08 Julho 2011
"Eu dizia em Brasília: se vocês, dos carismas maiores, mortificam e anulam os carismas menores porque têm como único critério o de se ampliarem e tomarem mais espaço, isso não é de Deus". Um encontro com o novo prefeito da Congregação vaticana para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica
A reportagem é de Gianni Valente, publicada na revista italiana 30 Giorni, 04-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dos prédios futuristas de Brasília àqueles cheio de história do outro lado do Tibre, a viagem é longa. Dom João Braz de Aviz, 64 anos, arcebispo emérito da capital brasileira, deu esse salto há poucas semanas. No último dia 4 de janeiro, o papa o chamou para Roma para liderar a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica e para abrir uma nova estação nas relações – sempre vivazes e às vezes agitadas – entre a Sé Apostólica e a galáxia das congregações e das ordens religiosas.
Eis a entrevista.
Dom João, como mudou a sua vida desde que o senhor chegou a Roma?
Certamente, a mudança foi grande. Em Brasília, havia mais de dois milhões e meio de fiéis, 380 sacerdotes e 128 paróquias, que eu visitava frequentemente. Aqui, o povo não existe. Só se vê quando há as grandes aglomerações na Praça de São Pedro...
E, algumas vezes, nos primeiros dias, o senhor chegou a comer sozinho...
Em Brasília, em casa, sempre havia companhia. Eu tinha duas mães de família como secretárias, havia a cozinheira, éramos uma pequena comunidade. Aqui também, mas o raio de amigos vai se ampliando com o tempo.
O senhor, também quando criança, em família, estava acostumado às grandes mesas numerosas.
Os meus pais eram do sul. Eu nasci no Estado de Santa Catarina. Mas quando tinha dois anos, meus pais se mudaram para o Estado do Paraná, em uma área que, como se dizia naquele tempo, começava a ser "colonizada". Ali, o meu pai começou a trabalhar como açougueiro. Tenho um irmão mais velho, também ele sacerdote, e depois nasceram outros seis. No total, somos cinco homens e três mulheres. A menor, que tem síndrome de Down, agora tem 47 anos. Lembro que, quando ela nasceu – estávamos então em Borrazópolis –, meus pais, para fazer com que ela fosse batizada, pegaram uma carruagem com cavalos e percorreram mais de 40 quilômetros, porque não queriam esperar.
Uma bela viagem naqueles tempos.
Onde vivíamos, no início, não havia sacerdotes. O padre passava de vez em quando, uma vez por mês. Eram os líderes leigos populares que lideravam as comunidades, que mantinham a catequese e favoreciam as práticas da vida de fé, como o Santo Rosário e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Naquele tempo, a Igreja local se baseava muito em grupos como o apostolado da oração, ou os filhos de Maria... Meu pai e minha mãe também ajudavam a manter as capelas abertas.
E, depois, como o senhor se tornou padre?
Eu, apesar de ainda ser criança, já com sete anos, no tempo da primeira comunhão, percebi a vocação, que depois foi cultivada pelas irmãs de Santa Catarina, onde eu havia sido mandado para acompanhar a escola. Quando eu tinha 11 anos, entrei no seminário menor de Assis, no Estado de São Paulo, a 400 quilômetros da capital. O seminário havia sido aberto pelos missionários do Pime [Pontifício Instituto Missões Exterior]. Alguns deles haviam sido missionários na China, de onde haviam sido expulsos depois da chegada de Mao ao poder. Eles nos contavam suas histórias. Lembro que eram pessoas muito profundas. Foi bonito crescer tendo-os diante dos olhos. E depois, como adolescente, encontrei também a espiritualidade do Focolare.
Como isso aconteceu?
Conheci um pintor ateu que, depois de ter se convertido, falava de Deus de maneira viva e concreta. Ele me impressionou, sendo eu um menino. Eu pensava: olhe só esse ateu que agora fala com tanta força do amor de Deus e de como esse amor é descoberto amando o irmão... Para mim, eram coisas novas. Até aquele momento, eu pensava na educação, que era preciso ser gentil com os outros por uma questão de boas maneiras. Jamais havia pensado que o outro pudesse ser servido como o próprio Jesus.
Depois, o seu bispo lhe mandou estudar teologia em Roma. Era 1967, o Concílio recém-encerrado... Como o senhor se lembra daqueles anos?
Eu estudei na Gregoriana e, depois de um ano, o Ateneu Salesiano, para fazer os cursos de psicopedagogia. Recebi o diaconato em Roma e retornei ao Brasil só em 1972. Eram tempos marcados por muitos estímulos e por muitas dificuldades. Tudo parecia em movimento. Iniciava-se o tormento provocado pelo Concílio. Atualizavam-se os velhos ordenamentos, reestruturavam-se os cursos, mas havia também a incerteza que marca todas as fases de passagem e de revisão.
E, na América Latina, vocês se encontravam diante do surgimento da Teologia da Libertação.
Éramos idealistas, queríamos dar a vida por qualquer coisa grande. A escolha de olhar para os pobres nos dava uma esperança muito grande, sobretudo a nós, que vínhamos de famílias pobres. Estávamos prontos para abrir mão de tudo, até do seminário, se aquele ímpeto não fosse acolhido e abraçado na realidade eclesial em que vivíamos.
O senhor já explicou que, nessa passagem, a experiência do Focolare o ajudou a superar o perigo de que tudo se dissipasse.
Deus me protegeu assim. A experiência espiritual do Focolare é forte e simples. Já no final dos anos 1960, Chiara Lubich nos convidava a rever o nosso modo de viver, à luz do amor de Deus. Às vezes, a mim também parecia que ela subestimava a exigência da transformação social. Foi uma passagem difícil para muitos. Mas assim permanecia a confiança de que havia um caminho, era preciso ter paciência, mas se caminhava juntos e não nos perdíamos. Tornamo-nos sacerdotes com essa grande luz interior, acompanhada por esse senso de inquietação, de suspensão. Jamais quis esconder de mim mesmo a coexistência desses dois fatores. Eu pensava: essa é a condição que me coube viver. Com o tempo, isso me ajudou a ver que ser sacerdote não significa exercer um "domínio" religioso sobre a própria vida e sobre a vida dos outros.
Com o tempo passado, qual balanço o senhor faz da fase eclesial ligada à Teologia da Libertação?
Podem-se dizer coisas diferentes. No Brasil, alguns dos grupos pastorais daquele tempo mais estimulados nessa linha hoje se transformaram em ONGs com muito dinheiro, saindo da Igreja. Diziam que queriam mudar a Igreja; depois, a fé acabou, e ficou a sociologia. Isso só pode provocar tristeza. Porém, continuo convicto de que, nesse episódio, no entanto, aconteceu algo grande para toda a Igreja. Como a constatação de que o pecado dos homens cria estruturas de pecado. E que a predileção pelos pobres é uma escolha de Deus, como se vê no Evangelho. Nas primeiras comunidades, os quatro pilares fundamentais eram a fidelidade à doutrina dos apóstolos, a eucaristia, oração e depois aquela comunhão fraterna que não era um sentimentalismo, mas sim uma coisa prática; significava ajudar as viúvas e os órfãos, pôr os bens em comum. A partir disso se via que a comunidade vivia diante do seu Senhor. Agora, nós escondemos os bens, fechando-os a sete chaves, até nas comunidades religiosas.
Dentro da geração dos padres "liberacionistas", um dos pontos de diferenciação era a atitude diante da devoção do povo.
Naquele tempo, alguns pensavam que a devoção popular era alienação. Diziam que a pureza da fé havia se corrompido com as devoções. Uma ideia que pode ser refutada até do ponto de vista puramente histórico. Entre nós, a crise veio com a abolição das congregações religiosas desejada pelo Marquês de Pombal, que foi um desastre e comprometeu também toda a experiência pastoral iniciada com os índios. E ainda agora, no entanto, não se entende como é possível que o Brasil seja 75% católico, mesmo que depois só 10% se aproximam habitualmente dos sacramentos. A razão histórica é esta: justamente a devoção popular foi um instrumento para transmitir e manter a fé, em muitas comunidades lideradas por tanto tempo por leigos.
Às vezes, há quem ainda aponte para a Teologia da Libertação como um "perigo" iminente.
Sim, às vezes, a Teologia da Libertação parece ser um fantasma que assume o comando. Muitas coisas mudaram. Em muitos países, aqueles que eram contra o poder, como Lula, ou que até eram guerrilheiros, agora governam. Houve todo um caminho, e é hora que todos na Igreja se deem conta disso. No Brasil, desde a independência, sempre houve um forte poder que eu chamaria de "o poder do dinheiro". É esse poder que, por exemplo, continua resistindo a uma verdadeira reforma agrária. E que nunca teve uma grande relação de proximidade com a Igreja e nem com a hierarquia eclesiástica. A Igreja não tem apoios financeiros do Estado, e as igrejas também são construídas com o dinheiro do povo, e, geralmente, quem ajuda mais são os mais pobres.
O que o senhor pensa da causa de beatificação de Óscar Romero?
Nos processos de beatificação, existem detalhes que devem ser avaliados com cuidado, como aqueles científicos envolvidos no reconhecimento do milagre exigido. Mas acredito que, como vida de santidade, Romero foi um grande exemplo. Um bispo que, com o episcopado, também recebeu manifestamente a graça de se tornar pastor do seu povo, naquela situação tão distorcida pela violência. A mesma coisa aconteceu no Brasil com Dom Hélder Câmara. Quando o ouvíamos falar, durante o regime militar, ele nos fazia estremecer de emoção. Ele era uma pessoa que nos encantava. Um homem de oração. Acho que há muitas figuras que, pouco a pouco, com o tempo, entenderemos melhor. E se verá que toda a sua vida foi impregnada por isso. Senão, não teriam oferecido a sua vida assim. Câmara sempre viveu tendo diante de si a possibilidade de ser morto. Não o mataram só porque o povo iria reagir muito mal. E então mandavam advertências bastante claras: em vez dos bispos, matavam os secretários dos bispos, como aconteceu com o secretário de Dom Hélder.
O senhor citou Lula. Como arcebispo de Brasília, o senhor deve ter tido que tratar com ele. Que balanço o senhor faz da sua fase na liderança do país?
Em sete anos em Brasília, nunca o vi na Catedral... [sorri]. E às vezes fazia afirmações um pouco surpreendentes, como quando dizia ter uma moral como pessoa privada e uma moral como presidente... Mas, certamente, a percepção da sua contribuição é muito positiva e compartilhada pela maioria dos brasileiros. Ele amou o seu povo e, tendo sido um operário, entendeu a situação dos brasileiros como ela é na realidade concreta. Com ele, o Brasil teve um crescimento impressionante, e houve também uma certa redistribuição da renda. Ele combateu a corrupção, sem se aproveitar da posição de presidente para defender os corruptos que também estavam dentro do seu partido.
E Dilma, a nova presidenta?
Dilma é muito diferente. Lula é um operário, a sua força é o sindicalismo. Ele é um sindicalista humanista, um fortíssimo lutador. Dilma é uma intelectual e, em outros aspectos, é mais pragmática. Mas dizem que ela tem ainda mais apoio popular do que Lula. É interessante esse dado.
Como iniciou o seu trabalho na Congregação para os Religiosos?
Tivemos que enfrentar muitas dificuldades. Havia uma grande desconfiança por parte dos religiosos por causa de algumas posições tomadas anteriormente. Agora, o foco do trabalho é justamente o de reconstruir uma relação de confiança. Com o secretário da Congregação, Joseph William Tobin, trabalhamos juntos, partilhamos muito, de modo que as decisões são tomadas em comum.
Como está procedendo o episódio das inspeções nas congregações religiosas femininas dos Estados Unidos?
Esse também não é um caso fácil. Havia desconfiança, contraposição. Falamos com elas, suas representantes também vieram aqui para Roma. Recomeçamos a ouvir. Não se trata de dizer que os problemas não existem. Mas podem ser enfrentados de outro modo. Sem condenações preventivas. Ouvindo as motivações. Agora, temos muitos relatórios de investigação sobre os quais devemos trabalhar. Depois, existe o relatório da irmã Clare Millea [a religiosa designada pelo Vaticano como visitadora apostólico] que será importante.
São legítimas e úteis as comparações entre as ordens religiosas mais antigas e os novos movimentos? Às vezes, há quem os coloque em concorrência ou até mesmo em contraste.
Os carismas que florescem no tempo presente são doados à Igreja de hoje. Talvez em 20 anos não terão a mesma relevância. E isso não deveria se chocar com os carismas mais antigos. Se viverem em fidelidade ao carisma inicial doado ao seu fundador, encontrarão também o modo de dar algo a este tempo. O perigo é quando se perde o espírito dos fundadores.
Nesse sentido, o que representou para o senhor o caso do fundador dos Legionários de Cristo?
Certamente, é uma dor quando se vê a expansão de uma realidade que se apresenta como carismática e, depois, se descobre a indignidade do seu iniciador. Como isso foi possível continua sendo um mistério. O caso dos legionários não é o único. No Brasil, tivemos o caso da Toca de Assis. Uma comunidade que usava um hábito no estilo franciscano que chamava a atenção e que havia entrado no filão da Canção Nova [comunidade em rede nascida no Brasil e ligada com o movimento carismático]. Davam uma imagem forte de si, com freis que diziam dar glória a Deus cantando e dançando. Haviam envolvido cerca de 600 jovens. Até que se descobriu que o fundador também tinha comportamentos moralmente indignos com os seus seguidores. Quando aos legionários, na sua estrutura não me convencia, ainda antes, a falta de confiança na liberdade das pessoas que eu via em seu interior. Um autoritarismo que tentava dominar tudo com a disciplina. Eu já havia removido os seminaristas de Brasília dos seus seminários, porque via que assim as coisas não podiam ir em frente.
O senhor não acredita que, no passado, houve muita ênfase nos novos movimentos, o que às vezes escondia aspectos problemáticos?
Nas novas comunidades e nos novos movimentos, nem tudo é bonito e justo a priori. Em algumas realidades, vê-se que há aspectos muito desequilibrados. Claro, não se pode negar que em muitas dessas realidades viram-se coisas muito grandes. Em muitos lugares, trouxeram frescor, alegria, novidade, juventude. Acho que o tempo atual, no entanto, não é mais o tempo em que cada um faz por si mesmo, em que todos estão separados até entrar em conflito uns com os outros, e estão unidos só na referência comum ao papa. Eu dizia em Brasília: se vocês, dos carismas maiores, mortificam e anulam os carismas menores porque têm como único critério o de se ampliarem e tomarem mais espaço, isso não é de Deus. Se existe um "carisminha" pequeninho, por exemplo, em uma paróquia, ajudem-no a crescer, em vez de combatê-lo.
Além da sua ligação com o Focolare, também é conhecida a sua amizade com a Comunidade de Santo Egídio.
Sim, tenho muita estima por Andrea Riccardi. Espero encontrá-los em breve.
Nos últimos tempos, um fenômeno difundido é o dos novos institutos de vida consagrada, que às vezes vivem situações de conflito com os bispos e com as próprias Igrejas nacionais.
Eu sempre tenho um pouco de medo quando um grupo começa a pensar e a dizer: "Nós somos os únicos que defendem a verdadeira Igreja e a Tradição. Nós possuímos a luz de Deus, e os outros não". Na Igreja, não funciona assim. E Deus não trabalha assim. Ele distribui os seus dons, jamais deu toda a graça a uma pessoa só. Se pensarmos na experiência de Deus com o seu povo, o que também se destaca na Bíblia não é o exclusivismo elitista, mas sim a paciência e a misericórdia para com aquele povo cheio de limites, que se perdia ao longo do caminho. Quanto esperou, quantas vezes se decepcionou... E se olharmos também para os santos, vemos que os verdadeiros santos sempre foram amigos entre si. São diferentes, talvez brigam às vezes, mas depois pedem perdão e trabalham juntos. Mesmo os de agora, como o Pe. Giussani e Chiara Lubich.
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As pretensões dos homens e a paciência de Deus. Entrevista com Dom João Braz de Aviz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU