01 Mai 2013
Um balanço publicado pela Nature afirma que "uma nova mudança de estado de escala planetária é altamente plausível, mas envolve duas brutais incertezas: sobre sua inevitabilidade e sobre o prazo em que ocorreria, caso inevitável. Chegam a dizer que podem ser décadas ou séculos, se já não tiver começado, pois os critérios que poderiam ajudar nessa avaliação continuam evasivos ou fugazes", escreve José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP – IRI/USP e do Instituto de Pesquisas Ecológicas – IPÊ, em artigo publicado no jornal Valor, 30-04-2013.
Eis o artigo.
Catastrofismos motivados por previsões exageradas a respeito das possíveis consequências das três piores barbeiragens ecológicas globais - aquecimento, perda de biodiversidade e zonas oceânicas mortas por excesso de nitrogênio - são induzidos pelo abuso da noção "ponto da virada" ("tipping point"): um instante crítico de mudança que, embora pequeno, surte efeito extraordinário. Essa é a versão dominante, popularizada por Malcolm Gladwell, da "New Yorker", autor de best-seller com esse título lançado em 2000.
Remando contra tão poderosa maré, um dos mais importantes periódicos científicos do mundo - o PNAS - dedicou à questão um número especial de 2009 no qual o jargão "tipping points" foi substituído por "tipping elements" (vol. 106, nº 49). Porém, foi só no ano passado que a confusão começou a ser realmente desfeita, em circunstanciado balanço sobre o emprego dessa noção nas páginas da "Nature" (vol. 486, 07/06/12), por 16 pesquisadores que optaram pela expressão "mudança de estado" ("state shift").
Na contramão do senso comum, não existe nos sistemas biológicos algo que possa ser definido como "estabilidade" ou "equilíbrio". Seus comportamentos são sempre instáveis e em desequilíbrio, mesmo que as variações em determinado período possam ser percebidas como desvios em relação a uma média, o que costuma levar à errônea inferência de que tal média seria um ponto de equilíbrio.
Nesse tipo de dinâmica, a maior preocupação se refere às mudanças de um estado para outro que podem ser causadas pelo chamado efeito de "limiar" ("threshold"): quando um processo incremental e cumulativo atinge um momento crítico no qual a mudança de estado é abrupta, levando a outro patamar (ou média de desvios) fora da faixa das flutuações observáveis no estado anterior.
As mudanças de estado causadas por efeito-limiar são chamadas no balanço da Nature de "transições críticas". Além de não poderem ser previstas, costumam ser irreversíveis, como mostram os sete casos mais conhecidos: a última transição glacial-interglacial, as cinco grandes extinções, e a explosão cambriana. Todavia, tal conhecimento não permite a identificação dos sintomas, ou sinais de aviso, de que outra dessas transições críticas poderia estar próxima.
Na verdade, é irrisória a capacidade de previsão biológica. Para ampla gama de ecossistemas, o que se observa é a prevalência de "surpresas ecológicas", que esbarram em total impossibilidade de predição. Algo que tem muito mais analogia com o título de outro best-seller de 2007: "A lógica do cisne negro" de Nassim Taleb. Certos eventos podem ser causados ou exacerbados justamente por serem inesperados, quando o que não se sabe se mostra muito mais relevante do que o que se sabe.
Para os autores do balanço da Nature, uma nova mudança de estado de escala planetária é altamente plausível, mas envolve duas brutais incertezas: sobre sua inevitabilidade e sobre o prazo em que ocorreria, caso inevitável. Chegam a dizer que podem ser décadas ou séculos, se já não tiver começado, pois os critérios que poderiam ajudar nessa avaliação continuam evasivos ou fugazes.
Não há base científica, portanto, para que se afirme que "estamos muito próximos de um ponto de saturação, no qual a biosfera não tem como aguentar estresse adicional", como diz logo na abertura o livro Bankrupting Nature de Johan Rockström e Anders Wijkman (2012). Ainda menos que "o planeta está batendo no ponto de não retorno", como disse Jeffrey Sachs em discurso nas Nações Unidas, sugestionado com certeza por uma das tiradas mediáticas do polêmico James Lovelock (Valor 2/3/12).
Ora, se a proximidade de um colapso ambiental global não pode entrar no horizonte sensível dos tomadores de decisão, não se deve esperar que processos locais como os de Ruanda e do Haiti sejam suficientes para que no âmbito da governança global a preocupação com a sustentabilidade seja equiparada a ameaças à segurança e à estabilidade macroeconômica das nações.
Também não é por outra razão que, de olho na agenda pós-2015, a ONU se dá o luxo de promover dois processos paralelos. De um lado, uma comissão de alto nível nomeada pelo secretário-geral Ban Ki-moon está incumbida de propor novos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), pois estão para expirar os 15 anos de validade dos originais adotados em 2000. De outro, um grupo de trabalho formado pela Assembleia Geral, com representantes de 30 países, tem a responsabilidade de propor Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), para levar adiante uma das raras inovações da quarta conferência global sobre o tema, a recente Rio+20.
As razões dessa oligofrênica situação estão no foco de meu novo livro "A Desgovernança Mundial da Sustentabilidade" (Editora 34), que será lançado em dois momentos da quinta-feira, dia 16: de manhã com uma conversa na Sala Crisântempo entre os ex-ministros Celso Lafer, Marina Silva e Rubens Ricupero; e, à noite, com sessão de autógrafos no Bar Tatu.
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Situação oligofrênica. Artigo de José Eli da Veiga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU