09 Dezembro 2011
Ainda não está claro qual será o caminho da Igreja irlandesa daqui em diante. Há apelos para que se reúna uma assembleia de toda a Igreja e algo semelhante poderia ser realizado no ano que vem. Sugiro que o papa visite a Irlanda e se ajoelhe em silêncio, expressando o arrependimento da Igreja universal.
A análise é do jesuíta Brian Lennon, em artigo publicado na revista Popoli, publicação dos jesuítas italianos, 01-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Andrew Madden sofreu abusos do padre Ivan Payne quando tinha 11 anos e, em 1981, denunciou o fato à arquidiocese de Dublin. Hoje, ele ainda sente raiva, porque o padre Payne foi deixado em uma posição em que pôde abusar de pelo menos outros sete meninos. Essa experiência causou em Andrew uma longa luta contra demônios interiores que o levaram ao alcoolismo, e foram necessários muitos anos para que ele se recuperasse. Agora, ele deixou a Igreja.
Andrew é uma das muitas pessoas cujos sofrimentos foram expostos detalhadamente nos Relatórios Ryan e Murphy de 2009. Estes documentos também mostraram a resposta execrável de muitas autoridades eclesiásticas, muitas vezes feitas de proteção aos culpados, transferências de uma sede a outra, onde podiam cometer outros abusos, negação ou minimização dos fatos, antepondo a intenção de preservar o bom nome da Igreja à de proteger as crianças.
A reação pública a esses dois relatórios foi de profunda indignação, não só da mídia, mas também entre muitos católicos praticantes que ficaram chocados com os relatos dos abusos e, ainda mais, com o comportamento das autoridades da Igreja.
Sua raiva aumentou com a publicação, em julho de 2011, do Relatório Cloyne, que mostrou como o bispo da diocese de Cloyne se omitiu a denunciar às autoridades os suspeitos autores de abusos. O primeiro-ministro Enda Kenny, católico praticante, descreveu a suposta recusa do Vaticano a colaborar com as investigações sobre o caso Cloyne como "absolutamente vergonhosa" e falou do "narcisismo que domina hoje cultura do Vaticano". O ministro das Relações Exteriores, Eamon Gilmore, convocou oficialmente o núncio apostólico e enfatizou as conclusões do relatório que mostrou que – em suas palavras –, "descrevendo o documento-quadro adotado (em 1996) pela Conferência Episcopal como mero "documento de estudo’, as autoridades vaticanas minaram os esforços da Igreja irlandesa para enfrentar o problema dos abusos sexuais de menores por parte de membros do clero [...] Francamente, é inaceitável para o governo irlandês que o Vaticano tenha intervindo para fazer com que os sacerdotes acreditassem em consciência que poderiam evitar suas próprias responsabilidades perante a lei irlandesa".
Na realidade, o governo fez confusão com relação à cronologia: foi em 1998 que o cardeal Castrillón Hoyos, à frente da Congregação para o Clero, disse aos bispos irlandeses que a política do Vaticano era de proteger os sacerdotes quando fossem acusados. Segundo a afirmação do governo, isso é o que aconteceu nos últimos três anos. Embora seja criticável uma tal imprecisão em uma importante declaração do governo, as palavras do ministro refletem provavelmente a indignação geral suscitada pelas revelações do Relatório Cloyne.
No dia 4 de novembro, o governo decidiu fechar a sua embaixada no Vaticano. Esse é um sintoma da profunda mudança nas relações entre Irlanda e Santa Sé. No passado, a Igreja tinha grande influência na sociedade irlandesa. Bispos e sacerdotes eram tratados com respeito e podiam influenciar a legislação em matéria de moral. Depois da publicação dos relatórios sobre os abusos, um clergyman é mal visto por muitos e quem o veste é às vezes insultado na rua.
Um problema que surgiu com esse crise é que muitos sacerdotes e religiosos se sentem culpados por aquilo que aconteceu, mesmo sendo inocentes por não terem abusado de ninguém e jamais terem ocupado posições de autoridade. Isso levanta a questão das relações colegiais: em que medida os membros da Igreja, que são pessoalmente inocentes, deveriam assumir uma parcela de responsabilidade por aquilo que foi feito pela organização a que pertencem? É uma questão normal no direito civil e em situações de conflito: por exemplo, deve-se ou não pedir que os jovens alemães nascidos depois de 1945 paguem impostos para contribuir com o ressarcimento do povo de Israel por parte do Estado alemão devido ao Holocausto, mesmo que, na época da Segunda Guerra Mundial, eles ainda não estivessem nascidos?
Uma segunda questão levantada pela crise refere-se às estruturas com as quais a Igreja hoje é governada. O bispo de Cloyne pôde ignorar o documento-quadro de 1996 porque era um documento da Conferência Episcopal Irlandesa. Os bispos individuais não devem responder às conferências episcopais, nem são responsáveis perante a qualquer leigo. Eles prestam conta apenas ao papa. Assim, a Conferência Episcopal não pôde impor o documento-quadro aos bispos individuais, e essa é uma fraqueza no governo da Igreja.
No entanto, deve-se lembrar também que, desde 1996, a situação melhorou: foi o responsável eclesiástico pela proteção da infância, que atua em nome da Conferência Episcopal Irlandesa, que alertou as autoridades civis para que lidassem com a proteção das crianças em Cloyne. Assim, mesmo que não tivesse autoridade direta segundo o direito eclesiástico, ele ainda foi capaz de influenciar positivamente. É um raio de luz em uma situação ruim.
Uma terceira questão toca as responsabilidades do Vaticano. Em sua carta aos católicos da Irlanda, o Papa Bento XVI levantou muitas críticas válidas à Igreja irlandesa, mas não reconheceu nenhuma responsabilidade do Vaticano. As razões financeiras são óbvias; as morais, não. O Vaticano nomeou todos os bispos da Irlanda, e cada um deles responde diretamente ao papa. É necessário que a Santa Sé aceite um adequado nível de responsabilidade.
Uma quarta questão é a proteção das crianças em nível mundial. A crise irlandesa foi precedida por eventos semelhantes no Canadá e nos Estados Unidos, e seguida por novas crises provocadas pelos abusos em outras partes do mundo. A Cúria Romana é o único órgão eclesiástico capaz de influenciar o direito e as práticas da Igreja em todo o mundo. É importante que ela se esforce para garantir a abertura sobre o passado e implemente procedimentos adequados de proteção nos países em que isso ainda não foi feito, sobretudo nos lugares em que há grande deferência perante o clero. Sem essas ações, continua sendo forte a probabilidade de que crianças continuem sofrendo abusos, e isso é exatamente o oposto da tarefa da Igreja, que é de ser a imagem da presença do Deus do amor no nosso mundo.
Ainda não está claro qual será o caminho da Igreja irlandesa daqui em diante. Há apelos para que se reúna uma assembleia de toda a Igreja e algo semelhante poderia ser realizado no ano que vem. Em um livro meu, que será publicado em breve, sugiro que o papa visite a Irlanda e se ajoelhe em silêncio, expressando o arrependimento da Igreja universal.
Defendo também que houve uma relação entre as estruturas patriarcais, o clericalismo, a deferência e a falta de responsabilidade que temos hoje na Igreja e uma resposta equivocada da Igreja à crise. Enquanto não trabalharmos seriamente para mudar essas estruturas, não podemos dizer que realmente começamos a nos arrepender. Talvez, uma ação imediata poderia ser a de modificar o Cânone 129 do Direito Canônico, que exclui os leigos do poder de governo: fazendo isso, pelo menos se reduziria o clericalismo.
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O que está acontecendo na Igreja irlandesa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU