18 Abril 2011
O acidente nuclear afunda a imagem do Japão como país tecnológico. Os especialistas reconhecem uma mistura de negligência e excesso de confiança nos mecanismos de segurança, por parte do Governo e da empresa que administra a central atingida pelo tsunami.
A reportagem é de Rafael Méndez e está publicada no jornal El País, 17-04-2011. A tradução é do Cepat.
O setor da aviação assumiu que às vezes, muito raramente, os aviões caem. Explicam-no recorrendo à teoria do queijo com furos. Cada fatia de queijo é uma barreira de segurança. Quando se coloca uma série de fatias de queixo em fila, a probabilidade de que os buracos se alinhem e permitam que se olhe de um lado ao outro é mínima.
Mas acontece. Quando isso acontece na aviação quer dizer que todas as medidas de segurança falharam e acontece um acidente. Nunca há uma causa só, mas uma sequência de erros.
O setor nuclear, ao contrário, vivia com o convencimento de que os acidentes não podiam acontecer. Que as centrais são seguras. Que Chernobyl (Ucrânia, 1986) foi um desastre soviético, e Harrisburg (nos Estados Unidos, em 1979), um problema de gestão. Contudo, Fukushima mudou tudo isso. Porque em Fukushima todos são culpados: a má escolha do local, a avaliação otimista de risco sísmico e de tsunamis, o projeto arquitetônico, a operação, a gestão da emergência e até da informação. Cinco semanas depois, o Japão não consegue controlar Fukushima. Nem se aventura a dizer quando poderá fazê-lo. Nem sequer tem claro como atacar a refrigeração da central e controlar o vazamento radioativo. E para a indústria nuclear esse é o grande drama. Porque o Japão não é a Ucrânia.
Segundo um estudo de 2007, realizado por uma Universidade da Índia, no Japão havia 770 engenheiros por cada milhão de habitantes, o triplo que nos Estados Unidos (246).
É o país capaz de ter uma rede de norte a sul de trem bala, que chega a atingir 300 quilômetros por hora, conectada com linhas locais e de ônibus.
Também é, ao menos aparentemente, o país mais preparado para suportar terremotos. Os arranha-céus de Tóquio balançam ao ritmo das sacudidas da Terra e as pessoas nos cafés se entreolham durante a sacudida, mas não costuma ir além disso. Em uma viagem de ônibus lotado pela rodovia da costa leste do Japão, de repente tocam os celulares da maioria dos 42 passageiros. Bip bip. Todos os telefones receberam a mesma mensagem. Tanto que muitos dos silenciosos viajantes nem se incomodaram em olhar o celular. Já sabem do que se trata: um aviso do centro de emergências de que houve um terremoto, uma réplica do grande terremoto de magnitude 9 que, no dia 11 de março, agitou a metade norte do país e que produziu um tsunami que moeu a costa. Um passageiro agita as mãos em sinal de tremor, mas no ônibus não se nota nada. O ônibus nem para. As réplicas não são menores. Houve mais de mil réplicas desde o 11 de março e 408 delas tiveram uma magnitude superior a 5 na escala Richter.
No dia 11 de março, quando as ondas de 15 metros chegaram até a planta de Fukushima, os dois principais executivos da Tepco (Tokyo Electric Power), a elétrica que opera na central, estavam em viagem ao exterior. Com o aeroporto de Tóquio fechado devido ao terremoto, quando chegaram ao escritório eram 16h do dia seguinte e o reator número 1 já havia explodido. Em uma sociedade tão hierarquizada como a japonesa, a falta dos dois líderes da Tepco "atrasou uma ação crucial", segundo o jornal The Daily Yomiuri, que dedicou uma série de reportagens à lenta resposta da Tepco.
O tsunami deixou a central sem fornecimento elétrico e, portanto, sem refrigeração nos quatro reatores. Esfriar um reator nuclear é algo essencial. Do contrário, o reator aquece, começa a se formar vapor de água e aumenta a pressão no seu interior, o que ameaça a integridade da contenção.
Na tarde do acidente, o Governo japonês começou a pedir à Tepco para que ventilasse esses gases – abre-se uma válvula e o gás radioativo vaza; é o mal menor. Mas a Tepco tomou a decisão somente às 10h17 do dia 12 de março. "A Tepco não nos explicou por que não havia começado a ventilar", reconheceu em uma coletiva de imprensa o porta-voz do Governo japonês, Yukio Edano, personagem capaz de participar de uma entrevista coletiva à meia-noite e outra sete horas depois. Edano, com sua saudação à bandeira antes de cada intervenção, parece o único político que se salva das duras críticas de seus compatriotas.
A elétrica também recebeu críticas por demorar quase um dia inteiro para começar a injetar água do mar nos reatores. A água do mar deixará a planta sem serventia, e a imprensa local acusou a empresa de tentar num primeiro momento salvar a central a qualquer custo.
A Tepco é uma empresa gigante responsável por 40% da eletricidade consumida no país. Como grande elétrica, tem muito poder (isso não é exclusivo do Japão). E como grande elétrica contratou muitos antigos funcionários públicos. O último foi Toru Ishida, ex-diretor da Agência de Energia do país, agência central sobre a política nuclear, que em janeiro foi contratado pela Tepco. No Japão, a passagem dourada de altos funcionários e políticos por empresas que antes tinham que regular é uma tradição que tem até nome, amakudari, literalmente, "caído do céu". Edano declarou que o Governo considera estas contratações "socialmente inaceitáveis".
O Governo japonês e a imprensa acusam a Tepco de reagir tarde e mal, mas os erros começaram há décadas. O Japão, um país sem carvão, petróleo, gás ou possibilidade de fazer grandes hidrelétricas, se viu atrelado à energia nuclear, que no ano passado contribuiu com 29% da eletricidade. A segunda maior economia do mundo (hoje a terceira, atrás da China) não podia se ver estrangulada pela falta de fornecimento de energia. Aceitou o risco dos terremotos, mas a previsão de riscos se demonstrou fracassada.
As nucleares necessitam de uma fonte de água para sua refrigeração, e como no Japão não há grandes rios, todas estão na costa. Em 11 de março, 14 reatores em quatro centrais foram afetados pelo maremoto. Tsuneo Futami, diretor da central de Fukushima nos anos 1990 e hoje professor de engenharia na Universidade de Tokai, disse ao The New York Times: "Quando dirigia a planta, o risco de tsunami nem me passou pela cabeça".
A barreira contra o maremoto estava projetada para uma onda de 5,5 metros. A que chegou à central foi de 14, segundo um documento do Ministério da Economia. O subdiretor de relações internacionais da Agência de Segurança Nuclear japonesa (NISA), Keiji Hattori, admite que o risco não foi bem calculado. "Com o terremoto, as centrais pararam de forma segura. Mas o tsunami que veio foi três vezes maior que o previsto. Evidentemente, tudo isso precisa ser reavaliado com os últimos dados científicos", explica por telefone.
Tampouco se pode dizer que fora insólito. A costa de Sendai teve nos últimos séculos atividade sísmica menor que em períodos anteriores, mas em 869 houve um tsunami no mínimo similar ao atual, segundo um artigo publicado na revista científica Nature pelo sismólogo da Universidade de Tóquio Robert Geller, um norte-americano que está há 27 anos no Japão. Geller parece irritado no outro lado do telefone: "O Governo se baseava em uma ciência errada".
Não esperavam o terremoto de magnitude 9, mas houve um dessa magnitude no Chile em 1960, outro em Kamchatka (Sibéria) e outro no Alasca. Por que não haveria um com essa magnitude no Japão? A NISA se defende: "Tínhamos nos registros que houve um tsunami no século XI, mas falamos de mais de um milênio atrás. Agora é muito fácil dizer isso".
Geller culpa "os burocratas" que, na sua opinião, dirigem de fato o país, pela situação: "O Governo esperava um grande terremoto, mas não nessa zona; mais ao sul. E não faz sentido. Se introduziram um mapa há tempo de forma oficial, já não há forma de mudá-lo".
O cálculo teórico de desenho sísmico das nucleares foi muito otimista. Em 2007, um terremoto superou por mais do dobro as bases do projeto sísmico da nuclear de Kashiwazaki-Kariwa. Nunca antes havia acontecido no mundo. No último mês se repetiu duas vezes: no dia 11 de março em Fukushima e no dia 07 de abril, quando uma réplica excedeu as bases do projeto de Onagawa. Três vezes em quatro anos. As três no Japão.
Geller concorda com o fato de que o Japão subestimou o problema sísmico ao adotar seu programa nuclear: "Caso não puderes construir uma central de forma segura, não o faças". O professor conclui que "a percepção de que o Japão tinha tudo sob controle quanto a terremotos era um mito. Apenas nos prédios". Hattori, da Agência Nuclear japonesa, admite que Fukushima forçará a reformulação de todo o programa energético do país e que será preciso revisar "de baixo para cima" a segurança de todas as nucleares.
A revista científica Nature, em um editorial, resumiu esta catástrofe e outras, como a do vazamento no Golfo do México da BP. Em todas, diz, a causa foi "o excesso de confiança no poder dos sistemas e das decisões humanas".
O acidente deixa, além disso, dúvidas sobre o design dos reatores, construídos pela General Electric (Estados Unidos), Toshiba e Hitachi (ambas japonesas). O sistema de contenção desta tecnologia fez com que se acumulasse hidrogênio no interior. Quando por fim a elétrica deixou vazar o gás do interior para evitar que o excesso de pressão prejudicasse o recipiente, o hidrogênio explodiu em dois dos reatores dentro do edifício de contenção, o que acabou por liquidar a central, fez com que se liberassem enormes quantidades de radioatividade e dificultasse ainda mais os trabalhos na planta.
O reator número 1 tem uma contenção chamada Mark-I e foi projetada pela General Electric que, nos anos 1970, foi objeto de controvérsias entre as autoridades dos Estados Unidos sobre a resistência a eventuais situações como a atual. Garoña, em Burgos, também a usa. Após uma série de melhorias, no final dos anos 1980, os Estados Unidos abandonaram o debate sobre essa contenção, e Garoña garante que em 1991 introduziu melhorias sobre o sistema de ventilação. O Conselho de Segurança Nuclear (CSN) afirma que revisou o sistema de Garoña e que isso não ocorreria. Os especialistas consultados insistem em que se a explosão se repetiu em vários dos reatores de Fukushima. Persiste um erro de planta, mesmo que ainda não tenha sido bem explicado.
Mas se a central e a companhia elétrica falharam, o Governo japonês recebeu críticas do exterior pela falta de informação. Seus vizinhos e inimigos Coreia do Sul e China expressaram-no claramente e criticaram o vazamento de toneladas de água radioativa para o mar, que fez com que se encontrasse peixe contaminado a mais de 35 quilômetros de Fukushima.
A NISA demorou um mês para dar a Fukushima o nível máximo na escala internacional de acidentes nucleares (INES, que vai de 0 a 7). O Japão manteve o nível 5 quando era um clamor que, no mínimo, devia ser 6. O Japão o admitiu dois dias depois das eleições locais em que o partido no Governo, o Partido Democrático do Japão, saiu derrotado. Um dos membros da Agência de Segurança Nuclear, Seiji Shiroya, admitiu que ele considerou que era nível 7 desde o primeiro momento.
Até o momento, apenas Chernobyl atingiu essa qualificação. "Pequena desonra para o Japão", ironiza um jornalista local. Mesmo assim, Fukushima não é tão grave quanto Chernobyl: aqui [Fukushima] o reator não chegou a explodir, não morreram trabalhadores diretamente pela radiação... O vazamento de Fukushima nos primeiros dias foi de apenas 10% da Ucrânia, mas Junichi Matsumoto, um dos responsáveis da Tepco, admitiu que, caso a situação persistir por meses, poderia chegar a ultrapassar o vazamento de Chernobyl.
O Governo também demorou semanas para ampliar a área de exclusão de Fukushima. Primeiro traçou uma zona de 20 quilômetros com um compasso; depois recomendou aos que moram entre 20 e 30 quilômetros que não saíssem às ruas, e, finalmente, anunciou que evacuaria cinco povoados até uma distância de 40 quilômetros na direção em que sopravam os ventos.
Os vizinhos de Fukushima vivem com indignação a situação. Mais de 100.000 pessoas abandonaram suas casas. Em Iwaki, por exemplo, a sudoeste e fora do raio de exclusão da central, as crianças não saem para brincar. Aquelas que ficaram, porque muitos pais enviaram seus filhos para familiares de outras prefeituras. As escolas estão semivazias. Os agricultores não podem vender os produtos e a pesca está proibida. Milhares de pessoas estão assim há mais de um mês, e um assessor do primeiro-ministro, Naoto Kan, admitiu a possibilidade de que seja preciso criar uma zona de exclusão ao redor da central por mais de uma década.
As consequências de Fukushima são enormes e mundiais. No Japão, porque viu como 50 países restringiam a importação por medo da radiação, porque há estrangeiros que saíram e porque receberá menos turistas. Além disso, um terço da produção elétrica do país está paralisada (as nucleares do norte não voltaram a entrar em operação), o que causou apagões e problemas em todo o mundo: as grandes empresas automobilísticas como a Toyota, Nissan e Honda têm problemas para abastecer com peças suas plantas da Europa e Estados Unidos.
Isso em um país com quilômetros e quilômetros de costa destruídos por um tsunami que deixou mais de 13.000 mortos e 15.000 desaparecidos. Um mês depois, Ishinomaki, no nordeste, ainda cheira a poeira e lixo. "Chegou até aqui", explica o empregado de um restaurante assinalando uma marca acima da cintura. Tira uma trena e mede: a onda tinha 1,24 metro de altura. E isso que nem é possível avistar o mar a partir desse ponto. A cidade continua sem eletricidade e água.
O resto do mundo também não se livra da sombra de Fukushima. As centrais nucleares de toda a Europa passarão por novos testes e há países, como a Itália, que abandonaram seu programa atômico. O sistema energético está tão interligado que o preço do CO2 subiu na Europa devido ao fato de que a Alemanha vai aumentar suas emissões ao fechar as plantas mais antigas. Isso é apenas o começo. Desmantelar Fukushima levará mais de 10 anos. O nome será lembrado durante décadas.
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Em Fukushima, todos são culpados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU