01 Abril 2013
Na tarde do último dia 7 de março, a notícia de que uma bomba havia explodido na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro reavivou velhos fantasmas.
Pouco mais de 30 anos antes, no dia 27 de agosto de 1980, a explosão de uma carta-bomba endereçada ao então presidente da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes, acabou por matar a secretária Lyda Monteiro da Silva, em um episódio ainda não esclarecido totalmente, mas que é interpretado como uma reação de alguns setores à atuação da OAB no combate à ditadura.
A reportagem e a entrevista são publicada pela BBC Brasil, 02-04-2013.
Apesar da lembrança, a explosão do mês passado foi causada por um artefato menor, conhecido popularmente como "cabeção de nego", e não deixou feridos ou prejuízos materiais.
Mesmo assim, a ligação entre os dois episódios não está totalmente descartada. Informações recebidas pelo Disque Denúncia naquele dia davam conta de que o ex-presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, seria alvo de um atentado praticado por militares da reserva.
Formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Damous foi presidente OAB-RJ entre 2007 e 2012. Mestre em Direito Constitucional pela PUC-RJ, ele foi confirmado pelo governador Sergio Cabral como presidente da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, que vai atuar em parceria com a Comissão Nacional da Verdade para investigar crimes cometidos por agentes da ditadura no Estado.
Em conversa com a BBC Brasil, Damous explicou como será o trabalho da Comissão do Rio, que contará com outros seis integrantes e está em vias de instalação.
Segundo ele, entre os pontos a serem investigados estão as possíveis ligações entre a explosão de 1980 na OAB e o atentado do Riocentro, ocorrido em 30 de abril de 1981 e que teria sido uma tentativa frustrada de setores militares para desestabilizar o processo de abertura política. Na ocasião, a bomba que seria usada no atentado acabou vitimando dois de seus autores, matando o sargento Guilherme Pereira do Rosário e ferindo o então capitão Wilson Dias Machado.
Segundo Damous, há indícios de que os dois episódios tenham tido ligações "em termos de autoria e articulação de mando".
Além disso, a Comissão da Verdade do Rio deve investigar outros episódios marcantes do período, como o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva e a ligação entre empresários e o regime militar.
Eis a entrevista.
A partir de sua instalação, a Comissão da Verdade do Rio tem um período de dois anos para concluir seus trabalhos. O que o senhor espera ter alcançado no final deste período?
Nós já vamos iniciar os trabalhos com um ano de defasagem em relação à Comissão Nacional da Verdade, e uma das missões da Comissão estadual é subsidiar, complementar, os trabalhos da Comissão nacional.
Então nós já acertamos que, completado um ano de trabalho aqui, nós vamos apresentar um relatório à Comissão Nacional da Verdade, que estará encerrando os seus trabalhos em maio do ano que vem, se o prazo não for prorrogado.
Quais os principais casos que devem ser investigados pela Comissão estadual?
Eu tenho a certeza de que, quando a Comissão estiver definitivamente instalada, o planejamento inicial pode ser alterado, porque, no curso das investigações de um caso, pode ser que se apontem pistas para outro caso que até então não estava previsto em nosso planejamento.
O fundamental é que nós vamos selecionar. A não ser que apareça um fato relevante anterior, o nosso período de investigação será a partir de 1964. E dentro desse período nós vamos selecionar alguns episódios que jogam luzes sobre a atuação da repressão da ditadura civil-militar naquele período no Estado do Rio de Janeiro.
Eu poderia apontar para você obviamente os casos de desaparecidos, e entre esses casos, há casos emblemáticos, como o de Rubens Paiva (ex-deputado federal desaparecido em 1971) e Stuart Angel (militante desaparecido em 1971), sem prejuízo de outros.
Há episódios de terrorismo de Estado, como as bombas na OAB (que deixaram uma pessoa morta em agosto de 1980) e no Riocentro (que vitimou um de seus autores, um sargento do Exército).
Há o episódio macabro da Casa da Morte, em Petrópolis, da qual só uma pessoa saiu viva, a senhora Inês Etienne Romeu, e por onde passaram presos que não saíram vivos. Nós queremos saber onde eles estão enterrados e queremos saber quem eram os responsáveis pela Casa da Morte.
Alguns militantes dos direitos civis vêm criticando a Comissão Nacional pelo fato de os depoimentos serem protegidos por sigilo e não terem seu conteúdo revelado. A Comissão Estadual vai funcionar da mesma forma?
Esse é um trabalho que envolve investigação, muito análogo ao trabalho policial. Nós estamos em busca de autoria de crimes e, muitas vezes, para obter a informação, talvez o sigilo se faça necessário.
Agora, do meu ponto de vista, prestado o depoimento, nós pretendemos divulgar (seu conteúdo), ainda que a pessoa não seja identificada. Eu não estou entrando no mérito aqui das decisões da Comissão Nacional da Verdade, que tem lá os critérios deles, mas nós vamos estabelecer um critério aqui que é de ampla divulgação.
Se nós tivermos a clareza de que em relação àquele caso as informações já foram prestadas, nós vamos divulgar sim.
Nós queremos saber a verdade. Se para obter a verdade há exigência de anonimato, nós vamos atender à exigência de anonimato. Se a pessoa deixar claro que sabe, ou participou ou foi autora de um crime, mas quer se manter no anonimato, nós vamos garantir o anonimato. Se não, não adianta nada.
Recentemente foram reveladas ligações entre empresários paulistas e a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) com o aparato de repressão no Estado de São Paulo. Há indícios de que isso pode ter acontecido no Rio também?
Isso vai estar em nossas investigações. Há indícios nesse sentido, não com o mesmo peso de São Paulo, onde entidades como a Fiesp participaram ativamente do financiamento à repressão, mas nós vamos investigar isso também.
Nós estamos prestes a receber uma relação de possíveis empresas e empresários que teriam auxiliado nos trabalhos da repressão aqui no Rio de Janeiro. Nós ainda não temos em mão essa documentação, mas isso está no nosso horizonte.
Quando começaram as discussões sobre a Comissão Nacional, houve uma pressão para que se investigasse também eventuais crimes cometidos por militantes contrários ao regime. A Comissão da Verdade estadual vai investigar eventuais crimes cometidos por militantes de esquerda?
Não. Primeiro, a lei que cria a Comissão Nacional da Verdade e a lei que criou a Comissão Estadual da Verdade estabelecem que as Comissões foram criadas para apurar crimes contra os direitos humanos. Violação dos direitos humanos quem comete é o Estado. Particular não comete violação dos direitos humanos, não comete crime contra os direitos humanos.
Além do mais, se eu fosse aprofundar essa discussão, que para mim parece mais provocação de elementos ligados aos episódios que serão investigados, eu diria que todos já sabem o lado dos militantes. Primeiro, eles não têm vergonha de dizer o que fizeram, ao contrário dos agentes do Estado, que se escondem até hoje.
Todas as ações da esquerda armada ou desarmada são do conhecimento público. Se esses militantes tivessem que ser punidos, já o foram com juros e correção monetária, pagando ou com a própria vida ou sendo torturados, presos, exilados.
Então, (estes fatos) não serão investigados. Só há um lado que será investigado, é o lado do Estado, dos agentes públicos, civis e militares que praticaram torturas, assassinatos, estupros, sequestros e desaparecimentos.
Os militantes praticaram crimes políticos, estes sim anistiados pela Lei de Anistia. Quem cometeu crime comum de lesa-humanidade foram os agentes públicos do Estado. Desaparecimento forçado, estupro e assassinato quando o preso está sob custódia não é crime político.
E no caso de crimes cometidos por pessoas que apoiavam o regime, mas não estavam ligadas ao Estado diretamente? Supondo a hipótese de que a bomba na OAB tivesse sido obra de um civil, por exemplo...
Toda a lógica desse tipo de crime indica que essas pessoas, ainda que sejam civis, não tenham uma vinculação jurídica com o Estado, agem em conluio ou agem a mando (do Estado).
Por exemplo, os famosos Comandos de Caça aos Comunistas (CCC), o Movimento Anticomunista (MAC), todos eles agiam como braços armados de órgãos de Estado.
Agora, independentemente disso, o que nós queremos dizer à sociedade brasileira é o que aconteceu, como aconteceu e quem fez acontecer. Se no caso, por exemplo, da bomba da OAB, ficar demonstrado que foi um civil que não gostava na atuação da OAB, isso vai ser dito.
Agora, obviamente, não foi isso que aconteceu. A bomba na OAB foi colocada por agentes públicos. Não há a menor dúvida. Nós vamos é ver quem foi, a mando de quem, como é que foi articulado.
Já há pistas de que os dois atentados, a bomba do Riocentro e a bomba da OAB, embora com um ano de diferença, têm ligação entre si. Então tudo isso será objeto de investigação.
Então há indícios de ligação entre os dois atentados?
Sim, em termos de autoria e em termos de articulação de mando. Eu não tenho como dar mais detalhes porque isso será minuciosamente investigado. Mas já recebemos algumas notícias nesse sentido. Nós vamos apurar, se tem consistência ou se não tem.
Só para se ter uma ideia, o sargento (Guilherme Pereira do Rosário) que se autovitimou na bomba do Riocentro fui visto um ano antes colocando flores no túmulo da dona Lyda (Monteiro da Silva, vítima do atentado na OAB). Ele não era parente de dona Lyda, isso pode ter configurado uma crise de consciência...enfim. Tudo vai ser investigado.
O senhor não teme que o trabalho da Comissão seja classificado como revanchista?
Isso é outra aleivosia que esses grupos levantam. Primeiro, revanchismo, ao pé da letra, seria defender fazer com eles o que eles fizeram com os outros. Revanche aí seria propugnar a tortura de quem torturou, desaparecer com quem fez desaparecer, seria, enfim, cometer as mesas ilegalidades que eles cometeram. Que eu saiba ninguém está defendendo isso.
Além do mais, o poder das Comissões da Verdade é um poder limitado. A Comissão não tem amplos poderes jurisdicionais. A Comissão não julga, não processa e não pode condenar.
Isso não tem nada a ver com revanchismo. Isso se chama Justiça de transição e as Comissões da Verdade são instrumentos da ação chamada justiça de transição e servem para conscientizar a sociedade de que um dia o seu país foi palco de atrocidades como essas, com o objetivo final de que isso nunca mais aconteça.
O STF reafirmou a validade da Lei de Anistia em 2010, mas alguns juristas entendem que determinados crimes, ditos permanentes, como ocultação de cadáver, não seriam alcançados por ela. Qual a opinião do senhor sobre isso e como isso pode afetar o trabalho da Comissão?
Tecnicamente, do ponto de vista estritamente jurídico, eu concordo com a tese. Agora, o trabalho da Comissão não vai ser esse. O trabalho da Comissão é memória e verdade, revelar memórias, revelar fatos, e estabelecer a verdade oficial. Porque até então, a verdade oficial era a verdade do regime, a verdade de um dos lados. Então estabelecer a verdade oficial é o papel da comissão.
Então, esses outros aspectos, de posteriormente os agentes virem a ser responsabilizados criminal ou civilmente, isso não diz respeito ao trabalho das Comissões da Verdade.
Opiniões pessoais à parte, nós vamos nos centrar no trabalho de investigação.
Então o trabalho da Comissão não deve levar a nenhum tipo de ação judicial?
Eu não sei se, por exemplo, os familiares vão se valer dos relatórios da Comissão Nacional e da Comissão Estadual como instrumento para a propositura de ações judiciais. Isso é algo que o futuro vai dizer, mas isso não será por conta de uma iniciativa da Comissão da Verdade.
Vai ser a interpretação que determinados grupos farão no sentido de acharem que esses relatórios são um instrumento de reabertura de casos, de propositura de ações judiciais. Mas as Comissões da Verdade, nesse aspecto, não terão nada a ver com isso.
É possível fazer Justiça sem punir os culpados?
Filosoficamente, não.
Vamos lá. Qual seria o êxito da Comissão? Como é que nós poderíamos dizer: a Comissão teve êxito? Bom, o êxito total será nós dizermos à população brasileira (por exemplo) onde está enterrado Rubens Paiva, quem foram seus torturadores e quem mandou fazer isso com ele. Ponto. (Poderíamos dizer que) no caso Rubens Paiva a Comissão teve pleno êxito.
Agora, do ponto de vista do sentimento de Justiça, isso já não compete mais à Comissão, porque eu repito: ela não tem poderes jurisdicionais.
Meu entendimento pessoal é de que a Justiça ficou no meio do caminho. Se esses agentes, ainda vivos, não podem ser processados e consequentemente punidos, deixou-se de fazer Justiça.
Mas, repito: esse não é o papel da Comissão.
O Brasil criou a Comissão Nacional da Verdade e consequentemente as comissões estaduais muito depois de países como Argentina, Chile e Uruguai. Isso não compromete a eficácia do trabalho dessas comissões, já que muitos dos responsáveis pelos crimes cometidos na ditadura estão mortos ou idosos?
É verdade, pode comprometer sim. E esse é mais um déficit da democracia brasileira. Aqui houve transição (para a democracia) sem Justiça. Então a Comissão da Verdade veio de fato muito tarde. Provas se perderam, agentes morreram...
Agora, ainda há muita coisa para investigar, ainda há muita gente viva, ainda há muitos documentos hoje sendo descobertos. Há documentos nos ministérios, há documentos em empresas estatais, como a Petrobras, enfim, há ainda os arquivos militares, que eles alegam terem sido destruídos, mas vira e torna aparece um ou outro documento.
O senhor estava dizendo que houve uma grande resistência aqui no Rio para a instalação da Comissão. Houve resistência na Assembleia Legislativa por parte de alguns deputados, houve resistência de militares da reserva. As feridas da ditadura estão mais abertas no Rio?
O Rio foi talvez o principal palco da repressão política no Brasil. Aqui mora a grande maioria dos agentes públicos envolvidos em torturas, assassinatos, sequestros, enfim.
Então aqui é o maior palco da resistência ao desenvolvimento dos trabalhos de uma Comissão da Verdade. Nós vamos ter que saber enfrentar esses obstáculos.
Eu diria que a Comissão da Verdade do Rio, por conta desses fatos, tem uma importância quase tão grande quanto a Comissão Nacional. Se aqui no Rio de Janeiro nós conseguirmos apurar com êxito, conseguirmos mostrar como aconteceram esses episódios, com as autorias, o paradeiro de desaparecidos, etc, praticamente a maior parte dos crimes cometidos pela ditadura militar terá sido elucidada.
Agora, (sobre) as feridas abertas, enquanto houver cidadãos brasileiros desaparecidos, essas feridas nunca cicatrizar.
No início do mês de março nós tivemos a explosão de um pequeno artefato, conhecido popularmente "cabeção de nego", no prédio da OAB do Rio. Na época o senhor relacionou o incidente à sua indicação à presidência da Comissão da Verdade. Quem pode ter feito isso e por quê?
Naquele momento nós levantamos uma hipótese, porque meu nome poucos dias antes havia sido anunciado como o futuro presidente da Comissão da Verdade e a OAB foi vítima (da ditadura), então levantou-se essa hipótese.
Sobretudo com base no registro do Disque Denúncia. Houve um telefonema, obviamente anônimo, dizendo que militares da reserva estavam tramando meu assassinato e iam explodir bombas na OAB.
Agora, se isso é verdade, só pode estar ligado ao fato de nós estarmos comprometidos com os trabalhos da Comissão da Verdade. Agora, é uma hipótese, até agora nós não temos notícias de uma definição das investigações.
Em sua opinião pessoal, como jurista, o Brasil deveria rever a Lei de Anistia?
O que eu percebo em outros países da América Latina, Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai, países onde houve ditaduras violentas, é que existe uma mobilização social nesse sentido, reivindicando Justiça, reivindicando apuração dos fatos.
E aqui no Brasil nós temos um cenário que é justamente o contrário. Não há muita mobilização social em torno dessas bandeiras. Eu acho que se hoje houvesse uma votação no Congresso Nacional pela revisão da Lei de Anistia no sentido de punir agentes do Estado, esse projeto não passaria.
Agora, é algo tecnicamente possível, até porque a autoanistia é um fenômeno que é condenado em todo mundo. Em todos os países democráticos a concessão de autoanistia é considerada nula. Então tecnicamente é perfeitamente possível que o Congresso Nacional, em revisão da Lei de Anistia, deixasse claro que a anistia não se estende aos agentes públicos que cometeram crimes de lesa-humanidade.
Agora, politicamente eu tenho dúvidas de que isso possa acontecer, pelo menos em curto prazo.
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Comissão da Verdade do Rio investiga ligação entre atentados na OAB e Riocentro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU