Por: Cesar Sanson | 01 Junho 2013
“Apesar de a bomba ter sido montada por muito governos federais e estaduais, a atual gestão ficará marcada como aquela que permitiu um processo genocida contra as populações indígenas em nome de uma noção equivocada de desenvolvimento durante um período de democracia”. O comentário é do jornalista Leonardo Sakamoto em artigo no seu blog, 31-05-2013.
Eis o artigo.
Não importa de onde partiu o tiro que matou o indígena Oziel Gabriel, nesta quinta (30), durante a operação de reintegração de posse da fazenda Buriti, reivindicada e ocupada pelo povo terena, em Sidrolândia (MS). O governos federal e estadual, tanto os de plantão quanto os que vieram antes deles, são os responsáveis por criar as condições que levaram ao momento exato em que uma bala atingiu o abdômen de Oziel. Não importa quem puxou o gatilho, todos colocaram a bala na agulha.
Por ignorar os direitos dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, cedendo às pressões de produtores rurais, rebaixando a qualidade de vida de populações tradicionais em nome de projetos de desenvolvimento duvidosos, seja através da demora e da inação, seja pela aprovação de medidas que criam entraves para o reconhecimento desses direitos. Decisões judiciais tomadas sem conhecer as especificidades do tema, execuções de ordem feitas de forma estabanada, ação de seguranças privados, tudo é consequência de um circo anteriormente armado.
Cerca de 98% das terras indígenas brasileiras estão na região da Amazônia Legal. Elas reúnem metade desses povos. A outra metade está concentrada nos 2% restantes do país. Sem demérito para a justa luta dos indígenas do Norte, o maior problema se encontra no Centro-sul, mais especificamente no Mato Grosso do Sul – que concentra a segunda maior população indígena do país, só perdendo para o Amazonas. Há anos, eles aguardam a demarcação de mais de 600 mil hectares de terras, além de algumas dezenas de milhares de hectares que estão prontos para homologação ou emperrados por conta de ações na Justiça Federal por parte de fazendeiros.
Ao longo dos anos, os indígenas do estado, principalmente os Guaranis Kaiowá, foram sendo empurrados para reservas minúsculas, enquanto fazendeiros, muitos dos quais ocupantes irregulares de terras, esparramaram-se confortavelmente pelo Estado. Incapazes de garantir qualidade de vida, o confinamento em favelas-reservas acaba por fomentar altos índices de suicídio e de desnutrição infantil, além de forçar a oferta de mão de obra barata. Pois, sem alternativas, tornam-se alvos fáceis para os aliciadores e muitos acabaram como escravos em usinas de açúcar e álcool no próprio Estado nos últimos anos.
O agronegócio brasileiro é o um dos setores que mais tem crescido nos últimos anos, com apoio sólido do governo federal. Um dos efeitos do cenário positivo para o setor foi o aumento do preço das terras. De acordo com uma análise da consultoria Informa Economics FNP, especializada no mercado agropecuário, datada de setembro de 2012, o preço das terras no país teve um aumento de cerca de 32% nos últimos 12 meses. Em maio de 2011, o Mato Grosso do Sul sofreu um aumento médio de 30% no valor da terra em relação a 2010, índice que chegou a 100% no norte do estado, de acordo com o Sindicato dos Corretores de Imóveis de Mato Grosso do Sul.
A valorização do agronegócio e das terras nas últimas décadas tem tido um efeito preocupante sobre o processo de reconhecimento dos territórios indígenas. Em números totais, por exemplo, o presidente Fernando Collor de Melo homologou 112 Terras Indígenas (TIs) entre 1991 e 1992, e entre 1992 e 1994, Itamar Franco homologou 18. Nos seus oito anos de governo, Fernando Henrique Cardoso homologou 145 TIs. Já no mandato de Luiz Inácio Lula da Silva ocorreram 79 homologações, e no de Dilma Rousseff, apenas três. Os dados são do relatório “Em terras alheias”, sobre a produção agropecuária em terras indígenas no Mato Grosso do Sul, do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da Repórter Brasil.
O setor produtivo – com apoio, nos últimos anos, do governo estadual – tem exercido uma oposição ostensiva ao processo de reconhecimento das terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Por outro lado, no entanto, a trágica situação dos indígenas no Estado também levou a um movimento mais amplo e intenso de reconhecimento de suas características sócio-culturais e de seus direitos ancestrais, inserindo no tabuleiro das disputas conceituais um novo parâmetro de valor, que se contrapõe ao econômico-financeiro.
Eles resolveram ir à luta e não morrer em paz, como muitos desejariam.
Apesar de a bomba ter sido montada por muito governos federais e estaduais, a atual gestão ficará marcada como aquela que permitiu um processo genocida contra as populações indígenas em nome de uma noção equivocada de desenvolvimento durante um período de democracia. O discurso de que há interesses econômicos estrangeiros envolvidos em possíveis barreiras não-tarifárias por justificativas sociais a serem erguidas a nossos produtos pode colar como discurso nacionalista, mas o governo precisará se esforçar mais para sair dessa sinuca de bico. Sim, são interesses econômicos externos que, muitas vezes, geram boicotes. Mas, sim, é a incompetência do Estado como garantidor de direitos fundamentais que possibilita que isso aconteça.
Como solução de curto prazo, sugiro ao ministro do Esporte, Aldo Rebelo – que pediu à Fifa que ingressos dos jogos da Copa do Mundo no Brasil fossem oferecidos especialmente a populações indígenas – o envio de um par deles aos dois filhos de Oziel em compensação pela morte do pai.
Aldo, quando deputado federal, foi contra a demarcação de territórios, e sobre isso falou: “O respeito aos direitos dos indígenas não pode implicar o esbulho dos não índios que há muito tempo fincaram a bandeira do Brasil naquela região.”
Garantir os mínimos direitos a esses povos, que amargaram séculos de genocídio, não os isola do resto da nação. Pelo contrário, ajuda a torná-los, de fato, brasileiros, por lhes conferirem dignidade. Dignidade reivindicada por terenas, como Oziel.
O governo federal deveria perguntar, então, qual a política pública que essas populações preferem: as terras que lhes são de direito, para poderem plantar e sobreviver, ou ingressos para a Copa.
Isso seria possível, é claro, se o governo fizesse oitivas com populações indígenas conforme prevê a Constituição Federal – coisa que não acontece, vide as populações indígenas que insistem em ser ouvidas e paralisam as obras da usina de Belo Monte. No final, decidirá sozinho pelos ingressos, achando que isso pega bem lá fora.
Ou talvez o governo esteja propondo ingressos fáceis para os indígenas porque, no ritmo em que as coisas andam em Estados como Mato Grosso do Sul (e seu genocídio, a conta-gotas), até a Copa não vai sobrar lá muitos para dar prejuízo aos organizadores dos jogos.
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“Eles resolveram ir à luta e não morrer em paz, como muitos desejariam” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU