicas para afervorizar as massas, tão-somente (ou nada) crentes. Nestas viagens, o que se busca não é tanto a proclamação de doutrinas (normalmente, o papa prega verdades óbvias ou incide na moral sexual repressora), mas a imponência e o protagonismo, fazendo-se receber e tratar com honras de chefe de Estado e de “Pontifex” de toda a Cristandade. A doutrina e os dogmas deixavam de ser o primordial para se centrar no prestígio do “leader”.
Tudo isso foi impulsionado pelo Vaticano II, que liquidou o Santo Ofício de Ottaviani e colocou em solfa vários dogmas, entre eles o mais importante: “extra Ecclesiam nulla salus” do Concílio de Florença, Ecumênico XVII, de 1445. A partir do Vaticano II, as chaves do céu não estão em poder da Igreja católica. O inferno, mesmo sendo um dogma definido em numerosos Símbolos e Concílios, está vazio. Os sacerdotes que abandonam seu ministério já não são réprobos por toda a vida. A confissão individual dos pecados deixa de ser uma necessidade.
As relações sexuais pré-matrimoniais são toleráveis. O matrimônio deixa de ser indissolúvel pela causa do privilégio “pretrino” (não apenas o “paulino”) e das declarações judiciais eclesiásticas de nulidade em base a numerosíssimos motivos, incluindo os psicológicos, que tornam a nulidade divórcio encoberto. Retira-se a excomunhão da maçonaria.
Os judeus deixam de ser “pérfidos” assassinos. Os protestantes, de “adversários”, passam a ser considerados “irmãos”, etc. Tudo, para congraçar-se com a nova e transformada civilização, que demonstrava tédio e repugnância a uma instituição dogmática e intolerante. Sim, era preciso não incomodar as potências do mundo, mesmo com o peso de sacrificar ideais nobres de bons cristãos e, inclusive, marginalizando aos propulsores desses ideais.
Como foi dito, no século XX as nomeações de bispos em todo o mundo foram assumidas diretamente pelo papado, sendo criada a Congregação “De Eligendis Episcopis”, em 1903, dentro da Suprema do Santo Ofício. Com isso, assegurava-se o monolitismo hierárquico, tanto em doutrina, como em disciplina interna e externa, uma perfeita concepção ditatorial. Assim, deu-se cumprimento à definição do Concílio Vaticano I, que outorgava poder máximo ao papa, com poder direto e ordinário em todos os âmbitos e níveis da Igreja. À efêmera Congregação “De Eligendis Episcopis”, seguiu a Congregação Consistorial, com idênticas faculdades.
Toda esta digressão serve para emoldurar minha atuação na Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Encontrava-me numa instituição que, com o pretexto de velar pela pureza da doutrina, desenvolvia um papel político e diplomático com estratégias agressivas para assegurar sua sobrevivência como instituição religiosa.
Eu havia recebido uma formação tradicional dogmática, no Seminário e na Universidade Comillas. Meus estudos bíblicos, em Roma, haviam propiciado uma atitude crítica aos fundamentos de todo o Cristianismo. Agora, estava envolvido no que eu acreditava ser o próprio coração da Igreja: o órgão que mantém a pureza da fé e a moral. Acreditava nisso, mas não foi assim.
A Secretaria de Estado, o órgão diplomático do Vaticano, controlava as conclusões e as disposições da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, que propunha o estudo de muitas questões. A Secretaria de Estado podia não interceptar as disposições pouco relevantes e que não tinham repercussão política e social, mas, ao contrário, deixava para trás as conclusões regularmente aprovadas pelo Santo Ofício, caso elas pudessem incomodar regimes, governantes, cardeais influentes, personalidades diversas; ou que pudessem trazer consequências negativas, sempre de âmbito temporal.
Eis, aqui, um exemplo: a Secretaria de Estado (leia-se dom Giovanni Benelli), por sugestão de algum alto governante, tinha feito estudar no Santo Ofício a possibilidade e oportunidade de retirar a excomunhão da Maçonaria e dos maçons. O Santo Ofício chegou à conclusão de retirar a excomunhão. No entanto, a Secretaria de Estado bloqueou a promulgação do relativo documento. O mais curioso é que, ao longo de seis anos, tal tarefa se repetiu mais uma vez, com idêntico resultado, inclusive, após exaustivos debates em que intervinham cardeais, bispos e teólogos. Foi preciso esperar o novo Codex, de 1983, que deixa a ambiguidade.
O Santo Ofício (hoje, S. Congregação para a Doutrina da Fé) consta de um número mutável de membros: uns dez cardeais e uns seis bispos residenciais. São aqueles que, em última instância e por votação, aprovam ou reprovam uma determinada questão, ou melhor, condenam uma determinada pessoa, doutrina ou escrito. Entretanto, a realidade é que a reunião semanal, das quartas-feiras, são assistidas somente pelos cardeais com domicílio em Roma, que costumam ser antigos diplomatas aposentados, sem uma formação teológica destacável.
É verdade que os cardeais têm em vista os estudos prévios de algum consultor ou perito teológico, mas esses teólogos ou peritos, assim como os cardeais e bispos, foram escolhidos pelo próprio Vaticano com critérios de submissão e lealdade. O caso de Álvaro del Portillo (então Secretário do “Opus Dei”), consultor ativíssimo, durante 20 anos, já desde os tempos de Ottaviani, era paradigmático.
Seus “vota”, ou relatórios, estavam em todas as questões ou assuntos. Eram enfastiantes, sem critério teológico, nem bíblico, e sempre na linha mais tradicional. Sendo engenheiro civil e tendo estudado, já em idade avançada, a Teologia em cursinhos de verão, interpretava a Bíblia como no século XIX, entrava nos textos com um livro de concordâncias, mesmo que pouco tivesse relacionado a uma frase com outra, sem acolher ao distinto gênero literário e a outros elementos hermenêuticos.
Recordo que um dia comentei com o cardeal Seper o cansaço e a superficialidade dos longuíssimos “vota” do senhor Álvaro del Portillo. O cardeal Seper me disse textualmente: “Ouvindo ou lendo Del Portillo, sente-se algo parecido ao cheiro de um armário que esteve fechado durante meio século”. Nessa conversa, o cardeal Seper aceitou minha proposta de nomear o jesuíta Marcelino Zalba e ao salesiano Antonio Javierre (depois cardeal) consultores de língua espanhola, assim como Olegario González de Cardedal como membro da Comissão Teológica Internacional e o jesuíta José Alonso (meu antigo professor em Comillas) para a Pontifícia Comissão Bíblica.
A esse respeito, acredito que é interessante revelar, aqui, que o então homem forte do Vaticano, o arcebispo Giovanni Benelli, substituto da Secretaria Papal, com Paulo VI, costumava escrever cartas ao cardeal Seper, meu superior, no sentido de que “o Santo Padre me disse que”. Com essa cobertura dava ordens muito contundentes a ser obedecidas no Santo Ofício. Uma vez que o cardeal Seper possuía uma habitual audiência semanal com o Papa, uma vez ou outra, e quando as supostas ordens papais lhe eram chocantes, falou com Paulo VI a respeito dessas suas ordens pessoais.
O Papa, de entrada, maravilhava-se e se mostrava confuso e corado, mas, em seguida, mudava de assunto. O cardeal Seper me confiou (também a dom Tomko) que Benelli qualificava como mandato papal o que estimava conveniente. Baseava-se no fato de que o próprio Papa tinha lhe dado licença habitual para isso. Desta maneira, o peso do Pontífice se ativava. O caráter bonachão e simples, nada diplomático, do cardeal Seper, abria espaço para esses tipos de confidências.
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Cúria Romana. Uma nova função para a Secretaria de Estado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU