Por: Jonas | 15 Fevereiro 2013
"A matança de Curuguaty custou a vida de 17 pessoas e um golpe de Estado parlamentar no Paraguai. Além disso, está supondo a criminalização de camponeses e organizações e a consolidação do modelo de agronegócio que precisa acumular terras sem pessoas. O atual governo e a justiça atuam em favor de um bando... e este não é o campesino". O parecer é de Irene Ayuso Morillo, em matéria publicada no sítio Otramérica, 11-02-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a matéria.
“O que ocorreu em Curuguaty” é a fórmula estabelecida pela sociedade paraguaia para reivindicar o esclarecimento de uma matança que provocou a mais importante crise política dos últimos 20 anos, no Paraguai, que custou 17 mortos e a queda de um governo legítimo. É o fato com maior número de vítimas na luta pela terra durante o período democrático.
Os fatos aconteceram no dia 15 de junho de 2012, durante um procedimento fiscal e policial numa ocupação de terra no território de Curuguaty, departamento de Canindeyú. Ocorre um conflito entre as forças policiais e os civis ocupantes, resultando em 11 camponeses e 7 agentes da polícia mortos, assim como um número indeterminado de feridos por armas de fogo. Estes acontecimentos provocaram o golpe de Estado parlamentar que resultou na destituição do presidente constitucional Fernando Lugo, no julgamento que durou ao redor de 24 horas. Desde então, o ex-vice-presidente Federico Franco assumiu o cargo e se consumou a ruptura da ordem democrática.
Na sucessão dos fatos ocorridos, desde a matança, não podemos esquecer a criminalização dos sobreviventes, a parcialidade das investigações ou o assassinato no último dia 2 de dezembro, nas mãos dos jagunços, do camponês Vidal Vega, uma testemunha importante no esclarecimento do massacre. Esta é a história da impunidade a serviço do (agro) negócio.
O contexto agrário no Paraguai
A injusta distribuição da terra no Paraguai possui uma longa história. O principal meio de produção do país está concentrado nas mãos de uma oligarquia latifundiária, de maneira que quase 90% da terra estão nas mãos de 2% da população. De fato, segundo o relatório da International Land Coalition, de 2011, o Paraguai é o país com maior concentração da propriedade agrária de toda a América Latina, seguido por Brasil, Uruguai e Panamá.
Esta concentração da terra derivou num constante conflito social que se traduz em ocupações, interdições de estradas e mobilizações, por parte de camponeses sem terras, como formas de luta para obter um pedaço de terra para viver e exercer seus direitos. A resposta por parte do Estado é a perseguição, a criminalização do protesto camponês, a incriminação e a prisão.
Desde 1989 até 2012, já foram assassinados cerca de 120 camponeses e nenhum destes casos foi esclarecido.
Chegamos a Curuguaty
É preciso levar em consideração que a disputa pelo acesso à terra não envolve apenas grandes proprietários e camponeses. O Paraguai é um país historicamente dependente da exportação agropecuária e conta com um dos maiores índices de desigualdade na distribuição da propriedade rural no mundo. A consequência direta deste estado de coisas é um alto grau de conflitos, diante dos quais toma parte a maioria dos atores políticos, sociais, econômicos, religiosos, etc., em função de determinados interesses.
O conflito de Curuguaty surge devido a uma área em disputa entre camponeses, que reivindicavam por meio da via legal, desde 2004, a recuperação de algumas terras destinadas à reforma agrária, de um imóvel de 2.000 hectares (doado pela empresa La Industrial Paraguaya AS – LIPSA) e Blas N. Riquelme, empresário e político colorado que tinha apresentado um pedido de usucapião (um modo de adquirir a propriedade de um bem), alegando que essas terras, ocupadas por sua empresa Campos Morombí, eram suas por usá-las de forma continuada durante 20 anos. No dia 15 de junho se realizou uma ação de despejo do imóvel, no território de Curuguaty, em consequência de uma denúncia, por crime de invasão de imóvel alheio, apresentada pela empresa Campos Morombí.
Praticamente todos os atores sociais pensavam que essas terras eram propriedade de Blas N. Riquelme e que existia uma ordem de despejo sentenciada para proceder com a expulsão dos “invasores”. Esta foi a versão oficial, aquela que os meios de comunicação se encarregaram de divulgar em apoio à Promotoria, que investiga de forma parcial o caso, apesar de que, em seguida, demonstrou-se que a empresa Campos Morombí não tinha legitimidade para denunciar a invasão por carecer de título de propriedade.
A operação de despejo contou com 324 efetivos policiais e deveria negociar a saída de cerca de 60 camponeses. Duas colunas de policiais se aproximaram da propriedade de dois lados, rodeando os camponeses. Os efetivos policiais eram compostos por agentes de grupos antimotins desarmados, portanto, unicamente com escudos e cassetetes, por efetivos da Polícia Nacional com pistola ao cinto e, mais atrás, outros efetivos com armas longas. Na entrada, eles foram recebidos por um grupo de 30 camponeses entre os quais estavam mulheres e crianças. No meio da negociação se desencadeou um tiroteio que terminou numa brutal matança, acabando com a vida de 6 policiais e 11 camponeses e deixando dezenas de pessoas feridas.
A situação dos presos e feridos
O trato foi desigual desde o princípio em relação às vítimas, priorizando no resgate e na atenção médica os policiais feridos, enquanto que no caso dos civis não foram levados imediatamente, mas em alguns casos foram torturados por agentes da Polícia. No que diz respeito aos camponeses mortos, receberam um tratamento indigno e, amontoados como gado num caminhão velho, foram devolvidos aos familiares quando já era impossível ser reconhecidos, desrespeitando-se a dor e as crenças religiosas dos camponeses paraguaios.
Um número significativo de vítimas civis morreu depois que terminou o conflito e o tiroteio mais intenso. Numerosas declarações apontam que vários dos camponeses foram vítimas de execuções extrajudiciais, estando feridos ou após terem se entregado à Polícia.
A ordem da Promotoria foi a de prisão de todas as pessoas que estavam no local ou que estivessem inscritas numa lista encontrada no acampamento, inclusive familiares que se aproximavam do hospital para visitar as vítimas. Sentenciou-se prisão preventiva para todas estas pessoas.
No total foram 63 incriminados, 11 estão presos, entre eles duas mulheres, sendo que 9 pessoas já fizeram greve de fome como forma de protesto e, em consequência disto, neste momento há 5 presos no Presídio Coronel Oviedo e 4 estão em prisão domiciliar. Atualmente, dois dos encarcerados fazem greve de fome, um deles é o líder Rubén Villaba, acusado de ser o principal instigador do massacre, segundo a versão oficial da Promotoria. Na prisão são proibidos de verem seus familiares.
A Promotoria, de sua parte, não abriu nenhum processo para investigar a ação policial e perseguir crimes tipificados como delitos de lesa humanidade, não apenas pela crueldade na execução, mas pela impunidade que acarreta, de acordo com o relatório alternativo da Plataforma de Estudos e Investigação de Conflitos Campesinos (PEICC).
A investigação oficial
“Disseram que era um franco-atirador e não havia mais do que um facão na mão”. Este é um dos depoimentos dos camponeses, que esclarece a cadeia de despropósitos da investigação do caso.
Para começar, os dois promotores, que foram os coordenadores da operação, também fizeram parte da equipe de investigação: Ninfa Aguilar e Diosnel Giménez. No dia 20 de junho, entra na causa o promotor Jalil Rachid, que possui vínculos com a família do empresário e político colorado Blas N. Riquelme, uma das partes envolvidas no conflito. Como se não faltasse mais nada nesta série de irregularidades, hoje se sabe que o promotor Rachid reconhece que não é possível determinar o grau de participação de cada um dos acusados. Mesmo assim, não retrocedem e a Promotoria acusará os camponeses de associação criminosa, invasão de imóvel e homicídio doloso. “O Ministério Público está em condições de demonstrar que estas pessoas iniciaram o fogo”, insiste Rachid, apoiando-se, segundo manifestou, no testemunho de uma pessoa que esteve no imóvel no dia do massacre (há 50 testemunhas que dizem o contrário, mas não importa), de acordo com o que foi apresentado na segunda-feira, 11 de fevereiro, pela agência Nova Paraguai.
A versão oficial, na qual insiste a Promotoria, resume-se basicamente na ideia de que os camponeses emboscaram a Polícia, contando para isso com 6 espingardas de caça, apesar destas declarações não se encaixarem com a versão dos fatos.
A promotoria trabalhou ao contrário da forma como um investigador deveria atuar, uma vez que primeiro chegou a uma conclusão e, em seguida, foi buscando as provas que justificassem essa hipótese. Diante de tais aberrações, a Plataforma de Estudos e Investigação de Conflitos Camponeses (PEICC) apresentou um relatório de investigação alternativo em que denuncia a falta de garantias para que aconteça uma investigação imparcial, sem a manipulação de provas, falsas acusações realizadas, inexistência de provas periciais para sustentar a teoria da promotoria e a criminalização dos camponeses.
Segundo o relatório, que também foi apresentado em conferências na Espanha, organizado pelo coletivo Paraguai Resiste em Madri, durante o conflito, que foi gravado em vídeo, escutam-se rajadas que foram identificadas como de fuzis automáticos M16, armas de guerra de grande potência. Estas armas não estão entre as provas. Presume-se, portanto, que franco-atiradores, posicionados nas laterais, dispararam contra os policiais, já que é difícil pensar que esses camponeses encarariam mais de 300 agentes, sem falar da presença de mulheres e crianças no local.
Esta versão dos fatos é negada sistematicamente, mesmo com fortes evidências, já que teria que se admitir que tudo estava orquestrado para estigmatizar os camponeses sem terra e, assim, expulsar um presidente ligado aos movimentos de base.
As vítimas de apenas um lado: “E a polícia não é julgada pela sua má atuação. Já os camponeses... Como nos perseguem!”
Como disse Mario Ferreiro, candidato presidencial pelo Avança País, “basta ler Rafael Barret para saber de onde vem a história e o futuro: os que morrem são sempre os filhos do povo”.
É denotada a parcialidade da informação produzida pelos meios de comunicação, que reproduzem a versão da Promotoria sem mostrar as vozes dos camponeses, que são apresentados como invasores e os policiais como vítimas. Aos camponeses atribuem os supostos fatos de homicídio doloso, homicídio em grau de tentativa, lesão grave, associação criminosa, coação e coação grave.
Não basta dizer quem são os culpados, é preciso demonstrar qual a participação que cada um teve, quais são as provas. Apesar da descoberta da falta do título de propriedade das terras atribuídas a Blas N. Riquelme, que desataram o conflito, os detidos continuam acusados pela invasão de imóvel alheio, sem investigar sequer a documentação da terra.
Fragiliza-se o direito de defesa dos detidos, o direito a um julgamento justo, com imparcialidade, seguindo com um modelo processual inquisitorial, que viola o código penal paraguaio.
Protestos cidadãos
Segundo Orlando Castillo, advogado defensor dos direitos humanos, 70% da população paraguaia questiona-se a respeito do que ocorreu em Curuguaty. Por isso, uma parte da sociedade paraguaia foi às ruas para reivindicar justiça em diferentes atos, como no dia 20 de Novembro, com o Acampamento em frente à Promotoria Geral, em Protesto pela situação dos presos; no dia 1 de dezembro, com a manifestação em frente à sede da Promotoria, condenando o assassinato de Vidal Vega; no dia 10 de dezembro, com uma marcha a partir da Praça Uruguaia, coincidindo com o Dia Internacional dos Direitos Humanos, e no dia 15 de janeiro, deste ano de 2013, com um ato em frente ao Panteão, pelos 7 meses de impunidade desde o massacre.
Grandes latifundiários e o agronegócio. Um modelo agroexportador
Os poderes do Estado continuam protegendo unicamente os interesses dos grandes latifundiários e agroexportadores. No ano 2000 começa uma nova onda de capitalismo agrário incentivada pela Monsanto, com uma arma fulminante: a soja transgênica, que vai se expandindo sobre terras camponesas e indígenas, atentando diretamente contra os direitos humanos e territoriais.
Entre 1997 e 2006, a cada ano foram expulsas de suas terras cerca de 9.000 famílias camponesas, de forma que são obrigadas a se localizar no cinturão de pobreza das cidades, configurando um Paraguai de deslocados, como afirma Bartolomeu Meliá, antropólogo espanhol.
Com a ascensão de Franco, em junho de 2012, essas associações de produção conseguiram fortalecer seus interesses dentro do Estado, promovendo a legalização de transgênicos para consolidar o modelo agroexportador.
Este país produz mais de 15 milhões de toneladas de grãos para exportação, anualmente, mas já quase não produz alimentos para os cidadãos e se vê obrigado a importar de países vizinhos. O Paraguai já não alimenta a si mesmo. A contradição aponta para um modelo cada vez mais excludente que, segundo Meliá, garante o aniquilamento do país. Em meio a esta exposição de interesses, pretende-se criminalizar as organizações populares para forçar os camponeses a abandonarem o campo, para que fique destinado ao uso exclusivo do agronegócio.
O medo está em que o caso todo termine naquilo que os paraguaios denominam em guarani “oparei” (em nada). Como disse Lilian Soto, candidata presidencial por Kña Pyrenda, “o silêncio será uma dupla morte para as vítimas de Curuguaty”.
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A dupla morte de Curuguaty - Instituto Humanitas Unisinos - IHU