08 Março 2011
Em seu refúgio mexicano, o fundador dos Legionários de Cristo representou sua última farsa: em um ambiente de oração, rodeado por sua congregação, viveu parte do desterro junto de sua filha e de sua amante. O jornalista do El País Jesús Rodríguez conta essa história em seu livro La Confesión (Ed. Debate, 2011).
A reportagem é do jornal El País, 06-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma vez consumada a renúncia de Maciel em janeiro de 2005, a primeira etapa de seu desterro foi Cotija de la Paz (na região mexicana de Michoacán, considerada a mais ultraconservadora dentro da melhor tradição da guerra cristera), seu povoado, onde havia fundado anos antes o Centro Cultural Interamericano, uma bela casa de retiro pendurada sobre a cidade. Seria a última vez que pisaria em vida o seu vilarejo, esse remanso verde sulcado por ovelhas e apreciado por seus queijos levemente temperados.
Não havia nada de estranho que Maciel voltasse a Cotija para lamber suas feridas. O curioso da nova situação é que o fundador, aos seus 84 anos, já não viajava sozinho, como havia feito durante décadas (pulando por cima das normas estabelecidas por ele mesmo, que indicavam que os legionários deviam se deslocar de dois a dois para evitar as tentações, e com itinerário, orçamento e alojamento que deviam ser aprovados por seus superiores).
Nessa última ocasião, acompanhavam-lhe uma mulher mexicana em torno dos 40 anos, Norma Baños, que conquistava cada vez mais liberdades na tomada de decisões em torno da agenda do fundador, e a filha adolescente desta, Normita Rivas Baños (que tinha o apelido de uma das personalidades que Maciel adotou em sua vida, José Rivas). E que, para fechar o círculo da impunidade macielista, estudaria comunicação nas universidades da Legião na Cidade do México (Anáhuac del Norte) e depois em Madri (Francisco de Vitoria), onde alguns membros do Regnum Christi sabiam quem ela era na realidade. Segundo um sacerdote legionário que viveu aqueles acontecimentos:
"No final de outubro de 2005, a senhora Norma ficou vivendo estavelmente em Cotija, no Centro Cultural da Legião, em um quarto contíguo ao que Maciel ocupava. A relação entre eles era de total familiaridade. Cada um entrava no quarto do outro, como um casal". Isso começou a causar um enorme desassossego entre os legionários, as consagradas e os empregados que viviam com eles no centro.
O que o piedoso entorno de Maciel opinava sobre essas mulheres?
"Todos pensávamos que era uma rica benfeitora que dava dinheiro à congregação e tinha confiança com o padre Maciel, como antes outras benfeitoras haviam tido, Talita Retes, Pepita Gandarillas, Pachita Pérez, Edmé de Galas, Dolores Barroso, Guillermina Dikins, Josefita Pérez, Consuelo Fernández, viúva de Zertuche, Flora Barragán...", lembra uma testemunha. "Essa mulher mais jovem do que a média de suas benfeitoras anteriores frequentava as casas da Legião e era muito querida pelas consagradas que estavam a serviço de Maciel. Não ficamos imaginando nada mais. Outros pensavam todo o contrário: que era uma mulher do nosso movimento, do Regnum Christi, e sua filha, e que estavam sem dinheiro, e que Maciel as protegia. Ninguém foi além disso. Ninguém uniu as pontas. Como íamos julgar a conduta do nosso padre e, além disso, supor que eram sua mulher e sua filha?"
Essa filha de Maciel havia nascido 20 anos antes no México, na mesma época em que Maciel foi operado de um derrame cerebral em um centro médico de Houston (Texas), uma intervenção à qual se seguiu uma longa e discreta convalescença de seis meses no México. Segundo um antigo legionário, "a partir dessa intervenção, ele já não dissimulava com tanta eficácia suas saídas e entradas. Já não era a mesma coisa".
Surpreendentemente, em 2005, nenhum legionário suspeitou de nada em Cotija de la Paz, ou ao menos nenhum teve a coragem de expressar suas dúvidas e suas pesquisas aos seus companheiros. Ainda não havia sido anulado o voto privado de silêncio dos legionários, o juramento de fidelidade ao fundador. A ausência de crítica para com os ditados de Maciel era sua razão de ser como legionários. Estavam educados desde meninos nessa cultura de secretismo. E ninguém, visse o que visse, ouvisse o que ouvisse, acreditava ter autoridade para criticar as atividades de Maciel fora do conduto hierárquico de queixas.
Segundo as normas macielistas, se um legionário tinha alguma queixa para formular, deveria fazê-lo por meio do conduto regulamentário: "O voto de não criticar não priva os legionários da liberdade de acudir ao diretor-geral ou ao diretor territorial ou ao próprio superior para lhe expôr os possíveis ou reais defeitos". Isto é, se algum legionário soube de alguma coisa e o denunciou ao seu superior, a denúncia ficou ali congelada. Se alguém sabia algo sobre a vida de Maciel eram as 20 pessoas que governavam (e continuam governando) a Legião, mas elas não mexeram um dedo. E se alguém teve dúvidas, comunicou-as militarmente ao seu superior pelo conduto regulamentário. Muitas vezes, essa denúncia custaria a vários legionários a sua saúde, sua razão e seu posto.
"Impenetrável e intocável"
"O padre Maciel era muito reservado, viajava continuamente, dormia em hotéis e não prestava contas a ninguém", são os argumentos mais repetidos na cúpula legionária para não se comprometer. Maciel era impenetrável. O próprio diretor-geral atual, Álvaro Corcuera, me repetiu ativa e passivamente, em Roma, que nunca suspeitou de nada.
"Entendo a suspeita das pessoas, mas eu lhes garanto que não tínhamos nem ideia. Talvez deveríamos ter investigado mais, mas Maciel era muito reservado, e ninguém se perguntava em que ele gastava o dinheiro. O fundador é uma figura dentro de qualquer congregação. Todos têm um santo como fundador, e ninguém lhe questiona nada. Maciel era alguém muito particular. Era impossível entrar em sua vida. Era muito reservado em suas viagens, em seus afazeres. Em seu quarto, entravam só os que lhe ajudavam. Nunca usava seu escritório. As reuniões ocorriam nas salas da Direção Geral ou enquanto passeávamos. Não sabíamos nada de seus gostos e interesses. Ele tomava todas as decisões. E sempre me pareceu intocável, em claro contraste com tudo o que eu ia saber depois e que tanto sofrimento ia me proporcionar".
Ninguém sabia de nada? É difícil de acreditar. Maciel tinha milhares de seguidores em todo o mundo. Era uma figura habitual na Cúria. Tinha linha direta com o Papa e os homens mais poderosos, desde os presidentes mexicanos a Lech Walesa ou à família Aznar. Era um anticomunista furibundo. Viajava sempre na primeira classe, pagava em dinheiro, hospedava-se nos melhores hotéis. Alguém deve ter lhe visto em alguma ocasião, como, de fato, não cabe a menor dúvida de que lhe viram. Outra coisa é que alguém se decidisse a falar.
Do dia 3 de maio daquele ano de 2005 (só três meses depois de abandonar o poder) são algumas fotografias que imortalizam Maciel vestido à paisana, algo que se acostumaria a fazer nos últimos tempos: aspecto de aposentado octogenário, camisa, calça azul e barriga redonda, na casa de retiro de Cotija. Ao seu lado, Norma Baños, cabelos pretos e um atraente vestido turquesa. E Normita, a filha, morena, pequena, vestida com um decotado vestido branco. Junto ao casal e à sua filha, três consagradas do Regnum Christi de total confiança do fundador: Teresa Vaca, Griselda Suárez e María Laura Moreno, sorridentes e complacentes, com as mãos recolhidas no regaço e com seus habituais cortes de cabelo e trajes de freiras sem hábito dos anos 80.
Em outra imagem da mesma data, a esse curioso grupo, somam-se dois dos pesos pesados da Legião, os padres espanhóis Jesús Quirce Andrés, médico, reitor da Universidade Anáhuac do México e um dos propagandistas da bioética legionária, e o secretário de Maciel, o muito piedoso (a julgar pelos seus escritos) Marcelino Nino de Andrés, hoje assistente de apostolado na Espanha e irmão de José Ramón de Andrés, reitor do seminário de Salamanca e também com uma irmã consagrada.
Uma panela de pressão
O que faziam essas duas mulheres nessa casa da Legião, inexpugnável para quem não pertencesse ao movimento, na companhia do venerado padre Maciel? Em que qualidade estavam quando, naquele tempo, a Legião era um feudo vetado a qualquer alheio à congregação, embora fosse membro de sua família?
Imaginemos a cena: outono de 2005, em um rincão bucólico e isolado do México profundo; a paz espiritual de uma cômoda residência de retiro; um ambiente de paz e de oração; sacerdotes e senhoritas consagradas com votos de pobreza, obediência e castidade que nem se olham, aos quais está proibido comer à mesma mesa; o fundador de uma ordem ultraconservadora mimada por João Paulo II que caiu em desgraça, junto com sua amante e sua filha secreta. Uma panela de pressão que acabaria estourando.
"O padre Marcelino, secretário do padre Maciel, intrigado por tanta frequência e pela acolhida tão amistosa e excepcional que recebiam do fundador e a intimidade tão grande, vai um dia e pergunta à moça, em um aparte, quem era e qual era o seu laço com Maciel", explica uma testemunha que se ruboriza só de lembrar a situação. "Ela, de repente, lhe disse que era sua filha. Assim, pelas boas. Não se acanhou. Algo que nunca havia dado a conhecer anteriormente (nem repetiria depois). Uma bomba para o pobre padre Marcelino, obviamente. Difícil de acreditar, mas possível? O pobre padre Marcelino, em seguida, se pôs em contato com o padre Álvaro, o diretor-geral, para lhe dar a informação, repito, até então desconhecida. O padre Álvaro lhe disse que ia investigar, mas não sei se fez isso. Suponho que a notícia não se estendeu entre os membros da Legião, porque seria preciso comprová-la primeiro. A afirmação da menina era o único dado de que se dispunha e era preciso averiguar se era uma farsa por parte dela para estabelecer ou exigir algum tipo de segurança econômica futura, quando o padre Maciel falecesse, ou se por acaso era verdadeira".
Corria o ano de 2005, o ano da morte de Wojtyla, o ano da renúncia de Maciel, o ano em que a máscara caiu.
Maciel havia se burlado de todos. O mais curioso é que a própria mulher, Norma Baños, a mãe de sua filha, afirmou posteriormente que havia ignorado durante muitos anos a verdadeira identidade de Maciel. Em sucintas declarações em 2010, afirmaria que havia ficado grávida do fundador quando era menor de idade e ignorava que era sacerdote: "Eu nunca teria escolhido esse caminho para a minha vida... Quando conheci esse homem, eu era uma menor... Nem minha filha nem eu sabíamos quem ele realmente era até o final".
O estreito círculo de legionários que descobriu naqueles dias a existência da amante e da filha de Maciel guardaram silêncio. Taparam-se os olhos, os ouvidos e a boca. O padre Corcuera, ao qual tenho diante de mim em seu escritório de Roma com um gesto de aflição à beira das lágrimas, sabia, no outono de 2005, que Maciel tinha uma filha. Alguns legionários adiantam, em julho desse mesmo ano, a descoberta. Em todo o caso, em 2005, Corcuera sabia disso, e é lógico que a comunicaria ao seu segundo, Luis Garza, e ao seu terceiro, Evaristo Sada, e aos seus quatro conselheiros, assim como aos principais superiores da congregação.
O atual secretário-geral, o resistente Evaristo Sada, tentou despistar este jornalista sobre a data da descoberta, situando-a um ano mais tarde. Quando lhe disse que mentia, ele escapou muito no estilo legionário com um: "Você já sabe que sou muito ruim com as datas. Eu acredito que foi no final de 2006". Mentia. A cúpula da Legião sabia no final de 2005 que Maciel tinha uma filha à qual mantinha e uma mulher com a qual vivia. O padre De Andrés, habitual do círculo macielista, sabia disso e também sabia o padre Garza Medina, o homem dos segredos econômicos da holding Integer. E não disseram a ninguém até quatro anos mais tarde.
Secretismo
A maioria dos 3.000 religiosos da congregação, das 900 consagradas e dos 70 mil leigos ficaram com o pincel na mão em sua incondicional defesa do fundador, que se encontrava contra as cordas perante o Vaticano. O secretismo é a senha de identidade da Legião de Cristo, com mais razão ainda em 2005, com a Legião oscilando e Maciel doente e questionado. A maioria dos legionários não conheceriam oficialmente esse fato até o começo de 2009, quando a notícia viu a luz no The New York Times e se estendeu por todo o mundo. Três anos antes, o diretor-geral, Álvaro Corcuera, e seu círculo imediato já tinham a absoluta certeza da paternidade de Maciel, após haver encarregado uma análise de DNA de Normita em uma clínica norte-americana a partir de um de seus cabelos, que foi retirado de um pente, quando estava em uma casa da Legião, por mediação de uma consagrada.
A análise ocorreu em 2006 e teve resultado positivo. Não havia dúvida de que era filha de Maciel. Segundo outras fontes consultadas, a cúpula da Legião contratou até investigadores privados para rastrear o passado e os movimentos de dinheiro do fundador.
"Nesse momento, com as provas de DNA nas mãos, começamos a nos dar conta totalmente de que Maciel nos havia enganado", explica um legionário que trabalha na Direção Geral. "Nossa confiança se rachava. Se o padre Maciel foi capaz de enganar a todos durante 20 anos com a história da filha, as acusações por abusos sexuais que foram feitas contra ele desde os anos 40 podem ser verdadeiras. A história da filha nos faz cair as vendas. A sanção do Vaticano de maio de 2006 começa a nos parecer razoável. Há padrões idênticos de fatos isolados. E tudo começa a parecer possível, por mais que nos custe acreditar".
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Marcial Maciel, a amante e sua filha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU