09 Abril 2013
Na Argentina se diz que se alguém quer entender a alma sacerdotal de Jorge Mario Bergoglio, tem de conhecer as villas miseria (literalmente “vilas de miséria”), que é o termo em espanhol que designa as favelas de Buenos Aires onde se encontram os mais pobres dos pobres.
A reportagem é de John Allen Jr. e publicada pelo sítio da National Catholic Reporter, 07-04-2013. A tradução é de Luís Marcos Sander.
Segundo o Pe. Juan Isasmendi, que vive e trabalha em uma das favelas, é aí que o futuro Papa Francisco enchia seus pulmões com o “oxigênio” de que necessitava para pensar sobre o que a igreja deveria ser.
Há cerca de 20 dessas favelas em Buenos Aires, muitas vezes a uma quadra ou duas de distância de altas e cintilantes torres de escritórios e prédios de apartamentos de luxo. A revolução pastoral de Bergoglio consistiu em escolher a dedo um quadro de sacerdotes especialmente fortes e dedicados não apenas para visitar as favelas, mas para viver e trabalhar nelas, compartilhando a vida das pessoas até os ínfimos detalhes.
O objetivo era reanimar a fé, pregando e celebrando os sacramentos e, ao mesmo tempo, tornando a paróquia um abrangente centro de serviço social – combatendo as drogas e a violência, formando os jovens e cuidando dos idosos, oferecendo treinamento profissional e até uma rádio comunitária para dar voz às pessoas.
As pessoas que melhor conhecem o pensamento dele dizem que Bergoglio queria mandar um recado às favelas: Mesmo que a política e a economia tenham se esquecido de vocês, a igreja não se esqueceu.
Se isso parece abstrato, vejamos o que significa na prática.
Atualmente a Argentina está sendo assolada por uma onda de dependência química do que se conhece como paco, que é uma droga barata feita com os resíduos que ficam para trás depois que a cocaína é processada para ser vendida nos Estados Unidos e na Europa. O paco é de baixa qualidade, tóxico e, muitas vezes, misturado com porcarias como ácido sulfúrico, querosene, raticida e até vidro triturado. É incrivelmente viciante e destrutivo para a personalidade do usuário; um médico daqui diz que ele transforma as pessoas em “homens de Neandertal”, e outro afirma que elas viram “mortos-vivos”.
Como a droga é barata e prontamente acessível, jovens pobres sem emprego e sem futuro ficam facilmente tentados. Em geral, as paróquias são os únicos lugares onde uma alternativa real parece ser oferecida.
Melchora Lescano, que é mãe e avó e mora nas favelas, expressou isso com as seguintes palavras: “Para os nossos jovens, a opção é a paróquia ou o paco ... e só.”
Passei o sábado de manhã no que se chama “Villa 21”, que é a maior favela de Buenos Aires e tem uma população de quase 50 mil pessoas. (Talvez seja apropriado, tendo em vista o quão anônimas as pessoas que vivem aqui às vezes parecem ser, que a maioria das favelas seja conhecida por números, e não por nomes reais).
O coração pulsante da “Villa 21” é a paróquia da Virgem de Caacupé, que se chama assim por causa de Maria padroeira do Paraguai, porque a maioria das pessoas que moram aqui são imigrantes pobres vindos desse país.
A opção de Bergoglio por lugares como esse não foi uma mera noção, uma questão de algumas poucas linhas num plano de pastoral. Ela se encarnou em seu costume de caminhar pelas ruas, falar com as pessoas, dirigi-las nas celebrações e ficar do lado delas nas horas difíceis.
Desafiado por um amigo, parei uma mulher aleatoriamente e lhe perguntei se tinha se encontrado com Bergoglio. Ela entrou rapidamente em seu minúsculo barraco feito de lata e madeira e saiu de lá com duas fotos de estimação. Uma o mostrava como jovem bispo auxiliar com a família dela no início da década de 1990 e a outra o mostrava como cardeal, confirmando duas primas dela.
O ex-porta-voz de Bergoglio em Buenos Aires, Federico Wals, disse-me há poucos dias que o futuro papa sonhava com uma igreja missionária, preocupada principalmente com pessoas que parecem ter sido jogadas em cima de uma “pilha de lixo existencial”. Como é sabido, o novo papa também disse, pouco depois de sua eleição, que sonha com uma “igreja pobre para os pobres”.
Entretanto, em Caacupé, ao menos em um domingo de manhã no início de abril, isso não parecia absolutamente um sonho. Parecia, pelo contrário, a realidade concreta de qual é a aparência, o cheiro e o gosto de uma igreja moldada pela visão do Papa Francisco.
***
Fui acompanhado até a favela por María José Müller, que terminou recentemente seu doutorado em comunicação e trabalha como voluntária na rádio comunitária da paróquia, e por minha assistente durante aquela semana, Ines San Martín, que – e estou inteiramente convicto disso – um dia será a decana dos jornalistas religiosos em seu país.
Quando chegamos, demos de cara com um catequista voluntário chamado Miguel, que também ajuda a dirigir um time de baseball para meninos. Ele estava trazendo as crianças para a capela antes do treino e teve a gentileza de ajudar-me a conversar com eles por alguns minutos.
Quando perguntei a eles se estavam contentes por terem um papa da Argentina, a resposta imediata foi “sim”, e a única ambivalência pareceu vir de alguns meninos que observaram que Francisco torce para o time de futebol do San Lorenzo, enquanto eles preferiam um clube rival.
Um garoto de 10 anos chamado Esteban parecia falar pelo grupo quando disse: “Ele não é só argentino, mas também é daqui!” Ele me disse que tinha se encontrado com Bergoglio e queria saber se deveria ir para casa buscar a foto que tinha tirado com o cardeal. Sugeri que seria melhor que ele não perdesse o treino.
“É como Jesus nos evangelhos, onde ele diz: ‘Alegrai-vos porque vossos nomes estão inscritos nos céus’”, disse-me Isasmendi. “O pessoal das favelas conhece Bergoglio, e quando fizemos a missa para celebrar sua eleição, todos trouxeram junto as fotos que tinham tirado com ele.”
Müller listou um impressionante conjunto de ministérios que têm seu ponto de partida na paróquia da Virgem de Caacupé:
• Um centro de recuperação para dependentes químicos, chamado “Lugar de Cristo”;
• Duas fazendas terapêuticas em que dependentes químicos em recuperação trabalham e moram;
• Quinze ou 16 capelas no bairro visitadas pelos sacerdotes para celebrar missas e ouvir confissões;
• Uma escola de ensino médio;
• Uma escola profissionalizante, que oferece cursos de mecânica de automóveis, eletrônica, lavanderia, computação e outras aptidões profissionais práticas;
• Um lar para idosos;
• Um sopão (que, disse ela, se acrescenta ao fato de que todo o mundo sabe que quem estiver na paróquia na hora do almoço provavelmente será convidado a entrar e comer com os padres);
• Uma emissora de rádio comunitária, que transmite 24 horas por dia e sete dias por semana e ensina jovens a trabalhar na área da comunicação;
• Um jornal comunitário chamado O Católico;
• Programas de prevenção do consumo de drogas, alguns dos quais combatem especificamente o uso de paco;
• Um centro diurno para crianças de rua onde elas podem tomar banho, ganhar uma refeição quente e buscar uma solução para sua situação de vida, se quiserem.
Müller disse que ela foi católica praticante a vida inteira, mas nunca tinha sentido a paixão pela fé que descobriu desde que passou a se engajar na favela.
“Disseram-me que depois que a gente entra na Caacupé, realmente nunca se vai embora”, disse ela, “e isso é a pura verdade”.
Sejamos claros: o trabalho aqui pode ser gratificante, mas não é só prazer. O ex-pároco da paróquia, um sacerdote carismático chamado Pe. José “Pepe” di Paola, teve de ser transferido para outro lugar por Bergoglio por causa de persistentes ameaças de morte que sofreu por causa de seu esforço para romper o controle das gangues de traficantes de drogas, que muitas vezes representam o principal rival da igreja nesses bairros.
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Isasmendi me contou que Bergoglio não apenas “aprovava” essa atividade ou a apoiava, mas. Ele disse que o futuro papa estava intimamente envolvido até nos detalhes, inclusive nas decisões sobre quais sacerdotes eram escolhidos para fazer parte do que Isasmendi descreveu, rindo, como a “infantaria” de Bergoglio nas favelas.
“Quando Bergoglio me chamou para me enviar a esta paróquia, falei a ele sobre minha vida, minha família, o que sei fazer bem, etc.”, disse Isasmendi. “Ele me disse que queria me mandar para a Virgem de Caacupé para trabalhar com o Pe. Pepe. Eu comecei a falar sobre outro assunto, só para ganhar tempo para pensar. Bergoglio respondeu minhas perguntas, mas ficava me perguntando: ‘Ok, tudo bem. Mas você vai para Caacupé?’ Fez isso três vezes em mais ou menos 20 minutos, sempre dizendo que precisava de mim lá.”
“No final”, eu disse: ‘Vamos fazer de conta que eu tenho 20 dias para pensar sobre a proposta, e então vou voltar e dizer ‘sim’, porque é óbvio que não posso recusar’. Ele riu, e foi assim que as coisas aconteceram.”
Ismamendi disse que Bergoglio agia assim com todos os seus sacerdotes.
“Eu tinha um amigo sacerdote que estava trabalhando numa paróquia, e Bergoglio queria mandá-lo para outra. Meu amigo tentou argumentar, dizendo: ‘Eu quero ficar aqui, é aqui que é o meu trabalho.’ Bergoglio disse: ‘Não, ainda vou enviá-lo, porque você está pensando sobre o próximo ano e eu estou pensando em seus próximos 40 anos como sacerdote.’ Às vezes ele nos pedia para fazer coisas de que a gente não gostava no início, mas então se aprendia a gostar delas, porque ele não era autoritário ou demagógico em relação a isso. Era como um pai, tentando nos guiar de um jeito bom.”
Eu perguntei se essa história também servia de ilustração para outro aspecto, a saber, que, quando Bergoglio toma uma resolução, não há quem o faça mudar de ideia.
“Oh, Deus, sim”, riu Isasmendi. “Ele pode ser incrivelmente cabeçudo ... esse é um aspecto muito importante.”
Na verdade, disse Isasmendi, Bergoglio não só fez uma opção sábia ao enviá-lo para as favelas, mas também fez uma escolha politicamente astuta. Do contrário, disse ele, provavelmente teria acabado indo para uma missão no exterior. Dessa maneira, Bergoglio conseguiu mantê-lo na arquidiocese.
Na verdade, contou Isasmendi, Bergoglio estava tão bem informado sobre a vida de seus sacerdotes que às vezes ficava difícil lidar com ele.
“A gente não podia simplesmente inventar uma história qualquer, porque ele percebia na hora”, disse ele. “A gente não podia simplesmente dizer: ‘Ah, está tudo indo bem, a paróquia está uma beleza’, porque pouco tempo depois ele fazia uma pergunta penetrante que deixava bem claro que ele sabia perfeitamente bem o que estava acontecendo. A gente não conseguia enganá-lo, e se tentasse, ele não engolia.”
Ao mesmo tempo, disse ele, Bergoglio “era muito bondoso com seus sacerdotes, muito misericordioso.”
“Ele nunca era rígido em relação a picuinhas”, disse Isasmendi, “porque estava interessado em algo mais profundo.”
Isasmendi está com 32 anos agora, e atuou na paróquia da Virgem de Caacupé desde sua ordenação em 2008. Ele me disse que Bergoglio “arriscou muito” para mudar a natureza da formação sacerdotal em Buenos Aires.
“Sua preocupação constante era que os futuros sacerdotes ficassem perto da vida das pessoas de carne e osso, e não se preocupassem tanto com a igreja como estrutura”, disse ele. “Não foi fácil, porque muitas vezes os programas de formação incentivam os sacerdotes a se separarem das outras pessoas, mas esse não é o tipo de padre que Bergoglio queria.”
Como ele reagiu quando seu cardeal se tornou papa?
“Quando Bergoglio foi eleito e escolheu o nome Francisco”, disse Isasmendi, “meu primeiro pensamento foi de que Deus estava dando sua bênção para o que estamos fazendo em Buenos Aires!”
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O bispo Jorge Eduardo Lozano, de Gualeguaychú, um bom amigo de Bergoglio que foi seu auxiliar em Buenos Aires durante seis anos, diz que a base da visão do novo papa é seu desejo de que a igreja seja “missionária, uma igreja que saia da sacristia e vá para as ruas”.
Segundo Isasmendi, isso não era só discurso. Era a experiência vivida de como Bergoglio se relacionava com as favelas.
“Eu diria que ao longo dos 15 anos em que ele percorreu as ruas aqui, pelo menos a metade das pessoas se encontraram com ele e tiraram uma foto, o que quer dizer no mínimo 25 mil pessoas só nesta favela”, disse ele.
“Ela vinha para todas as festas importantes e fazia todas as confirmações”, disse ele. “Certa vez, tínhamos quase 400 pessoas para serem confirmadas, e ele confirmou todas pessoalmente num único dia. Isso levou três horas e meia, e ele fez tudo sozinho.”
“Quando vinha de visita para cá, ele pegava o ônibus e chegava aqui caminhando como um cara normal”, disse Isasmendi.
“Para nós, isso era a coisa mais natural do mundo. Ele sentava e ficava tomando chimarrão, falando com as pessoas sobre qualquer coisa que estivesse acontecendo. Ele começava a falar com o porteiro ou outra pessoa sobre um livro que estava lendo, e eu podia deixá-lo lá e ir fazer alguma outra coisa, porque Bergoglio ficava totalmente à vontade.”
Perguntei se Bergoglio estava tão preocupado com as favelas por causa das drogas, das gangues de traficantes ou algum outro problema específico.
“O maior problema que nós enfrentamos é a marginalização das pessoas”, disse ele. As drogas são um sintoma, a violência é um sintoma, mas a doença é a marginalização. Nosso pessoal se sente marginalizado por um sistema social que se esqueceu deles e não tem interesse neles.”
“A marginalização é a mãe de nossos problemas, e infelizmente ela tem muitos filhos”, disse ele.
“No fundo, o que a sociedade está dizendo a essas pessoas é o seguinte: ‘Nós não queremos que vocês existam.’ O trabalho que estamos fazendo aqui é tentar dizer a elas o contrário: ‘É bom que vocês existam’.”
Essa, segundo ela, era a visão que Jorge Mario Bergoglio tinha para a igreja em Buenos Aires, e ela se encarna em lugares como a paróquia da Virgem de Caacupé. Agora que ele é Francisco, talvez esse “papa da favela” possa espalhar essa visão muito além dos limites de Buenos Aires, ajudando para que ela se encarne em todo o mundo.
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O papa Francisco tira seu ''oxigênio'' das favelas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU