17 Outubro 2011
Modificar a liturgia do Concílio (e, neste caso, latinizar a língua) pode ser lido como um apelo subentendido a colocar novamente em discussão todo o restante do Vaticano II.
A opinião é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo no departamento de teologia da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado na revista dos jesuítas italianos, Popoli, de outubro de 2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No primeiro domingo do Advento (27 de novembro), a Igreja Católica dos Estados Unidos – assim como as da Grã-Bretanha, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia – começam a usar a nova tradução inglesa do Missal Romano. A mudança ocorre depois de um longo processo em que não faltaram tensões entre Roma e a Igreja dos EUA, nem divisões dentro dela. Portanto, é útil reconstruir brevemente as etapas de uma história que, embora extremamente importante para o mundo católico, teve pouco eco na Itália.
Depois da aprovação, durante o Concílio Vaticano II, da Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium (1963), ocorrida também graças ao apoio decisivo dos bispos norte-americanos, em 1973, foi aprovada por Roma e começou a ser usada nas igrejas norte-americanas a primeira tradução do Missal do latim para o inglês, realizada pela Icel (Comissão Internacional sobre o Inglês na Liturgia), comissão fundada justamente durante o Concílio pelas Conferências Episcopais anglófonas.
Entre 1994 e 1998, a Congregação para o Culto Divino começou a manifestar objeções às novas traduções em língua inglesa dos textos litúrgicos feitas segundo o princípio da "equivalência dinâmica". Em 1999, o cardeal Medina excluiu a "equivalência dinâmica" como método aceitável. O passo seguinte foi a instrução vaticana Liturgiam authenticam de 2001, ainda em vigor e válida para todas as Igrejas, segundo a qual as novas traduções devem seguir o princípio da "equivalência formal": cada palavra latina deve ter um correspondente na tradução, e a sintaxe, a pontuação e o vocabulário da língua latina devem ser reproduzidos fielmente.
Em 2002, começou a marginalização da Icel como lugar de elaboração dos textos litúrgicos em língua inglesa, em favor de um novo órgão de criação vaticana, Vox Clara, que depende da Congregação para o Culto Divino. A Icel foi reorganizada de modo a não responder mais aos bispos, mas sim ao Vaticano.
Começou nesse período o trabalho para uma nova tradução inglesa do Missal. Em 2008, a nova tradução preparada pela Icel foi apresentada e imediatamente inundada com críticas por parte de muitos teólogos e liturgistas anglófonos quanto à qualidade da tradução. O texto ainda foi enviado a Roma para a aprovação. Vox Clara introduziu nesse texto cerca de 10 mil modificações. O Vaticano aprovou e enviou o novo Missal aos bispos para que fosse introduzido no início do ano litúrgico 2011-2012.
Nos últimos dois anos, o debate se acendeu em todos os países anglófonos tocados pela nova tradução do Missal. Nos EUA, ele foi particularmente intenso, não só pela consistência numérica da Igreja Católica (67 milhões de fiéis, cerca de 23% dos cidadãos adultos), mas também pelo papel decisivo desempenhado, entre a Icel e Vox Clara, pelo cardeal Francis George, arcebispo de Chicago e até o fim de 2010 presidente da Conferência Episcopal dos EUA (USCCB), que foi palco de inúmeras e flagrantes irregularidades processuais destinadas a aprovar o texto "romano" sem a possibilidade de intervenção por parte dos bispos.
Da assembleia da USCCB de novembro de 2009, boa parte dos liturgistas norte-americanos tentou colocar o novo Missal novamente em discussão. Até o início de 2011, os bispos e teólogos norte-americanos ainda estavam divididos sobre a sua aceitabilidade. Nos últimos meses, no entanto, os críticos renunciaram publicamente a levar adiante a sua "resistência" em nome da unidade da Igreja norte-americana. Liturgistas conhecidos que haviam contestado a qualidade linguística e teológica do novo Missal se colocaram à disposição dos bispos, a fim de limitar os danos durante o delicado processo de recepção. Mesmo entre o laicato norte-americano as críticas continuaram (veja-se, por exemplo, o site www.whatifwejustsaidwait.org) até início de 2011, quando mesmo os mais fervorosos opositores declararam a sua disponibilidade para trabalhar por uma melhor recepção do novo Missal, para não dilacerar a comunhão eclesial.
Mas quais são as principais críticas dirigidas ao novo Missal? Há, sobretudo, um problema de clareza do texto: a nova tradução, que teve que manter a estrutura da frase em latim, é rica em expressões complexas não facilmente compreensíveis por um anglófono médio. Depois, há um problema de comprimento das frases: por exemplo, o comprimento das frases das orações eucarísticas do novo Missal (aumentadas uma média em 78% com relação ao anterior) faz com que esses textos se tornem totalmente alheios ao ritmo da língua inglesa. Por fim, há relevantes mudanças de fórmulas que já se tornaram parte da língua litúrgica depois do Concílio.
Um exemplo: quando o sacerdote diz: "O Senhor esteja convosco", agora os anglófonos, assim como nós, italianos, também vão responder "And with your spirit" ("E com o teu espírito"), fórmula certamente mais próxima do latim, mas muito diferente da expressão coloquial "And also with you" ("E contigo também") [em português, a resposta é "Ele está no meio de nós"], à qual estavam acostumados.
E ainda: durante a consagração do vinho, em vez de "cup", estará o arcaico "chalice". E a expressão "For you and for all" ("Por vós e por todos") será substituída por "For you and for many" ("Por vós e por muitos"): neste último caso, dentre outras coisas, é evidente que, com a nova tradução, quis-se transmitir um conteúdo teológico particular, uma questão que vai além da maior ou menos proximidade aos textos latinos.
Além disso, todo o episódio da elaboração do novo Missal tem significados mais profundos do que uma simples controvérsia linguística. Chamam a atenção dois aspectos, ligados entre si. Em primeiro lugar, quem vive nos Estados Unidos sabe que a qualidade litúrgica nas igrejas católicas é notoriamente muito alta: do ponto de vista da solenidade, da música, do cuidado com as leituras e as vestes sacras etc. Os motivos são muitos, especialmente no que se refere à música (incluindo um interessante fenômeno de migração para a cultura católica de uma tradição litúrgica congregacional-protestante), mas em particular há o sucesso do processo de recepção da reforma litúrgica do Concílio nos EUA, como evidenciou o recente estudo de Mark Massa, The American Catholic Revolution: How the ’60s Changed the Church Forever (Oxford University Press, 2010).
Ao contrário de outros casos apontados pelos nostálgicos, a reforma litúrgica conciliar nos EUA não deu lugar a "abusos", nem à destruição de um patrimônio ritual – muito católico e muito norte-americano – que ainda é forte e sentido. Portanto, das tantas reformas das quais os anticonciliares ou os católicos conservadores norte-americanos poderiam sentir a necessidade, a da liturgia é percebida como a menos urgente.
Em segundo lugar, é evidente que, no coração das tensões entre Roma e as Igrejas anglófonas, e no interior destas, há a consciência de que a reforma litúrgica do Concílio é "o" símbolo do Vaticano II e, de alguma forma, a guardiã da sua eclesiologia. Aqueles que atacam a reforma litúrgica sabem muito bem que o Vaticano II ainda está no caminho da sua "canonização", ou seja, da sua estabilização cultural como nova forma expressiva da fé católica. Modificar a liturgia do Concílio (e, neste caso, latinizar a língua) pode ser lido como um apelo subentendido a colocar novamente em discussão todo o restante do Vaticano II.
A nova tradução em inglês do Missal parece ser, portanto, um campo de confronto acerca da interpretação do Concílio: um confronto particularmente delicado e de resultado incerto para um catolicismo, como o anglófono, culturalmente pouco ligado às nostalgias da era tridentina.
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O novo missal em inglês e a herança do Concílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU