07 Abril 2013
Eu passei a semana passada na Argentina, em busca de ideias sobre o Papa Francisco a partir das pessoas que o conhecem melhor como Jorge Mario Bergoglio, o homem que foi seu arcebispo durante 15 anos.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 05-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com certeza, a primeira impressão aqui é um profundo orgulho nacional. Os moradores dizem que provavelmente nunca houve uma Semana Santa com mais participação na história do catolicismo argentino do que após a eleição de Francisco.
A procissão da Via Sacra em Rosario, a segunda maior cidade do país, geralmente atrai 200 mil pessoas, mas desta vez atraiu 350 mil; a participação na catedral de Buenos Aires foi estimada em duas a três vezes maior do que em 2012. Em todo o país, os fiéis relataram a presença de multidões nas igrejas e longas filas para a confissão.
A eleição de um papa argentino parece ter tido um efeito calmante na cultura em geral.
Uma talentosa jovem jornalista argentina chamada Inés San Martin, minha ajudante e tradutora nessa semana, conta a seguinte história.
Ela estava em um ônibus em Buenos Aires quando o motorista e um passageiro entraram em uma discussão aos gritos, em que o passageiro exigia o número da habilitação do motorista e ameaçava chamar a polícia. Quando as coisas pareciam à beira de desmoronar, uma idosa se levantou e disse: "Por que vocês estão brigando? Nós temos um papa argentino!".
Todo mundo sorriu, incluindo os dois protagonistas, e a tensão simplesmente se dissipou.
Indo mais a fundo, no entanto, fica claro que, apesar da hagiografia instantânea que sempre envolve um novo papa, Bergoglio não era um ícone cultural na Argentina antes da sua eleição. Ele manteve um baixo perfil, e muitos argentinos dizem que apenas agora estão começando a conhecê-lo junto com o restante do mundo.
Talvez o exemplo mais espetacular seja o de Hebe de Bonafini, uma das cofundadoras do famoso grupo das Mães da Praça de Maio, cujos filhos desapareceram durante a "Guerra Suja" da Argentina. Ao longo dos anos, ela acusou Bergoglio de representar o fascismo, chegando até a deixar, uma vez, um balde de urina na sua catedral como protesto.
Cinco dias depois da sua eleição, Bonafini publicou uma carta aberta ao novo papa expressando a sua surpresa sobre o que ela havia ficado sabendo: "Hoje, para a minha surpresa, escuto muitos companheiros explicarem sobre a sua entrega e trabalho nas vilas (...) Padre Francisco, eu não sabia sobre o seu trabalho pastoral. Eu só sabia que o máximo dirigente da Igreja argentina habitava na catedral; essa catedral que, quando marchávamos e passávamos pela frente, gritávamos: 'Vocês se calaram quando os levaram [os nossos filhos]!".
Também parece claro que Bergoglio não era perfeito, apesar do fato de que agora é difícil encontrar muitos argentinos dispostos a dizer isso em voz alta. Por exemplo, as vocações ao sacerdócio foram caindo em Buenos Aires durante o seu tempo de arcebispo, apesar do fato de estarem aumentando em algumas outras dioceses. No ano passado, a arquidiocese ordenou apenas 12 novos padres, ao contrário dos 40-50 por ano quando Bergoglio assumiu. (Aliás, as pessoas dizem que Bergoglio fez o seu melhor para apoiar os seus padres e seminaristas, mantendo um interesse especial pela vida de seminário.)
O futuro papa certamente também tinha os seus críticos. Alguns conservadores queixam-se que ele era muito comprometido com o evangelho social e não o suficiente para proclamar a fé; alguns liberais o viam como um inimigo da teologia da libertação e da emancipação social. Outros dizem que Bergoglio pode ser bastante inescrutável e um pouco "político".
Mais do que uma vez eu ouvi uma versão da seguinte piada: "Eu não sabia o que ele realmente pensava... Você sabe, ele é jesuíta!".
Eu tenho publicado artigos e entrevistas em que esse tipo de material pode ser encontrado aos montes. Retomando alguns detalhes, vou destacar aqui as três principais conclusões que eu tiro a partir deste balanço de uma semana.
Uma Igreja missionária
Primeiro, parece ser de consenso universal que, no coração da visão pastoral de Francisco, está um desejo de uma Igreja missionária, uma Igreja que sai pelas ruas para se encontrar com as pessoas onde elas estão e para responder às suas necessidades reais, tanto humanas quanto espirituais. Mais de uma vez, as pessoas que viviam e trabalhavam com o cardeal Jorge Mario Bergoglio citam alguma versão de duas das suas frases favoritas:
• "Uma Igreja que fica na sacristia por muito tempo fica doente" – em que a ideia é de que ficar em um espaço fechado, respirando constantemente o mesmo ar viciado, é ruim para a saúde da Igreja. A Igreja precisa sair para o mundo mais amplo, a fim de permanecer viva e vivaz.
• "Os mestres da fé precisam sair das suas cavernas" – no sentido de que pregar para o coro não é o núcleo da obra missionária, mas, ao invés, tornar a fé relevante para as pessoas do lado de fora.
Dentro dessa visão missionária, Bergoglio sempre teve uma preferência especial por aqueles que estão às margens da vida.
"Sua visão era que a Igreja fosse ao encontro daqueles que foram jogados em uma espécie de monte de lixo existencial", disse Federico Wals, um leigo de 32 anos, que atuava como porta-voz de Bergoglio desde 2007. "Ele estava especialmente preocupado com aqueles com os quais a sociedade não parecia se importar, como as mães solteiras, os pobres, os idosos, os desempregados".
Talvez a inovação pastoral de marca própria associada com os anos de Bergoglio seja a sua ênfase em colocar os padres nas vilas e favelas de Buenos Aires, conhecidas aqui como villas miseria. Ele não queria simplesmente que os padres visitassem as favelas – ele queria que eles vivessem lá, compartilhando a vida das pessoas para que pudessem entender o que significa o evangelho para elas.
Aqui está o desfecho dessa intuição.
Eu cheguei na Argentina com o pressuposto de que o que vimos até agora do Papa Francisco é em grande parte uma questão de estilo, e que a substância real do seu papado ainda está por vir.
Ou seja, coisas como rejeitar a limusine papal, viver na Casa Santa Marta e ir para uma prisão juvenil na Quinta-feira Santa me parecem ser preliminares para as coisas realmente de grande peso – preencher os cargos-chave do Vaticano ou responder à crise dos abusos sexuais de crianças e às ameaças à liberdade religiosa em diversas partes do mundo.
Pessoas que conhecem melhor o papa, no entanto, insistem que o seu ato de inauguração é todo um programa de governo em miniatura.
Dom Jorge Eduardo Lozano, bispo de Gualeguaychú, Argentina, amigo íntimo de Bergoglio, que trabalhou com ele como auxiliar em Buenos Aires por seis anos, me disse que esses gestos de humildade e de simplicidade não têm a ver apenas com a a personalidade do próprio papa.
"Eles são, na realidade, uma expressão do seu magistério", disse Lozano na última quinta-feira, falando na sede da Conferência Episcopal Argentina.
"Ele está enviando uma mensagem para outros cardeais, bispos e padres de que é isso que temos que fazer – ir ao encontro das pessoas, não nos contentando em esperar que elas venham até nós", disse Lozano. "Mais amplamente, ele está enviando a mesma mensagem a todos os católicos em toda parte".
Em outras palavras, insistiu Lozano, esses gestos não são apenas uma ofensiva atrativa, mas sim uma expressão de todo um plano pastoral, oferecendo um sinal claro sobre aonde o novo papa pretende levar a Igreja.
Não conservador
Segundo, a grande parte dos perfis iniciais do Papa Francisco o descreveram como um conservador teológico e político, em grande parte com base em dois pontos da sua biografia: que ele resistiu a algumas expressões da teologia da libertação como provincial jesuíta nos anos 1970, e que ele tinha uma relação complicada com o governo de centro-esquerda da presidente argentina, Cristina Kirchner, especialmente sobre a questão do casamento gay.
Embora ambas as coisas sejam verdadeiras, as pessoas que conhecem o tipo de solo aqui insistem que há pouco sentido em descrever Bergoglio como um "conservador", ao menos de acordo com os padrões da Igreja. Elas apresentam três pontos:
• Bergoglio é uma das pessoas menos ideológicas que você jamais conhecerá, mais interessado em situações práticas do que em grandes teorias políticas.
• A oposição mais séria a Bergoglio dentro do rebanho católico na Argentina geralmente vem da direita, e não da esquerda.
• Apesar de uma história pessoal matizada com a família Kirchner, Bergoglio tinha boas relações com outros membros do atual governo argentino e é uma pessoa aberta ao diálogo com todas as forças políticas.
Guillermo Villarreal, por exemplo, é um veterano jornalista que cobriu Bergoglio para a Agência Católica de Informações (ACI Prensa) da Argentina, um serviço de notícias patrocinado pela Igreja.
Ele me disse que, durante os seis anos que Bergoglio atuou como presidente da Conferência dos Bispos, de 2005 a 2011, ele teve um impressionante histórico em ser capaz de atrair consensos, perdendo apenas uma votação em todo esse período – um desacordo em 2009 e 2010 sobre quão dura deveria ser a linha a ser tomada contra o projeto de lei da Argentina sobre o casamento gay.
De acordo com Villarreal, Dom Héctor Rubén Aguer, de La Plata, Argentina, foi o líder dos "falcões", enquanto Bergoglio apoiava uma linha menos agressiva. A questão não era concordar ou não com o casamento gay, mas sim decidir quão incendiária deveria ser a retórica contra ele, e se a Igreja poderia sinalizar apoio a outras medidas para proteger os direitos civis de casais do mesmo sexo.
A partir dessa história, disse Villarreal, a maioria dos católicos na Argentina não imaginariam Bergoglio como um representante da ala direita dos bispos do país.
Alicia Oliveira, ex-juíza e crítica do regime militar da Argentina durante os anos 1970, diz que, para os círculos mais tradicionalistas da Argentina, Bergoglio sempre pareceu "muito suave, muito esquerdista", tanto que ela acredita que os elementos conservadores da hierarquia do país podem ter se mobilizado para impedir a sua eleição ao papado há oito anos. (Não tanto desta vez, acredita ela, mas apenas porque ele não era mencionado como um candidato muito proeminente).
Mariano de Vedia, que cobre religião e política para o jornal La Nación, acrescentou outra peça ao quadro.
O único outro prelado jesuíta do país, explicou, é o bispo aposentado Joaquín Piña Batllevell, de Puerto Iguazú. Ainda em 2006, o governador Carlos Rovira da província de Misiones, onde a diocese está localizada, tentou corrigir a constituição provincial a fim de permanecer no poder indefinidamente.
Piña tornou-se o líder de um movimento local chamado Frente Unida pela Dignidade, que apresentava candidatos para uma assembleia constituinte para impedir as as ambições de Rovira. Isso foi visto como um levante pró-democracia progressista, basicamente uma obra da centro-esquerda.
De acordo com De Vedia, acreditava-se amplamente que Piña estava agindo com as bênçãos nos bastidores do seu companheiro jesuíta Bergoglio – outra razão, disse ele, pela qual as pessoas que o conhecem não considerariam Bergoglio como um "conservador".
Talvez a leitura mais interessante sobre em que ponto do espectro Bergoglio se encontra vem de Juan Carr, um renomado ativista social da Argentina e indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 2012.
No catolicismo latino-americano, disse-me ele, "eu notei uma crescente divisão entre uma Igreja completamente focada no lado espiritual, e uma Igreja que está completamente comprometida com as questões sociais, mas sem enfrentar as necessidades devocionais do povo".
"Bergoglio é uma figura rara que transcende essa divisão, abrangendo ambos os lados".
O que tudo isso significa daqui para a frente?
Segundo o padre Pedro Brunori, padre do Opus Dei que atuou por 10 anos como diretor do Serviço de Informação Vaticano e que agora está de volta à Argentina como capelão hospitalar e universitário, é provável que a oposição mais significativa a Francisco com o passar do tempo virá da direita católica em vez da esquerda.
Alguns conservadores, previu Brunori em uma entrevista no dia 2 de abril, podem muito bem ver a "simplificação" da vida católica com Francisco como a "eliminação de algo da essência da Igreja".
Um governo forte
Enquanto as pessoas em outras partes do mundo católico podem estar se perguntando se Francisco poderá controlar a burocracia em Roma e trazê-la de volta para os trilhos, essa não parece ser uma grande preocupação daqueles que o viram trabalhar na Argentina.
Como me disse Maria Elena Bergoglio, irmã do papa de 64 anos, o seu irmão é "duro o bastante" para liderar.
Três características do seu estilo administrativo se destacam.
Primeiro, há pouco filtro entre Bergoglio e as pessoas envolvidas nas decisões que ele tem que tomar. Aqueles que o viram trabalhando dizem que, quando ele está diante de uma escolha difícil, ele mesmo pega o telefone e coleta informações de vários quadrantes, geralmente sem deixar qualquer pessoa em particular saber com quem mais ele está se consultando. Ele ouvirá atentamente, pensará e rezará sobre isso, e depois chegará à sua própria conclusão.
A propensão de Bergoglio de coletar e analisar informações por conta própria significa que ele é menos dependente de assessores e intermediários do que muitos CEOs em outras esferas da vida. Wals disse que, em Buenos Aires, Bergoglio basicamente foi "a sua própria mão direita".
Dentre outras coisas, isso pode indicar que a ansiosa expectativa em Roma sobre quem Francisco irá escolher como o próximo secretário de Estado pode ser um pouco exagerada – ele pode muito bem vir a ser um papa que é o seu próprio "primeiro-ministro".
Segundo, ele é um homem confortável no exercício da autoridade. Lozano disse que, durante os encontros duas vezes por mês que Bergoglio realizava com seus seis bispos auxiliares em Buenos Aires, ele sempre ia ao redor da mesa e solicitava aconselhamento, e levava isso a sério. Quando chegava a hora de decidir, porém, as coisas não eram postas em votação. Bergoglio nunca parecia ansioso ou extenuado.
Terceiro, Bergoglio pode ser um pacífico homem do povo, mas ele não é ingênuo com relação ao uso do poder para fazer com que o seu ponto de vista prevaleça.
Wals, por exemplo, observou que a primeira nomeação episcopal do novo papa foi a escolha de Mario Aurelio Poli, 65 anos, de Santa Rosa, como seu sucessor em Buenos Aires. Essa medida ocorreu no dia 28 de março, apenas 15 dias depois de Francisco ter sido eleito – dentre outras coisas, um sinal de que as rodas poderão girar mais rapidamente com este papa.
Além disso, Poli é outro ex-auxiliar de Bergoglio, e Wals disse que a nomeação é um sinal claro da "continuidade" com a ampla perspectiva pastoral do papa.
Da mesma forma, Bergoglio também não recuou diante do fato de responsabilizar as pessoas. Villarreal, por exemplo, disse que ele conhece ao menos um caso em que um padre não estava andando na linha e, depois de lhe dar uma chance para se endireitar, Bergoglio não hesitou em mandá-lo fazer as malas.
Diante de tudo isso, que tipo de reforma se poderia esperar de Francisco?
Em nossa conversa, Lozano estabeleceu uma agenda de reformas para o seu amigo – não no sentido de pressioná-lo, mas sim como uma forma para explicar o que se poderia esperar, dado o tipo de líder que ele sabe que Francisco é.
Lozano disse que qualquer reforma estrutural que Francisco possa executar estará a serviço da sua preocupação com a promoção de uma Igreja missionária. Não haverá reformas meramente em prol da eficiência, mas sim para "remover obstáculos para levar o evangelho ao mundo". Lozano depois enumerou cinco desses desafios:
• "O uso de dinheiro", não apenas com relação ao fato de equilibrar o orçamento vaticano, mas também com relação ao fato de se certificar de que está claro de onde instituições como o Banco do Vaticano conseguem o seu dinheiro e o que é feito com esses fundos.
(Com relação a isso, Wals previu que Francisco poderá realmente fechar o Banco do Vaticano, com base na sua história em Buenos Aires. Quando Bergoglio assumiu no fim dos anos 1990, disse Wals, a arquidiocese era sócia de vários bancos locais. Bergoglio rapidamente vendeu a sua parte e pôs o dinheiro da Igreja em bancos privados como um cliente normal.)
• "Uma purificação do coração, especialmente dentre aqueles mais próximos do papa", para combater as tentações do clericalismo e do carreirismo.
• Certificar-se de que os vários dicastérios do Vaticano estão a serviço das conferências episcopais e das Igrejas locais, em certa medida revertendo o que Lozano descreveu como uma "centralização muito forte" nos últimos anos. Ele citou o tratamento dado aos casos de anulação e a tradução de textos litúrgicos como questões que poderiam ser melhor tratadas em níveis mais baixos.
• "Continuar o processo de transparência" no que diz respeito a casos de abuso sexual de menores por parte de clérigos católicos.
(No dia 5 de abril, Francisco começou o dia dizendo ao arcebispo alemão Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que busque "medidas de proteção dos menores, a ajuda de quantos no passado sofreram tais violências, [e] os procedimentos devidos em relação aos culpados", assim como estimule as Conferências Episcopais na "formulação e atuação das diretrizes necessárias neste campo tão importante para o testemunho da Igreja e para a sua credibilidade".
• Promover a Nova Evangelização "entendendo melhor a cultura contemporânea", especialmente a forma como o processo de globalização está se desenrolando de forma diferente em várias partes do mundo.
• Uma "melhor inculturação" da linguagem que a Igreja usa e das estratégias pastorais que ela emprega.
"Essas são todas coisas que eu conversei com ele ao longo dos anos e que nós discutimos entre os bispos", disse Lozano. "Se ele me telefonar, eu vou lhe dar a lista completa!"
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Quem Francisco poderá ser com base no que Bergoglio foi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU