20 Janeiro 2012
Gianfranco Maris, conhecido advogado penal italiano, senador do Partido Comunista Italiano de 1963 a 1972, membro do Conselho Superior da Magistratura italiano de 1972 a 1976, atual presidente da Aned (Associação Nacional dos Ex-Deportados Políticos), tem hoje 91 anos.
Militante das fileiras do Partido Comunista clandestino e da Resistência de Milão, tinha 23 anos quando, de Fossoli – onde a República Social Italiana tinha criado um campo de prisioneiros –, foi transferido para a Áustria, para o campo de concentração de Mauthausen.
Agora, ele confiou as suas memórias desse período a um livro escrito com o correspondente e colunista do jornal La Repubblica Michele Brambilla, Per ogni pidocchio cinque bastonate, publicado pela Mondadori (151 páginas). Antecipamos um trecho.
O depoimento foi publicado no jornal La Stampa, 18-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
É a noite de 7 de agosto de 1944. O trem para diante de um pavilhão iluminado com uma luz amarela. É a estação de Mauthausen. [...] Assim tomamos conhecimento com uma nova figura: o Kapos. São eles, escravos das SS e ferozes guardiões do campo, que nos circundam brutalmente e nos ordenam amontoar as nossas roupas no chão. Eles nos dizem que devemos nos lavar e que devem nos cortar os cabelos: depois, voltaremos a tomar posse dos nossos indumentários, que agora temos que recolher em ordem e colocar aos nossos pés, permanecendo todos completamente nus. [...]
Voltamos ao pátio e não encontramos mais nada das nossas roupas, que nos haviam ordenado para dobrar e deixar no chão. Os Kapos nos enquadram com violência, o caminho agora é célere, não há mais ninguém que possa retardar a marcha. Rapidamente, com fúria, levam-nos através do campo, através de uma parede. Dizem-nos que estamos a chegar ao quartel de quarentena, onde aprendemos a ser presos. Velozmente, com furor, nos levam para o outro lado do campo, do outro lado de um muro. É-nos dito que estamos prestes a chegar ao pavilhão de quarentena, onde aprenderemos a ser prisioneiros.
Entendemos bem rapidamente que os nossos amigos não passaram pela seleção dos idôneos ao trabalho e foram encaminhados à eliminação. Todos nós outros fomos levados para a repartição de quarentena de Mauthausen. Estamos nus, em um pavilhão completamente vazio, sem beliches. À noite, dormimos deitando sobre o chão, um ao lado do outro, como sardinhas em lata.
Não temos mais nada, não nos restou nem a escova de dentes e certamente não temos nem sequer uma colher. Por que me vem à mente a colher? No fim da manhã, nos é distribuída uma sopa em uma tigela para cada dois deportados: por isso, a sopa, um caldo de beterraba de forragem, deve ser bebida em goles alternados. Lembro como se fosse hoje que, nesse momento, apenas uma coisa dominava sobre tudo: o barulho. O barulho daqueles goles, que pareciam a música de muitos porcos jogados ao mesmo tempo no cocho.
Por que nos tratam assim? Não há no campo tigelas suficientes para dar a cada um a parte que lhe compete dessa lavagem? E não há colheres das quais os prisioneiros possam usufruir, apesar da sua desprezível condição de inimigos do Terceiro Reich?
Terminada a "refeição", a cada um de nós era distribuído um boné. Assim, não estamos mais todos nus: em suma, estamos sim nus, mas com um boné. Logo nos chamam para fora do pavilhão, nos enquadram. Chega um kapo e começa a nos transmitir a sua nova ordem: Mützen ab! Mützen auf! (Tirem o boné! Ponham o boné!). Continua assim por horas. Mützen ab! Mützen auf!. E nós, por horas, nus em um pátio, tirando e colocando o boné. Depois, entramos no pavilhão e passamos a noite deitados um ao lado do outro no chão, nus, sem nenhuma coberta ou abrigo. Na manhã seguinte, novamente nus no pátio e outras horas de Mützen ab! Mützen auf!. Depois, o caldo em uma única tigela para dois e a "música" do cocho. No dia seguinte, mais uma vez, o absurdo ritual se repete.
E assim por dias e dias. Novamente, me encontro pensando: por quê? Nenhum de nós conhecia, naquele tempo, as teorias de Pavlov e dos reflexos condicionados induzidos no animal para reduzi-lo à obediência absoluta. Obedecer, apenas obedecer, imediatamente obedecer ao som de um comando. Como cães amestrados. É por isso que, por semanas, éramos instruídos dessa forma, até que decidirem nos transferir para um outro bloco de quarentena, o de Gusen: primeiro campo contíguo a Mauthausen.
O bloco de quarentena do campo de Mauthausen estava encerrado entre altos muros. Mas, do outro lado dos muros, havia um outro pavilhão no qual estavam trancados em isolamento os oficiais soviéticos prisioneiros de guerra soviéticos que haviam se recusado – com base nas Convenções de Genebra – a trabalhar na indústria bélica do Reich e que, por causa dessa recusa, já haviam sido condenados pela Gestapo ao "tratamento kappa". Ou seja, Kugel, bala.
Esses homens, portanto, podiam ser mortos a qualquer momento, com uma bala na nuca. Mas eles eram deixado ali, no pavilhão, com a intenção de fazê-los morrer de outro modo, mais lento e mais atroz: de fome. Não eram deixados completamente sem comida: eram alimentados a gotas, para tornar a agonia ainda mais dilacerante. Era a "sabedoria" nazista para lidar com o inimigo. Todos os dias, morriam 20 ou 30 deles.
Ao amanhecer, ao despertar, tinham que sair do pavilhão e, em grupos de 100, descalços, coberto de chagas, tinham que deitar no chão à ordem Nieder (para baixo). Assim era feito o chamado.
Depois, em fila indiana, tinham que rastejar de quatro. Então, tinham que se levantar e ficar firmes de pé no pátio, na frente do pavilhão, no calor do verão ou no frio do inverno. Quando fazia frio, esses pobres homens se amontoavam entre si, formando, como vespas, uma bola, um forno. Quem estava dentro da "bola" se reaquecia, enquanto o resto da "bola", com um movimento contínuo, deslocava aqueles que estavam no centro para o lado de fora, e vice-versa.
Em janeiro de 1945, chegou um novo grupo de oficiais soviéticos. Tinham tentado fugir e haviam sido condenados ao tratamento Kugel.
Os componentes desse grupo entenderam perfeitamente ao que iam ao encontro e decidiram fazer algo muito corajoso para quem está trancado em um inferno similar: escolher eles mesmos como morrer. Não deixar que os nazistas fossem os donos do seu destino. Decidiram, então, tentar a fuga, sabendo muito bem que mesmo apenas a tentativa de fugir os levaria a uma morte imediata.
Eles cavaram com as mãos o terreno em torno do pavilhão, conseguiram pedras, pegaram dois extintores e, uma noite, em 500, tentaram fugir. Fizeram cair a corrente de alta tensão que percorria o arame farpado em cima do muro externo, jogando cobertores molhados em cima dele. Agrediram com mesas os militares de guarda da primeira torre. E se puseram a correr. Deixaram no terreno nevado um rastro ininterrupto de morte e de sangue.
Poucos conseguiram se afastar do campo. E para esses poucos logo se desencadeou uma caçada de homens da qual participaram todos os soldados das SS e todos os civis da região: alguns eram voluntários, outros forçados a colaborar. A caçada aos homens terminou depois de muitos dias, com a aniquilação de quase todos os 500 oficiais soviéticos que haviam tentado essa sua última aventura assustadora. Assustadora, mas talvez não louca como poderia parecer. Onze desses oficiais conseguiram sobreviver. Livres. Famílias de agricultores austríacos, como se soube depois, os haviam hospedado e os mantiveram escondidos. E isso basta para continuar acreditando no homem.
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Mauthausen: a ''música dos porcos'' e a fé no ser humano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU