Por: Jonas | 13 Junho 2012
Reprova-se a fragilidade do governo de Bento XVI, mas, não é assim. Todos os grandes conflitos deste pontificado nasceram de suas decisões de governo. Fortes e na contracorrente.
A reportagem é de Sandro Magister, publicada no sítio Chiesa, 12-06-2012. A tradução é do Cepat.
É grande a desordem abaixo do céu, numa cúria vaticana atormentada pelos conflitos. Atualmente, a luta mais explosiva acontece no campo financeiro, num combate sem caridade, nem verdade, apesar do título da encíclica de Bento XVI: “Caritas in veritate”.
Este conflito assombrou o mundo pela inaudita brutalidade pela qual, no dia 24 de maio, Ettore Gotti Tedeschi foi expulso do cargo de presidente e como membro do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco vaticano.
Contudo, o aspecto mais surpreendente deste e de outros conflitos que acontecem atualmente na cúria e na Igreja, está no fato de ter em Bento XVI a sua fonte primária. Não por sua fragilidade no governo, como universalmente, e de forma equivocada, se sustenta. Ao contrário, pelos seus claros e fortes atos de governo, com uma audácia consciente das oposições que suscita.
Finanças vaticanas. O “mandato” do Papa
Efetivamente, as verdadeiras razões pelas quais o conselho de superintendência do IOR expulsou Gotti Tedeschi, não são aquelas enumeradas na moção de censura. São outras. Tratam-se das mesmas que em dezembro, de dois anos atrás, haviam provocado o primeiro conflito sério entre o presidente do IOR e o secretário de Estado, Tarcisio Bertone.
Em dezembro de 2010, estavam prontas para serem promulgadas, no Vaticano, as novas normas que abriam a porta de admissão da Santa Sé na “white list” dos Estados europeus, com os mais altos modelos de transparência financeira e, portanto, de luta contra a lavagem de dinheiro.
Para redigir estas normas e, em especial, a lei depois indicada com o número 127, Gotti Tedeschi e o cardeal Attilio Nicora, nesse momento presidente da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica - organismo vaticano que também desenvolve funções bancárias -, haviam convocado dois especialistas italianos, mais autorizados nesta matéria, Marcello Condemi e Francesco De Pasquale.
Imediatamente, inclusive, antes que estas normas fossem promulgadas, e antes que fosse instituída a Autoridade de Informação Financeira (AIF), prevista nas mesmas, dotada de poderes ilimitados de inspeção sobre qualquer movimento de capital executado por qualquer escritório interno ou vinculado com a Santa Sé, desencadeou-se contra ambas as novidades uma duríssima oposição. A oposição era forte, sobretudo, por parte da direção do IOR, apoiada pelo cardeal Bertone.
O diretor geral do IOR, Paolo Cipriani, e os outros componentes da direção se contrapunham, com incansável resistência, ao fim do sigilo sobre algumas das contas depositadas no banco, numeradas, e não investigadas pela magistratura italiana, por suspeita de crime. Segundo eles, o sigilo do IOR era um pilar irrenunciável da autonomia do Estado da Cidade do Vaticano, como Estado soberano. Estavam convictos de que o sigilo e o caráter de banco “offshore”, para a clientela internacional, tornava o IOR mais atrativo do que outros bancos, e que sem isso ele estaria condenado a fechar as portas.
No entanto, no dia 30 de dezembro de 2010, Bento XVI com um Motu Proprio – ou seja, com um ato de governo firmado pessoalmente por ele – promulgou as novas normas, sem mudar uma vírgula da redação que havia provocado tanta oposição. E instituiu a AIF com todos os seus poderes de inspeção, nomeando o cardeal Nicora como o presidente da mesma.
Com este Motu Proprio e com a encíclica “Caritas in veritate”, Bento XVI traçou uma clara linha para uma definitiva mudança de rumo das atividades financeiras vaticanas, para um regime de transparência máxima, internacionalmente controlada e reconhecida.
Porém, a oposição às novas normas e aos poderes da AIF não parou, depois que elas entraram em vigor, com a decisão do Papa. Ao contrário, intensificou-se. No último outono, a secretaria de Estado e o Governatorado da Cidade do Vaticano, de acordo com a direção do IOR, redigiram novamente, desde o início, a lei 127. E em 25 de janeiro de 2012, por decreto, fizeram vigorar a nova versão, que limitava bastante os poderes de inspeção da AIF.
Gotti Tedeschi e o cardeal Nicora constestaram duramente esta reviravolta, antes e depois que ela se realizou. Na opinião deles, isto custaria a não admissão da Santa Sé na “white list”, como já foi prognosticado, no último mês de março, numa inspeção no Vaticano de Moneyval – o grupo do Conselho da Europa que avalia os sistemas antilavagem de vários países – concluindo com um parecer desfavorável sobre a segunda versão da lei 127: oito notas negativas contra somente duas positivas, enquanto na versão anterior recebeu seis notas a favor e quatro contrárias.
E agora estamos diante da destituição de Gotti Tedeschi, assentida pelo conselho do IOR e pelo cardeal Bertone, contrariando o que foi afirmado em público por um membro do próprio conselho, o americano Carl Anderson, presidente dos Cavaleiros de Colombo.
No dia 24 de maio, efetivamente, a reunião do conselho de superintendência do IOR, que votou a moção de censura a Gotti Tedeschi – cujo resumo tornou-se público pelo conselheiro – foi precedida, meia hora antes de seu início, por um encontro dos conselheiros com o cardeal Bertone, estando também presente o diretor do IOR, Cipriani. Sendo que em dias anteriores, tanto Anderson como outro conselheiro, o alemão Ronaldo Hermann Schmitz, escreveram confidencialmente ao cardeal Bertone para anunciar-lhe a intenção de voto em favor da moção de censura a Gotti Tedeschi, “certos de apoiar a justa indicação de Sua Eminência”.
Nestas cartas ao secretário de Estado - que se tornaram públicas, no dia 9 de junho, pelo “Il Fatto Quotidiano” -, Anderson e Schmitz manifestavam preocupação pelo crescente isolamento internacional do IOR, em especial pela interrupção de suas relações com o grande banco americano JP Morgan. E culpavam o “extravagante” Gotti Tedeschi por este motivo. Entretanto, também neste caso, é evidente que não é esta a verdadeira razão do descenso do rating internacional do IOR, mas, pelo contrário, é a anomalia, sua permanente falta de transparência.
Gotti Tedeschi sempre informou ao secretário pessoal de Bento XVI, Georg Gänswein, de suas ações à frente da presidência do IOR e das oposições encontradas. Do Papa, pessoalmente, em mais de uma ocasião recebeu a explícita “incumbência” de proceder em plena transparência. E após sua expulsão do IOR, desejava fazer chegar até o Papa um memorando completo sobre o que tinha acontecido.
Hoje, estes documentos e a correspondência estão ao poder da magistratura italiana, no curso de uma investigação judicial, do dia 5 de junho, em sua casa de Piacenza e em seu escritório em Milão. De imediato, após esta busca, partes dos documentos e do interrogatório começaram a vazar nos meios de comunicação, como acontece sistematicamente na Itália, menosprezando-se o segredo judicial.
Também dos escritórios vaticanos começaram a sair documentos secretos. Além das cartas de Anderson e Schmitz, vieram à luz também uma carta escrita, no último mês de março, ao diretor geral do IOR, Paolo Cipriani, por um psicoterapeuta de sua confiança, Pietro Lasalvia, com um diagnóstico desastroso sobre o estado de saúde psíquica de Gotti Tedeschi, deduzido de uma observação ocasional, do mesmo, durante um encontro com os funcionários do banco vaticano, em razão das felicitações do último Natal.
Portanto, o conflito desencadeado no Vaticano pela operação transparência, não teve a Bento XVI como expectador, mas como protagonista ativo. É o traço de sua linha de trabalho. E é seu o Motu Proprio, do dia 30 de dezembro de 2010, que introduziu as inovações.
Com efeito, a separação dos opositores não é capaz de apagar a orientação impressa pelo Papa que, apesar de tudo, continua viva. E também continua viva para a opinião pública, convencida de que Bento XVI apoia a verdadeira transparência, enquanto muitos outros personagens vaticanos não apoiam, apesar de anunciarem com palavras.
Governo manso, mas firme
Por certo, o financeiro não é a última área sobre a qual Bento XVI interveio com atos de governo, em seus anos de pontificado. Sobre outros, e não menos importantes aspectos, este papa tomou fortes decisões, de caráter normativo, mesmo que consciente das resistências e das divisões. Eis aqui uma breve enumeração:
- Em 2007, Bento XVI, com o Motu Proprio “Summorum pontificum”, liberou o uso do missal romano de rito antigo.
- Em 2009, revogou a excomunhão dos quatro bispos consagrados ilicitamente pelo arcebispo Marcel Lefebvre, e com o Motu Proprio “Ecclesiae unitatem” deu início ao processo de retorno dos lefebvrianos à plena comunhão com a Igreja.
- Ainda em 2009, com a constituição apostólica “Anglicanorum coetibus”, regularizou a passagem para a Igreja católica de comunidades anglicanas inteiras, com seus bispos, sacerdotes e fiéis.
- Em 2010, promulgou novas regras, muito severas, sobre os “delicta graviora” e, em particular, a respeito dos abusos sexuais a menores.
- Também em 2010, promulgou o citado Motu Proprio para a transparência financeira.
- Em 2011, com a instrução “Universe ecclesiae”, promulgou novas normas que integram aquelas sobre a missa em rito antigo.
Todos estes atos de governo, executados por Bento XVI, suscitaram controvérsias, contraposições, conflitos. Apesar disso, atenção: Bento XVI nunca pensou em recompor estas divisões por meio de procedimentos disciplinares, com nomeações ou destituições espetaculares. Sua arte de governar é, desde sempre, acompanhar as decisões normativas – com os Motu Proprio citados – com uma obra de convencimento sobre as razões profundas dessas decisões.
Assim, por exemplo, suas iniciativas para resolver o cisma com os lefebvrianos foram precedidas e explicadas pelo memorável discurso à cúria, em 22 de dezembro de 2005, sobre a interpretação do Concílio Vaticano II como “renovação na continuidade do único sujeito-Igreja”.
Sua liberalização do rito antigo da missa está acompanhada por uma incessante ilustração da riqueza de ambos os ritos, o antigo e o moderno, animados a fecundar-se de forma recíproca, como já acontece aos olhos de todos nas liturgias por ele celebradas.
Sua decisão de instituir para as comunidades anglicanas, que entraram na Igreja Católica, uns ordenariatos com hierarquia e rito próprio, é acompanhada de uma redefinição “sinfônica” do caminho ecumênico com as comunidades cristãs separadas de Roma.
Sua valente ação de orientação, enfrentando o escândalo dos abusos sexuais, está acompanhada por um esforço incansável de regeneração intelectual e moral do clero, culminando na convocação de um ano sacerdotal. Além disso, Bento XVI colocou em penitência Igrejas nacionais, em sua totalidade, como é o caso da irlandesa.
Por último, suas decisões em favor de uma transparência máxima das atividades financeiras da Santa Sé são inseparáveis da leitura teológica deste campo da atuação humana, algo feito na encíclica “Caritas in veritate”.
Quem tem ouvidos para entender, que entenda. É a mansa firmeza deste Papa.
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Um papa de decisões firmes, mesmo diante das tormentas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU