Por: Jonas | 26 Fevereiro 2013
“Um medroso com poder é perigosíssimo (e pior ainda se, além disso, é tonto). E muito pior ainda, se não existe nenhuma instância de revisão dessas decisões. E o pior, em grau elevado, é quando se afirma que essas decisões tem origem no próprio Deus. Aí, o beco parece sem saída”. A opinião é do padre argentino Eduardo de la Serna, coordenador do Movimento dos Sacerdotes em Opção pelos Pobres, em artigo publicado no jornal Página/12, 25-02-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A renúncia do Papa “mexeu num vespeiro”. Para o bem e para o mal. Centenas de notas e artigos, em grande parte desnecessários, inúteis ou insuportáveis; muitos que mais parecem “lobby” do que informação, muitos que vendem “peixe podre”, muitos que revelam mais a ignorância do autor ou uma visão que, de tão parcial, é supérflua. Outros são de mera informação sem análise (às vezes é preferível isso); outros possuindo boa informação, com análises pobres; outros parecem sensatos e sérios, mas não temos condições de ficar seguros. A grande capacidade que nós, seres humanos, temos de acreditar em conspirações, convida-nos a aceitar (ou querer escrever) muitas notas que “se non è vero è bem trovato” [se não é verdade, foi muito bem contado].
Vêm à luz supostas máfias, fraudes econômicas, jogos (sujos) de poder, chantagens homossexuais e dezenas de coisas do estilo. E que muito – ou tudo – disto foi desencadeador da renúncia do Papa. Lamentavelmente, para muitos de nós não causa o mínimo estranhamento o fato destas coisas existirem na última monarquia absoluta que resta no mundo. Pessoalmente, para mim torna-se mais incrível que o Papa tenha renunciado porque se sente sem forças para conduzir a nave de Pedro, que navega tranquila num mar tempestuoso, e que na Igreja, “casa de todos” com alegria e paz, o Papa tenha desejado deixar lugar a outros, para seguir harmonicamente – agora a partir da clausura – a mansa vida eclesial. Para mim, esse conto de fadas é mais incrível do que o conto policial anterior.
Sem dúvidas que a democracia não é uma panaceia, e já vivemos o fracasso daquele que disse que “com a democracia se come, se educa e se trabalha”. Pessoalmente, acredito que a democracia é ruim, mas é de longe, de muito longe, o menos pior de todos os sistemas conhecidos. Sim, acredito que há diferentes formas de exercer a democracia, e há democracias participativas, populares, liberais, etc... Porém, mesmo a pior delas é ainda melhor do que a melhor das outras.
Por isso, não acredito que a democracia cure todas as feridas no corpo eclesial, mas, sem dúvida, ajudaria muito. A transparência costuma ser um grande inimigo daqueles que escolhem as sombras para lidar com algumas (ou todas) gestões turvas que foram destacadas. Se a eleição dos bispos ficasse nas mãos das conferências episcopais e não dos núncios e, depois, de secretos escritórios vaticanos, em troca de favores de algum tipo, econômico, sexual ou político, as nomeações seriam bem diferentes. É verdade que com conferências como as da Argentina, Colômbia e México não há muitas esperanças, mas não é menos verdadeiro que mais de um arcebispo ou bispo argentino, atualmente, não estariam nomeados, caso a transparência fosse o critério de base.
A monarquia absolutista não apenas permite nomeações turvas (que acabam atribuindo ao Espírito Santo, o que, além de ser incontestável, é uma boa fonte de impunidade e arbitrariedade), como também permite autoritarismos que não podem se defender. Se alguém tem a soma do poder público, como poderíamos nos defender de seus excessos, por exemplo? Os casos das centenas de teólogos censurados pela moderna inquisição são um bom exemplo disto. Se é o Papa (ou seus “ministros”) quem censura alguém, e é apenas diante do Papa (ou seus ministros) que se pode apelar, que futuro tem tal recurso? Sem mencionar a pedofilia, escândalo que clama ao céu. Há liberdade de imprensa no L’Osservatore Romano? Há pluralidade de vozes? Lei dos Meios de Comunicação no Estado Vaticano, já!
Para piorar, o seio da Igreja está rodeado de argumentos, supostamente teológicos, que ajudam a proteger ainda mais o sistema que a sustenta: “aquele que obedece não erra”, “prefiro errar com meus superiores, a acertar sem eles”, “fora da Igreja não há salvação”, “infabilidade...”. Assim, qualquer indício de rebeldia fica apagado ou – pelo menos – não é acompanhado por outros mais temerosos, que “temem ser infiéis a Deus”. Poderíamos destacar que a infabilidade da Igreja não se refere a negócios turvos, nem a nomeações episcopais (ou do entorno papal), o que quer dizer “Igreja” é outra coisa muito diferente, mas não é este o espaço para isso. O certo é que ditos como esses (que escutamos) parecem ser mais para “cuidar da retaguarda”, do que a um sadio e fraterno povo de Deus, que caminha conduzido pelo Espírito Santo. A realidade se ocupa de desmenti-los a cada momento.
O que acontecerá com o futuro papa? Nem imagino! Poderia dizer o que sonho que aconteça, mas não é importante. E – de qualquer forma – acredito que muito mais urgente é pensar o que acontecerá com o papado, que é outra coisa. Que na Igreja católica romana exista “Pedro” é razoável, o que não parece sensato é que Pedro se pareça mais com Constantino do que ao pescador da Galileia, impulsivo, entregue, simples, capaz de se retratar depois de suas múltiplas “tolices”...
Contudo, isto que é a Igreja universal também se replica nas igrejas locais. Novamente o poder absoluto e a falta de transparência fazem com que a Igreja se pareça mais com um feudo, um castelo blindado, do que com uma comunidade fraterna. Aqui também há muita informação jornalística que “vende fruta”, mas há centenas de casos, de ontem e de hoje, que são graves e escandalizadores, mas “a soma do poder público” consagram-lhes na impunidade.
Para não falar dos escândalos já antigos, poderia se falar do escândalo do bispo de Chiapas (México) não poder ordenar diáconos indígenas (a “mama” Roma não autoriza), do bispo de Lima (Peru) – da Opus Dei – querer se apoderar da Universidade Católica (com o apoio da Cúria Romana, claro), do pedófilo Karadima (Santiago, Chile) conseguir nomeações episcopais de membros de seu séquito, de um bispo colombiano manifestar publicamente sua proximidade (e apoio econômico, claro) dos paramilitares. Entretanto, deter-me-ei num caso pontual: diferente de certas dioceses – como La Plata, por exemplo -, que parecem eternamente castigadas e condenadas por Roma em suas nomeações, Santiago del Estero era privilegiada: Girao, Sueldo, Maccarone. Isso era intolerável para a involução eclesial iniciada por João Paulo II e, então, diante da digna renúncia de Maccarone, elegeu-se como sucessor Francisco Polti (Opus Dei). Como é coerente com o grupo ao que pertence, Polti (Opus Dei) se relacionou com a gente do poder, pelo qual, obviamente, supõe o abandono dos frágeis, pobres, camponeses...
Enfrentar os poderosos é perigoso (Maccarone, Piña ou Bargalló que o diga). E ser amigo deles é benéfico, sem dúvidas. O certo é que Polti (Opus Dei) – e depois seu auxiliar, Torrado – abandonaram à sua sorte as comunidades camponesas, indígenas, os pobres de Santiago del Estero. E – claro – fazer uma “opção preferencial pelos ricos” supõe ser sua voz. Não porque fica bem, é claro, mas por estar em comunhão e de acordo com eles. Afinal, para isso o nomearam (ou isso também não aconteceu no Iguazú?). Isto é a coisa mais lógica dentro desta perversão, daí Polti (Opus Dei) sair defendendo a ditadura militar (não é a mesma coisa o que aconteceu com Delgado, também da Opus Dei, e com seu irmão e cunhada desaparecidos, e a possibilidade de ter um sobrinho apropriado?). Porém, é claro, se algum padre da diocese questiona a ditadura, alguém cai encima e pronto. Para que serve ter o poder absoluto se não for para exercê-lo? E se é um padre emprestado, melhor ainda, porque o Código de Direito Canônico me autoriza a retirá-lo sem problemas... Afinal, quem fez o Código a não ser o mesmo poder? (além da grande quantidade de gente da Opus Dei que ali passou, é claro).
Alguém pode dizer que o Evangelho diz outra coisa, que Jesus procedia de outra maneira, que o anúncio de Jesus, de “outro mundo possível”, convida para que “entre vocês não seja assim”, mas no fim alguém irá julgá-lo e até condená-lo por não atuar conforme o Direito Canônico, mas nunca por atuar de modo contrário ao Evangelho, não é? Novamente, “a soma do poder público” a serviço do poder.
Pode-se falar de covardia (e muita neste caso!), de atitudes contrárias a tudo o que acredita, pode-se enviar mil cartas, os padres da diocese podem pedir reuniões, as freiras da diocese, os camponeses da diocese, mas a um medroso que tem poder nada disso importa. “Faz-se o que eu digo!” Um medroso com poder é perigosíssimo (e pior ainda se, além disso, é tonto). E muito pior ainda, se não existe nenhuma instância de revisão dessas decisões. E o pior, em grau elevado, é quando se afirma que essas decisões tem origem no próprio Deus. Aí, o beco parece sem saída.
Será que chegou a hora de repensar todo o manejo do poder no seio da Igreja? Sem dúvida que sim. Sem dúvida que não se fará. Mesmo que, também, sem dúvida que os Polti, Torrado e tantos de Roma ficarão condenados à insignificância histórica. Ou – quando muito – passarão aos livros como aqueles que souberam renunciar por não saber, não poder ou não querer enfrentar o que eles mesmos e seus “amados predecessores” engendraram.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Reflexões sobre o poder a partir de alguns temas eclesiais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU