29 Junho 2012
Germes de revoltas populares, origem da queda de governos e baluarte do presidente boliviano, Evo Morales, El Alto, a cidade vizinha a La Paz, a 4.100 metros de altitude e que abriga o aeroporto da cidade, se transformou em ameaça permanente para os governantes do país andino. Com uma longa história de lutas sociais indígenas, a combinação de pobreza, infraestruturas precárias e crescimento desordenado constitui um coquetel explosivo que alimenta a rebeldia da cidade com o grito de guerra: "El Alto de pé, nunca de joelhos".
A reportagem é de Francesc Relea, publicada no El País e reproduzida pelo Portal Uol, 28-06-2012.
Em 1991, uma epidemia de cólera abalou o Peru. Houve mais de 300 mil infectados e 2.900 mortos. "Na vizinha Bolívia, as pessoas perguntavam aterrorizadas: por onde a epidemia chegará? A resposta era unânime: por El Alto", lembra o médico Fanor Nava Santiesteban, prefeito da cidade entre 2005 e 2010. "No início dos anos 90 só havia uma pequena clínica com cerca de 30 leitos em uma cidade de meio milhão de habitantes." Hoje supera o milhão.
O antropólogo e jesuíta catalão Xavier Albó, morador de El Alto e há 59 anos na Bolívia, descreve a cidade como uma "cidade dobradiça" na qual convivem emigrantes de todo o altiplano. O crescimento demográfico desse município, declarado independente de La Paz em 1985, disparou na década de 90 a um ritmo de 9% ao ano. O fechamento de numerosas minas em Potosí, Catavi ou Siglo 20 provocou uma emigração maciça. Estimativas moderadas indicam que naqueles anos a cidade recebeu mais de 200 mil pessoas, segundo o ex-prefeito Nava Santiesteban.
Em outubro de 2003 eclodiu o primeiro grande levante popular de El Alto, que terminou em um banho de sangue e provocou a queda do presidente Gonzalo Sánchez de Losada. A revolta começou nos bairros de Senkata e Ventilla, com o bloqueio da distribuição de gasolina. Foi o início da chamada guerra do gás, contra a exportação desse recurso energético através do Chile, o inimigo histórico da Bolívia. A brutal repressão do Exército custou 60 mortos. Os "alteños" tomaram La Paz aos gritos de "Agora sim, guerra civil", e o presidente acabou fugindo do país. "Aquele levante foi produto da raiva contida contra o sistema econômico e social do país", explica Fanor Nava.
Em maio e junho de 2005, a revolta detonou novamente em El Alto e outras cidades, e dessa vez acabou com a demissão do governo de Carlos Mesa. "Vivemos verdadeiras situações de guerra", lembra Tomás Arriola, que chegou a El Alto com 9 anos, vindo de Potosí, onde seus irmãos trabalharam na mina de cobre de Chacarilla até seu fechamento em 1976. "Os mineiros, com sua experiência sindical, organizam todo El Alto por bairros, por ruas, para evitar a passagem dos militares. Bloqueamos toda a cidade." Com dinamite. "Nós mineiros sempre temos dinamite em casa. Serve para tudo, para tirar o minério, para jogos pirotécnicos em festas e para nos defendermos do Exército."
"Para arrancar algo do Estado é preciso estar em El Alto. É a guardiã do processo de mudança", diz o ex-prefeito Santiesteban. Com esses antecedentes, o primeiro presidente indígena da Bolívia, Evo Morales, costuma atuar com rapidez quando explode um protesto em El Alto. Envia um ou vários de seus ministros com uma ordem firme e sucinta: "Solucione o problema seja como for!". Morales arrasou aqui nas últimas eleições em dezembro de 2009, com 87% dos votos, mas sua popularidade começou a diminuir desde janeiro de 2011, por causa da aprovação pelo governo de um aumento generalizado dos combustíveis, conhecido como "gasolinaço". El Alto se levantou mais uma vez e os manifestantes queimaram retratos de Morales e do vice-presidente Álvaro García Linera.
"Evo estava muito forte, mas agora há um grande desencanto", afirma Arriola. "Ele não cumpriu suas promessas. Muitas casas em El Alto não têm gás canalizado porque não foi industrializado. Vai diretamente do poço para a exportação."
O crescimento de El Alto foi vertiginoso e desordenado até se transformar na segunda cidade mais populosa da Bolívia, atrás de Santa Cruz. O comércio informal é a atividade econômica por excelência. A feira dos domingos é um gigantesco mercado ao ar livre, onde se compra e vende de tudo, frequentado por bolivianos de todas as camadas. Nos distritos 2 e 8, na estrada para Oruro, se concentra a indústria, com pequenas fábricas têxteis, de couro, engarrafadoras, laboratórios, etc.
A arrecadação fiscal é de cerca de 120 milhões de bolivianos (13,7 milhões de euros) ao ano para uma população de 1 milhão. La Paz arrecada 600 milhões de bolivianos (69 milhões de euros) e não passa de 840 mil habitantes. "A fraude é generalizada e a tributação se reduz apenas à moradia e aos veículos legais, que são uma minoria", diz o ex-prefeito Santiesteban.
Na penumbra dessa cidade frenética se oculta um submundo de contrabandistas e traficantes. A polícia desmantelou laboratórios de processamento de cocaína em diversos apartamentos, que utilizam a chamada técnica colombiana, em que uma máquina de lavar substitui o pisador de folhas de coca, e a secagem da droga é feita em microondas.
Alguns moradores, falando no anonimato, revelam pistas inconfundíveis de que o dinheiro sujo flui e de que os narcotraficantes operam em El Alto: a presença de veículos de luxo em bairros periféricos, o "boom" da construção, o aumento da venda de gasolina [ingrediente para a elaboração da cocaína] e intensificação da violência criminosa.
Os bonecos pendurados em um poste são uma advertência sinistra a ladrões e criminosos, que se cumpre com o terrível ritual do linchamento. É a justiça comunitária, afirmam algumas vozes supostamente indigenistas. A realidade é que em muitos casos trata-se de brutais ajustes de contas.
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Cidade periférica se transforma em ameaça para governantes da Bolívia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU