24 Março 2013
"Apropriações, interpretações e recuperações dos primeiros gestos do papa Francisco junto a diferentes grupos eclesiais no Brasil" é o tema do artigo de Sérgio Ricardo Coutinho, presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil).
Sérgio Ricardo Coutinho é mestre (UnB) e doutorando (UFG) em História Social; professor de “História da Igreja” no Instituto São Boaventura e de “Formação Política e Econômica do Brasil” e de “Teoria Política” no Centro Universitário IESB, em Brasília; membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil).
Eis o artigo.
Mais que um evento eclesial, o conclave e a consequente eleição de Francisco – em especial este que foi amplamente acompanhado após o fato novo da renúncia de Bento XVI – devem ser vistos enquanto um “evento comunicativo”. No campo dos estudos de “recepção”, Michel de Certeau destacou a importância para a criatividade das pessoas na esfera do consumo, suas reinterpretações ativas das mensagens a elas dirigidas e as táticas para adaptar o sistema de objetos materiais às próprias necessidades. Um conceito fundamental, segundo ele nesta discussão, é o de apropriação, às vezes acompanhado de seu oposto complementar, a recuperação de objetos e significados pela cultura oficial ou dominante.
Nosso objetivo aqui é o de apresentar as apropriações, interpretações e recuperações dos primeiros gestos do papa Francisco junto a diferentes grupos eclesiais no Brasil.
Entre os membros da estrutura eclesiástica, de modo especial os cardeais brasileiros que participaram do último Conclave, Francisco traz a esperança de uma Igreja “reformada”, mais simples, despojada, ao lado do povo, para ser capaz de uma “nova evangelização” e se tornar crível.
Dom Raymundo Damasceno Assis (presidente da CNBB) assim vê o novo papa: “Um pastor que ama o seu povo, que está inteiramente voltado para o cuidado do seu povo, mas ao mesmo tempo aberto ao mundo, a todos os demais povos, com os que pertencem a uma outra religião... um homem de grande simplicidade, de grande amor aos pobres.
Para Dom Claudio Hummes: “o nome é todo esse programa. Hoje, a Igreja precisa, de fato, de uma reforma em todas as suas estruturas. Será uma obra gigantesca. Alguém disse já que a escolha do nome Francisco já é uma encíclica, não precisa nem escrever”.
Outro grupo eclesial, formado pelos(as) teólogos(as) da libertação, o horizonte de expectativa é uma mescla da sensação de uma brisa de “primavera” em meio ao ainda pesado vento de “inverno” presente.
Para Leonardo Boff, “o importante agora não é o homem, mas sim a figura de um papa que escolheu se chamar Francisco, que não é apenas um nome, mas sim um projeto de Igreja. Uma Igreja pobre, popular. Uma Igreja do Evangelho, distante do poder e próxima das pessoas. Penso que esse papa é o novo rosto da Igreja, humilde e aberta, que pode trazer a experiência do ‘Grande Sul’, onde vivem 70% dos católicos”.
Segundo José Oscar Beozzo, experiente historiador da Igreja, a presença de um papa jesuíta é uma grata ruptura na tradição histórica porque “sempre houve um temor de ter um jesuíta, de ser ao mesmo tempo um ‘papa branco’ e ‘papa negro’. Isso [a eleição de Francisco] rompeu com uma tradição histórica, pro bem da Igreja”. Para ele, a escolha do nome toca um tema fundamental na trajetória da Igreja latino-americana: a opção pelos pobres, como também um compromisso com a preservação ambiental.
Paulo Suess, missiólogo e assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), falando em nome das pastorais sociais do Brasil, deseja que o papa Francisco, inspirado no santo de Assis, “no abraço dos leprosos, que hoje se encontram não só na cúria romana, mas por toda parte do mundo, encontre sua missão profunda e conversão permanente” e que ele, “como São Francisco, na oração diante do ícone da cruz na Igreja de São Damião, escute a voz de Jesus, que o convida para a reconstrução da Igreja em ruína da qual todos fazemos parte”.
Apesar desta recepção positiva, entre as mulheres a percepção e a apropriação é bem diferente.
Para a teóloga feminista Ivone Gebara, “a figura bondosa e sem ostentação eleita pelos cardeais... escondeu o homem real com suas numerosas contradições e temos [agora] uma percepção mais realista de sua biografia”, ou seja, a aproximação do então cardeal Jorge Maria Bergoglio com a ditadura militar argentina. Daí ela recupera uma tese típica dos anos de “Guerra Fria” e também utilizada agora pelo governo venezuelano após a morte de Hugo Chávez: o “complô”. “Foi possível intuir que sua eleição é, sem dúvida, parte de uma geopolítica de interesses divididos e de equilíbrio de forças no mundo católico. A cátedra de Pedro e o Estado do Vaticano devem mover suas pedras no xadrez mundial para favorecer as forças dos projetos políticos do norte e dos seus aliados do sul. O sul foi de certa maneira co-optado pelo norte. Um chefe político da Igreja, vindo do sul vai equilibrar as pedras do xadrez mundial, bastante movimentadas nos últimos anos pelos governos populares da América latina e pelas lutas de muitos movimentos entre eles os movimentos feministas do continente com reivindicações que atormentam o Vaticano.”
Na linha dos movimentos feministas que “atormentam” o Vaticano, a socióloga Lúcia Ribeiro revelou seu mal-estar ao acompanhar toda a cobertura dada pela mídia, por muitos artigos e entrevistas sobre a eleição de Francisco. Isto porque “todo o processo visibiliza e deixa explícita a exclusão da mulher da esfera de poder da Igreja Católica”. Reconhece que as mudanças estruturais são demoradas, mas “o fundamental é a transformação que vem das bases. É aí que as mulheres começam a ocupar um lugar fundamental, como agentes de pastoral, coordenadoras de comunidades, assessoras, participantes de ministérios não ordenados, ou de tantas outras formas, como membros ativos de suas comunidades”.
Outra interpretação vem da teóloga, respeitada nos meios eclesiais e eclesiásticos no Brasil e em Roma, Maria Clara Bingemer. Para ela, Francisco chamou a atenção por sua profunda espiritualidade inaciana e esta poderá ajudá-lo muito no exercício do seu ministerio petrino: “Inclinando a cabeça pediu a oração do povo por sua pessoa e seu ministério. Foi um gesto típico de alguém formado na escola de Inácio de Loyola, cuja maior aspiração é seguir e servir o Cristo pobre e humilde”.
Entre os carismáticos, este mesmo gesto de Francisco proporcionou outra interpretação e outra apropriação. Para o fundador da Comunidade Canção Nova, Monsenhor Jonas Abib, e para Luzia Santiago, uma das coordenadoras deste movimento, ir até a Praça de São Pedro foi uma “obrigação” porque tinham “que estar onde a Igreja está”. Para Monsenhor Jonas, Francisco “pede para que a Igreja seja orante, simples, pobre, totalmente a serviço” e “estamos aqui dispostos a fazer o que o papa nos diz a fazer”. E o que ele disse a fazer? “Que orem por ele”. Como um dos fundadores da Renovação Carismática Católica no Brasil, Monselhor Jonas viu naquele gesto (de baixar a cabeça) o mesmo que acontece em muitos grupos de oração da RCC: “estava à espera da luz do Espírito Santo. Espera que seja conduzido pelo Espírito Santo e só faltou a Praça inteira estender a mão, para que orássemos em língua sobre o papa, porque o Espírito Santo estará presente para governar a barca de Pedro”.
Para este grupo, nunca houve “inverno” na Igreja. Somente “primavera” e ela continuará com a ajuda do Espírito Santo.
Por fim, o grupo dos restauradores da identidade católica. Para estes a “primavera” trazida por Bento XVI (mais que João Paulo II) parece que se transformará em um “outono” e temem o frio do “inverno”.
O desafio posto para este grupo vem da seguinte pergunta: Como ser obediente a um papa que se aproxima demais dos pobres e do Concílio Vaticano II? A resposta: recuperar a continuidade do papado.
Para Pe. Marcélo Tenorio, articulista do site Montfort, o “Magistério de Bento XVI foi um magistério claro, preciso, tendo como fundamento a Verdade sobre Deus, sobre a Igreja e sobre o Homem. Preocupou-se profundamente com a questão da Sagrada Liturgia. Condenou severamente o relativismo”. No entanto, ficou deveras surpreso e decepcionado quando viu surgir o papa Francisco: “Não posso negar minha surpresa ao vê-lo surgir no balcão da Basílica. Também não posso negar que fiquei confuso diante de seus primeiros gestos, desde as vestes, como também o uso da Estola Petrina (que indica a autoridade do Vigário de Cristo), concluindo com sua inclinação diante do povo, além de se colocar, várias, vezes, apenas como ‘o bispo de Roma’”. Ao final do artigo não perde a esperança de um futuro melhor: “Os teólogos da libertação e escravidão das consciências, os boffes heréticos e baderneiros, os liberais, modernistas e positivitas apressadamente já se juntam para gritar ‘Viva Francisco!’ Contra eles e pela Igreja gritamos também nós, junto de Dom Bosco: VIVA O PAPA!”
Outro articulista do site, Alberto Zucchi, interpreta o nome Francisco de forma positiva em vista do projeto de Igreja que defendem: “A escolha do nome de Francisco lembrando ao Santo de Assis tem sido apresentada pela imprensa como sendo uma menção especial à proteção da natureza, mas a obra deste grande santo foi sobretudo a restauração da Igreja em um tempo de grande corrupção e heresia. Nosso Senhor pediu a São Francisco ‘restaura minha Igreja’. Sem dúvida o Papa precisará de muitas forças para restaurar a Igreja como pediu Nosso Senhor a São Francisco. Unamos nossas orações as do Papa. No momento é o que devemos e o que é possível”.
Outro que também comunga deste mesmo projeto eclesiológico é o Pe. Paulo Ricardo, que possui um programa em sua home-page “Christo Nihil Praeponere” (“A nada dar mais valor que a Cristo”).
Pe. Paulo organizou um longo programa, com mais de uma hora, para explicar aos seus fiéis seguidores os “novos” gestos do papa Francisco, especialmente na Liturgia. Segundo ele, seria um programa com um tom de “direção espiritual”, pois muitos estavam agitados, perplexos e com algum temor sobre o futuro da Igreja, e de sua liturgia, após a eleição de Francisco.
Diante de muitas questões recebidas por e-mail, entre elas sobre se deveria ou não obedecer ao papa, Pe. Paulo com muito cuidado diz: “Primeiro, precisamos crer, precisamos ter fé, fé na graça que ele recebeu ao ser eleito. Precisamos dar passos espirituais em diante. Esqueçam o passado e vamos ver o futuro que ele nos dará. Se nós estamos condenando antes de fazer as coisas assim não haverá condições de continuar”. E, com certa dose de constrangimento, arremata: “Vocês sabem o quanto eu quero bem a Bento XVI e creio que ele foi sucessor de Pedro, porque creio neste amor, nesta benevolência de filho a um pai. Mas isto não me impede de dizer que, em muitas decisões dele, tenho sérias dificuldades em estar de acordo e posso fazer uma lista de decisões que não estou inicialmente de acordo, mas preciso ter uma benevolência, tentar ver o bem que dali brota. Não posso dizer que estou de pleno acordo com a renúncia de Bento XVI”.
Buscando tranquilizar os “espíritos” dos seus telespectadores, conclui: “Nenhum papa é completo. Perdoemos os erros de Bento XVI e também os futuros erros de Francisco, porque somos católicos. As pessoas estão exasperadas na internet! Não foi um partido que mudou! O papado continua! Bento XVI lutou para uma ‘hermenêutica da continuidade’. Devemos rezar pela ‘hermenêutica da continuidade’ no papado de Francisco”.
Enfim, os gestos surpreendentes de Francisco parecem que tem provocado (vamos ver o que ainda vem pela frente) sensações, sentimentos e desejos diferentes, divergentes e convergentes. Como disse Jesus, e muito valorizada pelo papa João XXIII, prestemos atenção aos “sinais dos tempos”, pois para uns seria o início de uma “nova primavera” e para outros estaria chegando o seu fim.
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A recepção de Francisco no Brasil Entre o início e o fim de uma “primavera” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU