17 Fevereiro 2013
Talvez este último gesto, carismático e corajoso, de Bento XVI será uma oportunidade para que toda a Igreja faça um exame de consciência e reflita sobre o qual ela precisa de um papa.
A opinião é da irmã inglesa Gemma Simmonds, diretora do Religious Life Institute e professora de teologia pastoral do Heythrop College, da Universidade de Londres. O artigo foi publicado no sítio Thinking Faith, dos jesuítas britânicos, 12-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Desde o dia em que foi eleito, eu sempre insisti que o Papa Bento XVI era capaz de surpreender a todos nós. Então sinto uma imensa (e bastante presunçosa) satisfação de que ele cumpriu as minhas previsões. Em geral, mudanças radicais de estrutura não são o domínio de liberais do consenso, mas sim de conservadores autoconfiantes (veja-se o exemplo de Margaret Thatcher), e o anúncio da sua renúncia do papado nada mais é do que radical. Com um só golpe, ele desmistificou o ofício do papa e possibilitou que os papas subsequentes possam renunciar quando a idade ou a enfermidade cobrarem os seus direitos, sem temer que a Igreja entre em colapso ou que o céu caia em cima de nós.
Há muito tempo o historiador da Igreja Eamon Duffy, da Universidade de Cambridge, autor do livro Saints and Sinners: a History of the Popes, propõe que um papado forte não é necessariamente algo saudável para a Igreja. Certamente, o papa como superstar é uma invenção muito recente do Papa João Paulo II, exímio "showman" que era. Pessoalmente, tinha um afeto enorme pelo papa da minha infância, João XXIII, mas a figura de um papa celebridade tende a investir todos os pronunciamentos papais com uma solenidade que nem todos eles merecem igualmente e tende a pôr de lado o exercício de consciência e a autoridade que são próprios tanto ao bispo local, como mestre da fé, quanto a todos os batizados.
Inevitavelmente o anúncio do papa da sua renúncia iminente enviou ondas de choque por todo o mundo midiático. Na correria gadarena de conseguir pessoas dos mais variados níveis de sabedoria e de conhecimento factual para explicar por que ele tomou essa decisão e quem será o seu sucessor, eu tenho ouvido umas afirmações deprimentes. "Seria muito bom ter um papa africano!", exclamou um feliz especialista no rádio, como se a raça de alguém pudesse ser, em si mesma, uma qualificação para o posto. Esse tipo de formulismo não nos leva a lugar algum. Certamente pode ser que um histórico de serviço pastoral desafiador possa equipar bem um papa do amanhã, mas a nacionalidade de alguém não é nenhuma garantia disso. Em vários países o caminho a altos ofícios na Igreja não passa pela longa experiência de vida pastoral junto com o povo, mas pelo serviço diplomático ou por um posto sênior em um seminário. Claro, é possível aprender muitas lições úteis nessas circunstâncias, mas também é possível tornar-se completamente clericalizado, ditatorial, patriarcal e distante da experiência de vida do povo comum. Essa não seria uma boa sementeira para um papado feliz e eficaz.
Outro programa de rádio apresentou uma senhora católica entusiasmada que desejava que pudéssemos ter um papa que reinasse por 30 ou 40 anos sem mudança. Há muita coisa a ser dita sobre um papa jovem e vigoroso, como vimos nos sucessos do Papa João Paulo II no seu auge. Aquele nível de energia mental e física pode ser um enorme impulso para a Igreja. Mas a longevidade papal nem sempre é uma bênção pura. É difícil manter o ímpeto de autoridade ao longo de muitas décadas. Uma certa complacência pode entrar sutilmente no aparato geral de governo, especialmente em um aparato tão tortuoso e estratificado como a Cúria papal. Falta a agudeza de um par de olhos novos, e coisas vitais podem ser omitidas sem uma perspectiva nova.
Por causa de um hábito de deferência e de ternura para com um velho homem com um trabalho difícil, verdades difíceis podem não ser confrontadas. Os últimos anos de vida do Papa João Paulo II certamente foram uma lição ao mundo sobre a fidelidade à vocação pessoal, o valor do sofrimento, a autoridade como kénosis e a completa vaidade sem sentido da cultura da celebridade. Mas eu não tenho dúvidas de que eles enfraqueceram o papado e a Igreja. É notável que alguns espinhos, como os escândalos dentro dos Legionários de Cristo, foram firmemente agarrados pelo Papa Bento XVI, tão logo ele tomou posse da cátedra de Pedro. Mas, com relação à mais urgente questão dos abusos sexuais clericais, muitos católicos fiéis, assim como críticos de fora da Igreja, viram tudo como algo insuficiente e tarde demais.
Por mais de 60 anos, a Rainha Elizabeth II conseguiu manter um nível bastante surpreendente de energia e de perspicácia no exercício da monarquia. Mas isso porque o mando do governo, no fim, não acaba nela. O papa não é uma figura constitucional, e indecentes disputas que parecem ter assolado o Vaticano nos últimos meses são uma prova de um vácuo de poder. A única resposta apropriada a essa brecha é garantir que a Sé de Pedro esteja nas mãos de alguém que tenha a energia e a acuidade políticas suficientes para dominar os apparatchiks em disputa.
Para o enorme crédito do Papa Bento XVI, ele teve a sabedoria de ver isso e a humildade e a força de espírito para renunciar. O sucesso da sua visita à Inglaterra e da Jornada Mundial da Juventude na Austrália em 2008 se destacarão na minha memória como prova da sua capacidade de firmeza na arena pública. A Caritas in Veritate permanece como um documento imensamente rico, contendo muita sabedoria.
Mas talvez este último, carismático e corajoso gesto será uma oportunidade para que a toda a Igreja se examine e reflita sobre o que precisamos de um papa. Neste Ano da Fé e do aniversário do Vaticano II, podemos ver que ainda permanece muita coisa inacabada do Concílio. A meu ver, isso é especialmente verdadeiro para o âmbito do governo. A Igreja não é uma cooperativa de trabalhadores, nem uma arena de luta livre onde ganha o mais forte. Ela também não é governada adequadamente através da manipulação labiríntica de uma estrutura de governo que é opaca e não presta contas a ninguém.
Entre os fiéis, a crescente polarização dentro da Igreja é um escândalo cujos efeitos perniciosos estão ganhando força. Fora da Igreja, nossos críticos olham atônitos enquanto insistimos em manter uma linha doutrinal inflexível diante de imperativos pastorais desesperados, enquanto falhamos em enfrentar efetivamente os erros gritantes dentro das nossas próprias estruturas. Isso tem trazido um cinismo maciço por parte daqueles que não veem integridade e fidelidade à mensagem de Cristo, mas apenas hipocrisia e falta de uma fineza pastoral.
Se continuamos pensando que o papa é a única fonte viável de autoridade dentro da Igreja, estaremos condenados a uma gangorra de personalidades conservadoras versus liberais polarizadas, que não farão nada para que nós cresçamos. É bom lembrar que o arcebispo Oscar Romero era considerado uma figura conservadora quando ele assumiu a autoridade sobre a Igreja de El Salvador. Foi um encontro próximo dele com as realidades pastorais que o levaram ao caminho da santidade, do martírio e da autoridade duradoura.
Talvez isso nos diga algo mais útil do que a rotulação política sobre o homem que deve suceder o Papa Bento XVI. Talvez esse seja o momento dado por Deus para que sigamos a sabedoria do Espírito expressada no Concílio, para que desmantelemos a “tradição” muito recente de um papado forte e centralizado, e para que sigamos a linha de Newman, ao consultar os fiéis em assuntos de doutrina, e inclusive, de governo da Igreja.
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A renúncia do papa, oportunidade de exame e reflexão para a Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU