01 Junho 2011
Muitos clérigos e leigos australianos consideram que o declínio do número dos que vão à Igreja, o número cada vez menor de padres e de religiosos, e o escândalo dos abusos sexuais do clero são razões convincentes para se afastar das velhas formas de ser Igreja e de dar continuidade a uma reforma fundamental .
A análise é de Chris McGillion, ex-editor de assuntos religiosos do jornal The Sydney Morning Herald, que atualmente leciona na Universidade Charles Sturt. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 31-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto e revisada pela IHU On-Line.
Eis o texto.
As energias dos católicos australianos nos últimos anos têm sido absorvidas pelas abordagens contraditórias a ser fiéis. A primeira é a integridade institucional da Igreja (os requisitos de obediência, ortodoxia e conformidade). A segunda é a sua integridade moral (o que ela deveria estar fazendo, para quem e como).
Os máximos líderes da Igreja e seus membros ordinários têm se preocupado com essas questões em uma proporção quase inversa. O Papa Bento XVI, assim como o falecido João Paulo II, antes dele, tem se esforçado para fortalecer a Igreja contra as influências do secularismo, insistindo em uma disciplina mais estrita em seus quadros e em uma maior aceitação dos ensinamentos oficiais por parte dos fiéis.
Muitos clérigos e leigos australianos, por outro lado, consideram que o declínio do número dos que vão à Igreja, o número cada vez menor de padres e de religiosos, e o escândalo dos abusos sexuais do clero são razões convincentes para se afastar das velhas formas de ser Igreja e de dar continuidade a uma reforma fundamental.
O resultado dessas abordagens contraditórias muitas vezes é conflitante.
O incidente mais recente na Austrália foi a de um popular bispo de 67 anos de uma diocese rural do estado de Queensland. No início deste mês, Dom William Morris anunciou que estava se retirando, após 18 anos no cargo, por pressão do Vaticano.
Morris suportou a investigação do Vaticano das acusações de que ele encorajou o debate sobre o fim do celibato obrigatório para os padres, sobre a ordenação de mulheres e sobre o reconhecimento das ordens ministeriais anglicana e luterana e de que – possivelmente – ele teria permitido que a confissão comunitária (o Terceiro Rito da Reconciliação) fosse realizada em sua paróquias de formas que violavam o Direito Canônico.
Morris disse ter sido "deliberadamente mal interpretado". Também disse que se mantém convicto de que a igreja precisa ser aberta à discussão sobre os desafios que enfrenta, mas que, ao contrário, está sendo sufocada pelo "crescente autoritarismo".
O tratamento de Morris gerou manifestações de indignação e de desespero em muitos católicos de todo o país. "Estou profundamente entristecido com esse evento e com a falta de transparência no processo", foi um dos comentários mais contidos de um membro do laicato.
O presidente do Conselho Nacional de Presbíteros, o órgão mais representativo dos padres da Austrália, também expressou seu constrangimento ao "desprezível tratamento" dispensado a Morris e levantaram preocupações sobre "elemento dentro da Igreja cuja ideologia restauracionista quer reprimir a liberdade de expressão (…) e que nega a autoridade magisterial legítima do bispo local dentro da Igreja".
Esse caso, porém, é apenas a ponta de um iceberg muito maior.
Sinais externos de sucesso
Após a primeira visita à Austrália de João Paulo II no final dos anos 1980, o padre historiador Edmund Campion escreveu que "as grandes multidões que iam celebrar a missa com o papa em todas as capitais demonstraram, no mínimo, o seu bem-estar ao se chamarem de católicos [e sua] presença foi uma réplica aos que haviam prenunciado a ruptura iminente da Igreja australiana".
Naquele momento, assim como agora, os sinais externos de sucesso eram inconfundíveis. Os católicos se tornaram o maior grupo religioso único na Austrália em meados da década de 1980 (cerca de 26% da população). A Igreja empregava mais pessoas do que qualquer outra empresa fora do governo. Era o principal fornecedor do setor privado de serviços de educação, saúde e bem-estar. E, claro, Sydney foi escolhida para sediar a Jornada Mundial da Juventude em 2008.
Mesmo assim, por trás dessa fachada, uma outra história estava se desenrolando.
O seu elemento mais preocupante era a constante deserção entre os bancos das igrejas. Em 1976, mais da metade de todos os católicos professos da Austrália participavam da missa regularmente: em 2006 (a última vez que essa contagem foi feita) esse valor era inferior a 14% e continuava caindo.
Mesmo essa cifra, no entanto, é um pouco enganadora, porque mais de um terço dos participantes regulares da missa são migrantes de primeira geração, principalmente do Vietnã, das Filipinas e da Índia. Há todas as probabilidades de que seus filhos, criados em circunstâncias diferentes, rapidamente não continuem essa prática, assim como a maioria das outras pessoas.
"Estamos realmente morrendo, de alguma forma", lamentou um padre da Austrália ocidental no estudo que eu concluí recentemente sobre o clero paroquial australiano. "Há muita desconexão entre a vida das pessoas e a Igreja hoje, que não é como antes, não é forte, de qualquer forma. Aqui na minha comunidade local eu sou quase irrelevante – é assim como eu me sinto. É como se eu e a igreja fôssemos irrelevantes".
Muitos dos leigos que participam a missa regularmente efetivamente reduziram, se não eliminaram completamente, o seu sentido de apego à Igreja institucional mais ampla. "Há pessoas nesta paróquia que não vão dar dinheiro na coleta, porque dizem que não confiam na instituição, mas eles me dizem que, se eu precisar de dinheiro para uma boa causa, eles vão dar", disse um padre de Sydney. "Há um forte sentimento entre os leigos de que continuam sendo Igreja segundo o seu próprio estilo [nesta paróquia]".
Entre os que vão à Igreja, no entanto, há também um pequeno número de leigos católicos extremamente conservadores – ironicamente conhecidos como a "polícia do templo" – que têm se encarregado de patrulhar as fronteiras da ortodoxia, espionando padres e bispos e denunciando a Roma o que que consideram ser um comportamento questionável.
Acredita-se que esses relatórios desempenharam um papel importante na definição das percepções sobre a Igreja no país entre as autoridades do Vaticano, incluindo o atual papa.
Sinais dos tempos
No início de 1998, por exemplo, o então cardeal Joseph Ratzinger afirmou no L`Osservatore Romano – o jornal oficial do Vaticano – que a Austrália era um país onde há "abusos na participação dos fiéis leigos no sagrado ministério dos ordenados". Quais eram esses "abusos" e como eles diferiam da situação de países como a França, a Inglaterra e a Itália – que sem dúvida foram muito mais longe no caminho do secularismo que a Austrália da época – nunca foram explicados.
Mais tarde naquele mesmo ano, depois que muitos bispos australianos no Sínodo para a Oceania, em Roma, haviam se pronunciado sobre a necessidade de uma reforma da Igreja que respondesse aos sinais dos tempos, vários membros da hierarquia australiana receberam, e foram obrigado a assinar, uma avaliação da sua Igreja elaborada em grande parte por autoridades da Cúria, incluindo Ratzinger.
Essa avaliação, conhecida como a Declaração de Conclusões, afirmava que existia uma "crise de fé" na Austrália, que resultava em grande parte da "tolerância característica da sociedade australiana". Isso levou, indicou o documento, à indiferença religiosa, a entendimentos distorcidos da fé e a uma "indefinição das linhas" entre os papéis do clero e dos leigos.
Em essência, as correções estabelecidas na declaração – que foram posteriormente ignoradas por muitos bispos mais pragmáticos – tornaram-se marcadores do catolicismo "autêntico" para muitos conservadores, incluindo aqueles que Morris afirma estar por trás do processo contra ele.
Nada que o Vaticano exigiu, do que os bispos complacentes entregaram, ou do que os leigos conservadores aplaudiram, porém, inverteu o declínio dramático nos quadros das ordens religiosas ou dos sacerdotes diocesanos. Em 2010, havia apenas a metade do número de sacerdotes religiosos, irmãos e irmãs na Austrália do que havia em meados da década de 1970.
Oficialmente, o número de padres diocesanos passou de 2.100 padres há 50 anos para 1.900 hoje – um declínio de 10%. No mesmo período, a população católica nominal passou de 2,6 milhões para mais de 5,1 milhões – um aumento de quase 100%.
Esses dados, no entanto, podem ser enganadores: eles incluem padres aposentados, bispos ativos e aposentados, e padres não mais no ministério paroquial. O número real de padres ativos no ministério paroquial na Austrália em 2011 é um pouco maior do que 1.500. Pelo menos 300 destes são padres estrangeiros convidados pelas dioceses com vistos de trabalho de curto prazo para compensar a falta de novas vocações.
O entusiasmo entre muitos padres australianos é muito baixa. Durante o meu estudo, um padre de 77 anos disse que sua impressão era de que até mesmo os católicos subestimavam os seus padres e que, nestes dias, "se o valor do ministério católico fosse medido em termos monetários, ele teria, entre todas as profissões, o valor mais baixo".
Muito mais desconcertante foi o comentário de um padre de 47 anos que escreveu que a única coisa que ele sempre quis foi ser padre, mas que, "dado o estado da Igreja hoje, espero a noite em que eu vou dormir e simplesmente não vou acordar".
Quase metade dos 550 padres que responderam à minha pesquisa disseram que sua carga de trabalho era excessiva e, na mesma proporção, concordaram que tinham muito pouco tempo para ir atrás de seus interesses puramente pessoais. Geralmente, uma geração mais velha de sacerdotes parecia resignada a esses fatos da vida, mas diversos padres na casa dos seus 50 anos definitivamente não o estão.
"Nossa idade média está sendo devorada e queimada por muito mais trabalho, enquanto os padres com mais de 65 anos, quando estavam atravessando a meia-idade, tinham provavelmente três padres em uma paróquia, e seu trabalho e o estresse sobre eles eram menores, e podiam continuar até aos 75 anos e até depois", disse um deles.
"Eu acho que muitos da nossa geração basicamente estão dizendo física e emocionalmente: `Não posso`. Falamos sobre isso o tempo todo. Mesmo enquanto nos aproximamos dos 50 e 60 anos, estamos indo mais devagar. Acho que essa é nossa experiência. Estamos realmente jogando a toalha mais cedo e por isso não teremos a energia para trabalhar depois dos 70 anos".
A solidão da vida sacerdotal também era uma realidade que muitos dos entrevistados mencionaram em considerações completamente espontâneas. Parece ser um fator importante na formação das atitudes com relação ao celibato obrigatório (70% dos inquiridos pensavam que ele deveria ser opcional).
Mas as respostas mais surpreendentes vieram dos padres foram sobre questões relativas à atual gestão da Igreja na Austrália. Apenas pouco mais de um terço dos entrevistados achavam que os bispos estavam fazendo um bom trabalho; quase dois terços pensavam que os bispos eram muito conservadores; e os que responderam à pesquisa estavam igualmente divididos quanto ao fato de serem ou não estimulados pelo seu bispo.
Quase três quartos dos padres sentiam que o Vaticano muitas vezes não conseguia compreender a natureza da Igreja na Austrália, e a maioria sentia que o Vaticano exercia um controle muito grande sobre a Igreja do país e emitia diretivas que restringiam o papel que ela poderia desempenhar.
Muitos padres se queixaram de um crescente conservadorismo e centralismo na Igreja. Como um padre de 52 anos disse: "Eu estou irritado e frustrado com uma hierarquia míope e tacanha que teme a consulta e a colaboração na tomada de decisões".
Quando esse estudo foi concluído, pelo menos uma dezena de padres australianos indicaram que se recusarão a usar a nova tradução ao inglês do Missal Romano, e noticiou-se em fevereiro que centenas de outros padres estavam zangados com a falta de consulta na preparação da tradução – o que foi influenciado pelo arcebispo de Sydney, o cardeal George Pell – e com a natureza desatualizada do resultado.
Os quadros episcopais também parecem estar subitamente em desordem. A Austrália tem 33 dioceses e eparquias e cerca de 42 bispos ativos e auxiliares. Nos últimos três meses:
- Dom Chris Toohey, 59 anos, líder carismático e pioneiro ambiental, renunciou ao cargo de chefe da grande diocese rural de Wilcannia-Forbes em julho de 2009, sem qualquer explicação. No mês passado, Toohey emitiu um pedido de desculpas público bastante estranho por ter se comportado em em seu antigo ofício "de forma não coerente com o que é o exigido para uma boa pessoa".
- O bispo de Maitland-Newcastle, Michael John Malone, de 71 anos, aposentou-se antecipadamente porque disse estar exausto de lidar com casos de abuso sexual clerical. "Estou emocionalmente esgotado com o que aconteceu e me sentir desiludido", disse Malone ao seu jornal local. "Eu me agito e me viro todas as noites por causa dos abusos sexuais cometidos pelo clero e sinto muita ansiedade".
- O bispo auxiliar Pat Power, de Canberra, admitiu publicamente que estava "pensando seriamente" em se aposentar aos 70 anos. Ele disse que queria sair da administração e dos compromissos pastorais, mas fontes dizem que Power – considerado em geral como moderadamente progressista – está frustrado por ter que lidar com os ouvidos surdos das autoridades vaticanas.
No quadro geral, a experiência australiana católica não é exclusiva. Mas ela fala mais uma vez sobre o fracasso de um antigo modelo de Igreja e do impedimento ao nascimento do novo.
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Quando o entusiasmo vacila. O caso da Austrália - Instituto Humanitas Unisinos - IHU