09 Julho 2012
O primeiro grande debate aberto da 18ª edição do Foro de São Paulo teve como tema os governos progressistas e de esquerda. Ao longo das amplas discussões, ficou refletida a preocupação de muitos delegados pela estabilidade desses governos e pelo modo de desenvolvimento que oferecem ou podem oferecer frente à hostilidade dos modelos liberais.
A reportagem é do jornal Página/12, 07-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Do Panamá e da Palestina, passando por Honduras, Venezuela, Uruguai, Porto Rico, até do Brasil ou do México, os participantes mostraram uma profunda preocupação sobre a forma em que o liberalismo pode implementar as suas políticas sem se expôr à decapitação liberal. Um delegado da Palestina afirmou com visível temor que, para onde quer que se vá, "o liberalismo bloqueia as mudança mundiais ou nacionais".
O outro grande tema consistiu em encontrar uma resposta a essa grande incógnita que consiste em saber em que fase da sua história se encontra o modelo liberal, levando em conta todas as crises que se abateram nos últimos anos. Aqueles que o deram por agonizante ou morto reconhecem que não é assim, mas também não encontram no horizonte um modelo para retratar o estado atual.
O jornal Página/12 conversou em Caracas com o analista Juan Carlos Monedero, ex-conselheiro do presidente Hugo Chávez e lúcido pensador das proposições que a esquerda deve se fazer nestes tempos de dúvidas.
Eis a entrevista.
Os participantes desse foro, ao celebrar a existência de governos progressistas, se perguntam o que fazer frente ao modelo ultraliberal que continua de pé apesar das hecatombes que provocou e o afetaram.
A esquerda tem um terrível problema de reflexão. Há problemas para os quais não temos resposta. Por exemplo, quais são as relações entre os movimentos sociais e os governos; como atua um governo que pode ter acesso aos aparatos do Estado sem que isso signifique que ele tenha realmente o poder; como gerencia o Estado herdado com o Estado em construção; qual o novo sujeito de transformação; o que ocorre quando a classe operária continua existindo mas já não se deixa representar. Eu acho que a esquerda pode encontrar respostas a essas perguntas em foros desse tipo. O grande desafio da esquerda é ver como se traduzem as diferentes lutas pela emancipação para encontrar o fio que as una.
Há anos, a esquerda tem uma grande capacidade de análise, uma extrema lucidez em seu diagnóstico. No entanto, inclusive em um dos piores momentos do liberalismo, a esquerda não consegue moldar uma ação de impacto global. Por quê?
Acontece que a esquerda sempre mobilizou com sonhos. Os grandes lemas de mudança social da esquerda que tanto emocionaram a população são um pouco ocos: terra e liberdade, pão e trabalho, socialismo ou morte etc., etc. Essas ideias são elementos amplos, mas nunca se concretizam. Por paradoxal que pareça, hoje em dia, os únicos que são politicamente incorretos são os atores da direita: Berlusconi na Itália, Sarah Palin nos Estados Unidos, Esperanza Aguirre na Espanha etc. São sujeitos capazes de apelar às emoções.
Por isso, quando o capitalismo está em crise a saída mais fácil que ele encontra é a fascista. E isso se deve ao fato de que a esquerda não entende que tem que ser capaz de unir a emoção e a gestão. A esquerda precisa renovar as emoções e concretizar as alternativas. Vivemos num mundo em transição, onde o velho não termina de ir embora, e o novo não termina de chegar. Temos que fazer teoria não com base no que que queremos, mas sim do que não queremos. Isto representa uma vantagem teórica.
Os modelos tradicionais se romperam: a União Soviética afundou, o mundo do trabalho se transformou, os Estados nacionais variaram e as ideologias se esfumaram. Os marcadores de certeza se tornaram líquidos, e, por isso, temos dificuldades para concretizar outras coisas em uma alternativa que se moldará na medida em que se constrói.
Considero importante teorizar sobre uma esquerda flexível que vá construindo com base no que não queremos o grande mosaico do que desejamos. Estamos em uma encruzilhada teórica onde não nos valem os velhos elementos, não nos valem os velhos partidos políticos, não nos valem o modelo de ataque contra o poder, nem muito menos o modelo de gestão humanista de um capitalismo em crise como faz a social-democracia. Como diria Marx, é um momento para voltar à biblioteca e tentar fornecer modelos que orientem.
Mas todas essas buscas que você expõe não afastam o poderio de uma oligarquia disposta a tudo para se manter. O sistema não acabou. Hoje, talvez, o liberalismo é mais frágil ou se reforçou com a crise? O que é uma autêntica estratégia de esquerda para um momento como esse?
Ludovico Silva dizia que se os papagaios fossem marxistas seriam marxistas ortodoxos. Eu diria: nem Marx, nem menos. Marx nos dá muita luz, mas é preciso lê-lo com a luz atual. Não sabemos se a crise do capitalismo será a última. Uma filosofia da história tem o problema de esperar que o futuro esteja escrito, o que não é real. A esquerda não consegue ver a enorme capacidade de adaptação do sistema capitalista.
Sabemos que cada vez que há uma crise ampla o leque de resposta que o sistema tem se estreita. Da última grande crise dos anos 1970, o capitalismo saiu com a exploração da natureza, a exploração dos países do Sul e a exploração das gerações futuras mediante o déficit. Esses três elementos se esgotaram. O que sim sabemos hoje é que as respostas do sistema se estreitam. O sistema global teve que voltar para a origem e exacerbar a exploração dentro de casa.
Sabemos também que, segundo os dados mais otimistas, há 75 vezes mais dinheiro do que riqueza. E essa mentira funciona enquanto o capital financeiro decidir continuar jogando a mentira. Quando disse "paramos, isso é mentira", tudo cai. Isso é o que aconteceu agora. O sistema financeiro se deu conta de que o fosso entre o dinheiro e a riqueza é tão grande que não vai poder ser pago.
Daí, insisto, a importância desse foro e da América Latina. Nunca me canso de repetir que a salvação do planeta ou vem da América Latina ou não vem de lugar algum. A Europa está exausta, a China não quer, os Estados Unidos também não, e a África não pode. A América Latina é o continente que sofreu o problema neoliberal e o superou. É o continente que tem a memória do que é o modelo neoliberal e também tem a memória dos povos originários, que lembram a necessidade de respeitar a Pachamama. Essa conjunção de memória ancestral e de memória de curto prazo do modelo neoliberal situa a América Latina como um lugar central para encontrar as alternativas.
Nos debates do foro, vimos uma grande preocupação das pessoas pelo futuro da governabilidade dos governos progressistas. Há uma mistura de medo e de ansiedade.
O problema é que os governos atuais de mudança têm que gerir o aparato estatal herdado e as pressões atuais. Aí há um conflito porque os movimentos sociais que enalteceram na América Latina os governos de transformação muitas vezes exigiam também uma parte desse modelo passado. Quem se encarrega, então, das novas demandas? E do que se trata? Talvez de reativar um modelo de consumo que as pessoas consideram perdido, ou talvez de reconstruir a realidade.
Os problemas atuais que Evo Morales, Correa, Cristina Fernández de Kirchner têm, respondem a esses problemas mal resolvido entre a gestão do passado, a gestão do presente e a do futuro. Eu acho que seria um erro se apoiar em um movimento social para lhe oferecer somente o que o modelo anterior deixou de lhe prometer. Aí estaria sendo construído o que Margaret Thatcher fez.
Satisfazer as bases da demanda social sem educar com os novos valores da alternativa que queremos construir pode provocar aqui o que aconteceu na Europa: a esquerda construiu a sociedade de classe média, mas depois essa classe média chutaram a escada para que os que vinham atrás não tivessem mais oportunidades. Essa classe média se converteu em novos proprietários sem ideologia. Por isso, é essencial um trabalho de tradução entre os diferentes sujeitos que portam a emancipação.
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''A esquerda deve unir gestão e emoção'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU