Por: Jonas | 05 Setembro 2012
Gilles Lipovetsky, estrela da análise cultural, que detalhou com enorme precisão o esgotamento, o colapso dos velhos significados que fundaram a modernidade, como as ideias de progresso e vanguarda, bem como a fé na ciência e na democracia, está no México para falar sobre a importância da educação num momento de crise.
Se em seus textos se mostra um implacável artesão do pessimismo, em pessoa é um homem vivaz – e surpreendentemente magro e baixinho – que cumprimenta, faz brincadeiras e se a música presta, ainda dá alguns passos de dança. Contudo, quando é feita a primeira pergunta, fica sério e esmiúça suas ideias sem medo de se alongar, buscando abarcar, o quanto possível, todas as arestas de seu tema. É um prazer ser testemunha de um homem que valoriza a pergunta mais simples, oferecendo respostas tão elaboradas e tão pontuais, por sua vez, que se acaba imaginando como deveriam ter sido aqueles salões parisienses do século XVIII, em que se discutia arte e filosofia, ou aqueles cafés mais próximos, do século XX, em que as ideias existencialistas do compromisso social e responsabilidade individual estavam em voga.
A entrevista é de Daniel Barrón, publicada no sítio Sinembargo, 01-09-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que você considera que são as causas da crise, não apenas econômica, mas também cultural do mundo?
É uma pergunta muito ampla, porque as causas não são da mesma natureza. Neste momento, a crise econômica que a Europa atravessa é uma crise muito complexa, que tem a ver com um modelo que hipertrofiou o consumismo, colocando em crise o sistema financeiro. Isto prolongou uma série de crises cíclicas do capitalismo, que não pode ser concebido sem crises recorrentes. No entanto, vivemos num ambiente de crise muito mais amplo. A mais evidente é a crise ecológica, que apresenta problemas para o futuro de uma sociedade centrada no presente. O capitalismo financeiro se concentra em resultados a curto prazo, e o consumo tem uma lógica de eterno presente. O problema é que isso tem um impacto sobre o equilíbrio do planeta, e sabemos que as coisas não podem continuar deste modo por tempo indefinido.
Por outro lado, paralelamente à crise econômica do presente, há uma crise do futuro, uma crise cultural que tem a ver com o desmoronamento das estruturas antigas das sociedades tradicionais. Não é um assunto novo, desde que Nietzsche anunciou a morte de Deus, estamos constatando que as sociedades modernas estão embarcadas num ambiente sem garantias, onde não é concebível acessar a verdade das coisas, manter uma certeza. São sociedades que já não possuem fundamento teológico e que a partir deste fendimento das certezas, faz com que os indivíduos já não tenham perspectivas de futuro. Porém, desde Nietzsche muitas coisas aconteceram, e essa desorientação da qual falava, agora, cobre aspectos cotidianos da vida. A atual crise cultural não está relacionada apenas com a ausência de Deus, mas com uma sociedade cuja informação e valores estão em permanente colisão, e que resultam numa desorientação geral dos indivíduos que vivem neste contexto.
Por exemplo, o caso da alimentação, isso não tem nada haver com o problema nietzschiano da morte de Deus. O problema é que as pessoas não têm referências para saber o que devem comer e como devem comer, porque vivem em uma sociedade que por um lado prega o prazer de comer, o hedonismo pela boa comida, e por outro lado nos impõe estar magros, ter uma boa aparência e fazer dieta. Então, os indivíduos não sabem como se comportar nesse choque de valores, que acontece a todo tempo, e mais ainda, se nos diz que devemos ter uma boa aparência e fazer um regime saudável, ao mesmo sobem as taxas de obesidade.
A desorientação na realidade, a crise cultural, se assim quer vê-la, é que já não admite uma área livre, não tem limites, engloba tudo. Veja a política, existe uma grande instabilidade entre a oposição clássica de Direita e Esquerda, e um dos grandes desafios do futuro é que os cidadãos já não depositam confiança nos partidos políticos. Por outro lado, a ciência e a tecnologia ao resolverem problemas, criam alguns novos.
Embora a ansiedade e a desorientação sempre tenham existido, na modernidade havia uma série de referências e uma ideia de mundo que traziam certezas, em que se acreditava na democracia, na ciência, no socialismo, e pensava-se que todos esses valores nos dariam um sentido de progresso. O problema é que agora já não acreditamos nessas coisas. Em qual progresso pensar à luz do aquecimento global, e sem saber se poderemos habitar um ou outro ponto do planeta? O socialismo, o comunismo, já não são sistemas credíveis, ninguém quer uma revolução já; e a oposição entre partidos de direita e esquerda já não é uma oposição radical. Estamos diante de uma situação em que as grandes esperanças, que abriram a porta à modernidade, perderam seu prestígio, sua consistência. Vivemos em sociedades que não param de se interrogar, de questionar a si mesmas; e que carecem de alternativa radical, isso é o que eu tenho chamado de hipermodernidade.
Há alguma esperança?
No melhor dos casos, podemos esperar que tenha democracia e um capitalismo menos cruel. Porém, em nossos dias, ninguém pode imaginar algo radicalmente diferente do que estamos vivendo agora. É uma mudança abismal em relação às gerações anteriores, que tinham uma esperança revolucionária. Daí, estas sociedades voltadas à concorrência e ao afã econômico, com tudo o que implica de crescimento, mas também de desgaste.
A educação ainda pode ter algum papel no contexto da hipermodernidade?
Neste contexto, o campo da educação tem uma importância crucial. A sociedade moderna era uma sociedade que economicamente mantinha uma produção de mercadorias extremamente repetitiva. Era o método de produção fordista, que vemos em “Tempos Modernos”, de Charlie Chaplin, em que o operário repete os mesmos gestos ao longo de toda uma jornada de trabalho. Nessa sociedade, a educação tem um valor importante, mas como mero valor humanista, não como força produtiva. Para repetir um mesmo gesto, todo o dia, em uma linha de produção, não é necessário uma formação muito elevada.
No entanto, no contexto da hipermodernidade, as coisas mudam, passamos de sociedades de produção para sociedade de inovação. Precisamos criar, sem cessar, coisas novas e nos adaptar a uma sociedade globalizada, onde já não é viável repetir uma e outra vez o mesmo objeto. Nesse contexto, é importante investir de forma pontual na pesquisa e no desenvolvimento, para poder criar produtos novos e competitivos no mercado, e não se limitar a vender mais caro, como no antigo sistema em que o importante era reduzir os custos de produção e vender caro. Agora é necessário criar novidades. E por isso necessitamos de indivíduos motivados, que sejam capazes de se adaptar a esse contexto de perpétuo movimento. Daí a necessidade de um investimento coletivo e considerável no campo da formação.
A formação não é um gasto é um investimento no futuro. Não haverá sociedades competitivas e suscetíveis de dar oportunidade às seguintes gerações, se não há um investimento na educação. E penso que, provavelmente, não estamos a não ser no começo destes problemas, porque com a globalização cada vez mais são as economias que entrarão na arena de competência.
A China, por exemplo, parece a maquiladora do mundo e faz produtos em série, mas sem muita inovação. Assemelha-se ao Japão dos anos 1950 e 1960; porém, agora o Japão é capaz de grandes inovações, e em vinte, trinta ou quarenta anos, existirão muitos países que estarão no topo da competência. Como assegurar o bem-estar da população e o futuro dos jovens, se os próprios jovens não estão formados para ser ativos no mundo da concorrência? Aí onde a escola tem um papel crucial.
Além dos problemas que você destaca e que podemos encontrar em todo o mundo, o México tem mais uma variável: a violência. A violência aumenta a sensação volátil da hipermodernidade?
Tenho lido, como muita gente, que a violência no México se degenerou de maneira grave nos últimos cinco ou sete anos, talvez um pouco mais; especialmente no norte do país, e que está relacionada com as lutas entre cartéis de narcotraficantes, que colocam o México no topo da violência. Provavelmente, essa violência é alimentada em grande parte pelo mercado da droga. Há uma parte da responsabilidade que é dos países consumidores de droga, porém existe uma parte de responsabilidade que pertence às decisões políticas do Estado, que não pode continuar permitindo que esta situação se agrave.
Uma democracia sadia não pode se desenvolver, se conta com uma espécie de máfia que semeia o terror no interior do país. Não tenho competência para dar conselhos sobre como podar a violência, mas sei que existem meios para fazer isso, porque temos muitos exemplos na história recente, países que conseguiram uma retirada total da violência. Existe o exemplo de Nova York, que era uma cidade extremamente perigosa, e que conseguiram fazer dela uma cidade onde se pode circular sem temer a violência. O mesmo parece estar acontecendo na Colômbia, que segue por um bom caminho.
Não subestimo a dificuldade do problema, mas é necessário dizer: a segurança é um direito fundamental dos cidadãos, não é algo negociável, mas algo vital, crucial. É muito provável que seja preciso fazer reformas no sistema policial, em seus métodos e formas de recrutamento, porque uma democracia como a do México não pode ser desenvolvida num ambiente de violência desse tamanho.
Que ferramentas o indivíduo possui para se defender ou pelo menos se guiar diante da crise social, cultural e econômica que descreve?
Penso que quando se está comprometido na vida com certo número de projetos que são emocionalmente significativos, não se perde a confiança. Podemos lamentar, mas é certo que vivemos numa sociedade em que não podemos esperar tudo dos movimentos coletivos. Antes, a luta de classes e o socialismo nos davam alguma esperança; mas agora sabemos que a luta de classes não resolve os problemas fundamentais. Esse é um dos aspectos desta sociedade individualista, onde a solução dos problemas reside em si mesmo. Temos que formar indivíduos que sejam capazes de se fazer responsáveis por si mesmos. Serem responsáveis de si mesmos, requer capacidades para ter projetos, criar iniciativas, fomentar a criação pessoal.
Quando alguém tem a capacidade de adentrar por esse caminho, então, não perde a esperança. Todos nós conhecemos jovens que querem montar uma banda de rock ou gravar um filme e se veem animados por uma paixão admirável. Por certo, há uma crise econômica, há grandes dificuldades para conquistar projetos; mas apenas a vontade de criar, de fazer, permite que não se acabe imerso numa crise depressiva, onde toda a culpa é colocada nos problemas da globalização.
Falar de projetos não é falar de uma posição elitista, falo de projetos acessíveis para todo mundo, por exemplo, há jovens que se comprometem de maneira muito entusiasta nos movimentos humanitários, ou que criam uma pequena empresa com microcréditos ou meios relativamente elementares. Além disso, devem encontrar novas vias de responsabilidade individual e novas formas de solidariedade. Uma solidariedade inteligente que favoreça todas as pessoas que queiram realizar coisas novas. A novidade deste mundo é que já não temos certezas de que a história esteja se desenvolvendo no sentido correto; mas se podemos oferecer aos jovens as ferramentas que lhes permitam ter uma formação, e não se converterem em meros consumidores, poderão criar uma identidade mais complexa e resistir a hipermodernidade.
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A crise do futuro. Entrevista com Gilles Lipovetsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU