Por: André | 17 Fevereiro 2012
Vazamentos de informações, complôs, lutas pelo poder: as crônicas vaticanas só falam disto. E deste modo não veem que, enquanto isso, acontecem coisas boas. Não más, mas boas. Precisamente aquelas desejadas pelo Papa.
A reportagem é de Sandro Magister e está publicada no sítio Chiesa, 16-02-2012. A tradução é do Cepat.
Hoje, dia 17, às vésperas do quarto consistório de seu pontificado, Bento XVI reunirá em torno de si todos os cardeais para um dia “de reflexão e de oração” sobre um assunto muito nobre: “O anúncio do Evangelho hoje”.
Entre os cardeais estarão também Darío Castrillón Hoyos e Paolo Romeo, isto é, os dois purpurados que nestes últimos dias estiveram no centro de um caso que precisamente nobre não é, originado pelo relatório anônimo de uma conversa entre Romeo e alguns interlocutores chineses no qual estes teriam tido a sensação “de que um atentado contra o Santo Padre estaria sendo tramado”.
Uma vez de posse deste relatório anônimo – cheio de considerações sobre os conflitos de poder no Vaticano e sobre a eleição do futuro Papa – no começo de janeiro o cardeal Castrillón Hoyos o entregou ao secretário de Estado, Tarcisio Bertone. E no dia 10 de fevereiro, a íntegra do texto apareceu nas páginas do Il Fatto Quotidiano.
É difícil pensar que a “reflexão” dos cardeais com o Papa ignore os contragolpes deste ou de outros documentos mais confiáveis, que vazaram de maneira imprevista e foram tornados públicos nos dias passados, e que jogam uma luz sinistra sobre o governo central da Igreja católica.
Na próxima quarta-feira, início da Quaresma no rito romano, Bento XVI imporá, além disso, as cinzas na cabeça de vários cardeais que moram em Roma. E na semana seguinte, com os chefes da cúria, participará de um retiro espiritual pregado pelo cardeal feito vir de longe para isso, do Congo: o arcebispo de Kinshasa, Laurent Monsengwo Pasinya.
Mas, visto o que está acontecendo, parece improvável que estes pios exercícios sejam suficientes para purificar o ar ruim que se respira hoje na cúria romana.
No dia 28 de janeiro passado, uma reunião dos chefes de dicastérios da cúria, cujo objetivo era estudar formas de como elaborar e publicar os documentos vaticanos sem os incidentes da história recente, acabou em bons propósitos, inclusive o de defender melhor o segredo dos arquivos.
No entanto, apenas alguns dias depois o vazamento de informações não apenas recomeçou, mas aumentou de forma considerável e com efeitos ainda piores. Nada faz pressagiar que a hemorragia tenha acabado.
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Comentando estes vazamentos de documentos e a onda de descrédito que estes causam ao Vaticano e à Igreja, o número um dos vaticanistas americanos, John L. Allen, fez duas considerações.
A primeira, após o caso de dom Carlo Maria Viganò, o núncio dos Estados Unidos, de quem se tornaram públicas duas cartas, ao Papa e ao cardeal Bertone, cheias de acusações contra vários dirigentes da cúria; acusações agora declaradas infundadas mediante um comunicado do governadorado da Cidade do Vaticano.
Escreve Allen: “Alguns dos cardeais já têm grandes problemas em sua própria casa, e as intrigas atuais do Vaticano não facilitam seu trabalho. Timothy Dolan, de Nova York, por exemplo, está atualmente ocupado com uma guerra com o governo Obama sobre regras relativas à saúde [que obrigariam as associações católicas a pagar por seus funcionários métodos contraceptivos e abortivos]. Seria estupendo que um competente e bem relacionado embaixador do Papa, que soubesse mover-se com destreza nestas tensões, estivesse em cena em Washington, mas obviamente não é isto o que está acontecendo”.
A segunda consideração refere-se à atenção que a imprensa vem dando de forma quase exclusiva às intrigas, em vez de fazê-lo sobre os acontecimentos concomitantes de maior relevo da Igreja:
“A percepção das intrigas ensombreceu o que deviam ser boas notícias para o Vaticano. Na semana passada, o Vaticano patrocinou um Simpósio sobre abusos sexuais, colocando em prática uma resposta global e preventiva, comprometendo-se também a realizar reformas. Além disso, exatamente agora, os dirigentes vaticanos estão removendo céus e terra para levar as suas instituições aos níveis de padrão internacional em questão de transparência financeira. Provavelmente, em nenhum outro momento da sua história o Vaticano esteve tão comprometido com a colaboração com os corpos reguladores leigos externos. Em um circuito normal de notícias, os serviços dedicados a estes fatos poderiam calibrar novamente a imagem do Vaticano e da Igreja em chave positiva. Mas, no momento, rivalizam entre si e, na maioria dos casos, perdem, considerando-se os escândalos”.
Às duas “boas notícias” às quais se refere Allen, poderíamos acrescentar uma terceira: o eventou internacional sobre “Jesus, nosso contemporâneo”, promovido pela Conferência Episcopal Italiana e idealizado principalmente pelo cardeal Camillo Ruini.
Deste evento, que aconteceu em Roma de 9 a 11 de fevereiro, e que teve entre seus momentos fortes uma memorável conferência do teólogo e bispo anglicano Nicholas Thomas Wright sobre a ressurreição de Jesus, participaram 1.800 pessoas muito atentas e mais outras milhares que o acompanharam pela internet.
Mas justamente nos mesmos dias surgiu o caso do suposto “complô contra o Papa”, que anulou o impacto do Congresso sobre os meios de comunicação.
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O Simpósio Internacional “Rumo à cura e à renovação”, que foi realizado na Pontifícia Universidade Gregoriana e que contou com a participação de altas autoridades do Vaticano e representantes de 110 Conferências Episcopais e de mais de 30 ordens religiosas, foi a primeira grande iniciativa convocada no campo católico para enfrentar, em escala global e coordenada, o fenômeno dos abusos sexuais contra menores, dando prioridade absoluta à cura das vítimas.
Foi também a primeira iniciativa de grande alcance promovida pela Igreja católica, não como reação sucessiva e subalterna ao aumento das denúncias e do escândalo, mas como ação preventiva. Concomitantemente com este Simpósio foi inaugurado em Munique um centro de formação internacional para a luta contra os abusos sexuais.
Tudo isto acontece impulsionado por Bento XVI, desde o princípio de seu pontificado. E faz com que a Igreja católica – não obstante suas culpas reconhecidas e omissões passadas e presentes – se considere, agora, como a instituição mais ativa no mundo na luta contra o crime dos abusos sexuais contra menores, na “cura” das feridas e na “renovação” dos métodos de ação; muito mais ativa e coerente que tantos organismos internacionais, governos, tribunais de justiça e tribunais midiáticos.
Além disso – notícia também esta que passou a um segundo plano –, no dia 10 de fevereiro, dia seguinte ao final do Simpósio da Gregoriana, nos Estados Unidos se concluiu, arquivando-a, a ação legal denominada “John Doe 16 v. Holy See”, cujo objetivo era incriminar também a Santa Sé e o próprio Papa Bento XVI pelos abusos sexuais contra menores por parte de um sacerdote de Wisconsin.
O principal promotor da ação legal, o advogado Jeff Anderson, desistiu da ação para evitar o temido pronunciamento contrário do tribunal do distrito de Wisconsin, o que prejudicaria o êxito da mesma ação legal contra a Santa Sé e o Papa em outros tribunais.
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Quanto à segunda “boa notícia” referida por Allen e oculta pelas intrigas, é preciso dizer que há, nos escritórios da secretaria de Estado, na Terceira Galeria do Palácio Apostólico, um registro no qual, desde o dia 26 de janeiro, se inclui um decreto de urgência que introduz modificações na Lei 127 do Estado da Cidade do Vaticano.
A Lei 127, promulgada em 30 de dezembro de 2010 e em vigor desde 1º de abril de 2011, diz respeito à prevenção e a lavagem de dinheiro de atividades criminosas e de financiamento do terrorismo.
Esta é, na prática, a principal, embora não a única, lei que consentira à Santa Sé ser admitida na “white list” dos Estados que têm os padrões mais altos no mundo no que se refere à transparência financeira.
Este caminho de limpeza e reordenamento das finanças do Vaticano também foi firmemente desejado por Bento XVI. As indiscrições filtradas nestas semanas sobre modalidades e episódios de incorreção financeira são, exatamente, contra o que luta a ação reformadora em curso.
As modificações da Lei 127, inclusive no decreto de urgência de 25 de janeiro, são também o efeito de uma inspeção de cinco dias levada a cabo no Vaticano, em novembro passado, por um sólido grupo de inspetores do Moneyval, o organismo do Conselho da Europa que se ocupa em avaliar os procedimentos anti-lavagem vigentes em cada país.
As modificações ainda não são públicas. Elas o serão quando o decreto de urgência que as contém for transformado em lei, 90 dias após a data de publicação do mesmo, após exame da Comissão Pontifícia para o Estado da Cidade do Vaticano. Esta comissão tem como presidente o novo governador do Estado, o arcebispo e próximo cardeal Giuseppe Bertello, e entre seus membros está o cardeal Attilio Nicora, presidente da Autoridade de Informação Financeira (AIF), também instituída esta no dia 30 de dezembro de 2010, com um motu proprio de Bento XVI.
A AIF – novidade sem precedentes – tem poder de controle sobre cada operação financeira dos dicastérios da cúria romana e de todos os organismos e entes dependentes da Santa Sé, inclusive o Instituto para as Obras de Religião (IOR), o governadorado e a própria secretaria de Estado.
Já foi dito, por exemplo, que entre as modificações introduzidas na Lei 127, há sanções mais elevadas para os transgressores. A AIF pode castigar cada incorreção financeira individual de um organismo do Vaticano com multas que podem chegar a dois milhões de euros.
Algumas das modificações da Lei 127 foram antecipadas pelo vaticanista Andrea Gagliarducci em artigo publicado no sítio Korazym, no dia 01 de fevereiro.
Mas seu sentido geral foi enunciado pelo ministro de Assuntos Exteriores do Vaticano, o arcebispo Dominique Mamberti, no L’Osservatore Romano de 27 de janeiro.
Outras modificações que tendem a tornar mais rigorosas e menos genéricas as leis do Vaticano foram antecipadas nas réplicas do Vaticano às acusações lançadas dias atrás pelos meios de comunicação, com base em documentos em seu poder.
Por exemplo, em uma destas réplicas, a de 9 de fevereiro, lê-se que “o artigo 28, parágrafo 1, letra b), do novo texto da Lei 127, modificado por Decreto do Presidente do Governadorado no dia 26 de janeiro de 2012, estabelece que os sujeitos submetidos às obrigações da mesma Lei (entre os quais o IOR) devem efetuar ‘as obrigações de adequada verificação... quando realizam transações ocasionais cuja soma seja igual ou superior a 15.000 euros, independentemente do fato de que se efetuem em uma única transação ou com mais transações vinculadas’”.
Mesmo no caso de o IOR operar em bancos estrangeiros – sobretudo alemães, como foi acusado de ter feito “para evitar os controles da Itália” – destacou-se que “a autoridade judicial vaticana tem também o poder de investigá-las, dentro do marco de cooperação internacional com juízes de outros Estados, inclusive a Itália”.
Em resumo, Allen tem razão quando escreve que na questão financeira “provavelmente em nenhum outro momento da sua história o Vaticano esteve tão comprometido com a colaboração com os corpos reguladores leigos externos”.
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As boas notícias mantidas na sombra pelas intrigas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU