17 Fevereiro 2011
Quem governa a internet? Ainda que seja um emaranhado burocrático tão complexo quanto o sistema político planetário, se pode dizer que há duas grandes organizações que manipulam os fios da rede: uma é a Icann (Internet Corporation), que concede números e endereços, e por outro lado a Internet Society, que organiza e financia a IETF (Internet Engineering Task Force), que trabalha na melhoria das tecnologias. Concretamente, se cada dispositivo que se conecta à internet tem um número IP (Internet Protocol), quem governa esses números é o "dono" da rede.
A reportagem é de Mariano Blejman e está publicada no jornal Página/12, 16-02-2011. A tradução é do Cepat.
Ninguém sabe exatamente como aconteceu, mas o uruguaio Raúl Echeberría tem neste momento três dos cargos mais importantes no burocrático governo da internet. É por isso que escutá-lo falar sobre os boicotes ao WikiLeaks, as censuras da Tunísia ou o "apagão" da internet ocorrido no Egito, mesmo que seja a título pessoal, é de se prestar atenção. "O que o corte da internet no Egito demonstrou é que tirar o acesso à rede das pessoas é uma má ideia, inclusive para aqueles que têm más ideias. Não que seja mau moralmente, mas não contribui para o que se quer alcançar", disse Echeberría, em Miami, onde foram entregues há alguns dias os últimos endereços da rede disponíveis segundo o velho formato.
O funcionário – que está há 10 anos no governo da rede – entende que não só os governos fazem política, mas também as corporações. "E mesmo que defendam certos princípios, são capazes de revisar esses conceitos em tempos de crise. Por exemplo, na discussão sobre a governança da internet o governo dos Estados Unidos sempre emitiu uma posição de "participação zero’ dos governos para deixar os modelos de auto-regulação da indústria. No caso do WikiLeaks, ainda que haja coisas que não podem ser confirmadas, alguns oficiais norte-americanos optaram por ser intervencionistas na divulgação de informações".
Raúl Echeberría é, sem dúvida, a pessoa com mais peso em nível mundial no tocante à regulação dos endereços IP. É diretor executivo da Lacnic, a organização que regula o uso dos endereços para a América Latina e o Caribe. É o presidente da Internet Society, organização que decide as questões tecnológicas vinculadas ao funcionamento da rede (foi criada e inicialmente presidida por Vinton Cerf, um dos pais da internet e agora estrela do Google). E é, no momento, o presidente da Number Resources Organization (NRO), entidade que nucleia as cinco regiões do mundo que administram a distribuição dos números IP. De qualquer modo, seu papel histórico mais importante é a defesa dos endereços para a América Latina.
Há duas semanas, enquanto o mundo tecnológico debatia sobre a queda da internet no Egito, a Icann – organização que Echeberría ainda não preside, mas quem sabe quanto tempo falta – entregou a cada uma das cinco regiões os últimos números IPV4, que até agora era a forma como os computadores se comunicavam através da internet. A partir de agora, em dois anos se acabarão os 4,3 bilhões de IPV4. Quando foi criada, nos anos 1970, ninguém pensava que a internet teria este tamanho e que estes endereços seriam ocupados totalmente. Mas advertidos por esta situação há uma década, o "governo" da internet decidiu implementar um novo tipo de comunicação: desta vez, se supõe, haverá lugar para todos. O número exato de IP disponíveis na versão 6 será de 340 282 366 920 938 463 463 374 607 431 768 211 456 endereços.
A Icann tem uma direção que representa os grupos de interesse dentro da internet: é formada pelos governos, provedores de internet, associações de usuários, empresas que compram e vendem domínios, comunidade técnica. Os registros regionais são organizações que funcionam como autogovernos. Desde a semana passada, a Icann não tem mais endereços IPV4 em seu poder: todos estão nas organizações regionais e irão acabar paulatinamente à medida que estes serão entregues aos provedores. Ao contrário da Ásia ou dos países centrais, os 70 milhões de endereços entregues à América Latina durarão mais tempo. Como foi dito, administrar estes endereços é manejar quem e como será usada a internet no futuro. A nova versão destes endereços – que terão números impossíveis de lembrar – vai requerer um vasto trabalho de administradores de sistemas para começar a migração. "A quantidade de novos endereços dá quase para dar um endereço para cada grão de areia do deserto do Saara", disse Echeberría.
Agora como presidente da Internet Society, Echeberría garante que na América Latina há 40% de penetração da internet. E quanto maior for o uso da rede, mais impactantes são os problemas que até agora pareciam preocupações restritas apenas ao Primeiro Mundo. Um desses temas é o da famosa perda de "neutralidade" da rede: isto é, que os provedores de internet façam uma diferença entre diferentes tipos de serviços para manipular o tráfico, ou que priorizem a velocidade de conteúdos próprios em relação aos conteúdos não criados por eles. "O tema da neutralidade da internet é um dos mais importantes do momento e do futuro mais próximo", disse Echeberría. "A internet é um sucesso, basicamente, pelos princípios de neutralidade que existe na rede. Para dar um exemplo: conhecemos meios não neutros como a televisão, onde se recebe conteúdo pago. Alguém se conecta à televisão com um provedor, mas não tem acesso a todos os canais, mas apenas àqueles que estão contratados. É um meio não neutro. A perda de neutralidade fragmentará a rede".
O outro grande tema, segundo Echeberría, é o problema da privacidade que atrai a digitalização das sociedades. "Está relacionada com o novo contexto de uma internet diferente, com outras aplicações, com outra cultura. As implicações em temas de privacidade são imensas. Porque em vez de perseguir objetivos louváveis – e também porque a tecnologia o permite –, os encarregados da persecução vão além do que deveria ser aceitável em políticas de privacidade. As empresas que proveem serviços de conteúdos globais fazem um manejo da informação que muitas vezes implica no manejo de dados pessoais, perfis, preferências de consumo. O usuário está ameaçado de vários pontos de vista e é necessário trabalhar para melhorar a privacidade dos usuários da internet".
Echeberría acredita que a penetração da internet, a globalização das relações sociais e o aparecimento de novos serviços são "um desafio para todos". Segundo Echeberría, é preciso começar a pensar o mundo de maneira diferente: "Se colocas uma mensagem no twitter pensando que será vista por dez pessoas, deverias saber que ela pode ser vista por bilhões. As pessoas deverão estar mais seguras do que querem dizer, antes de dizê-lo na rede. Porque a demanda de maior liberdade de expressão – que para alguns é muito natural – não se aplica a toda a humanidade. Nem toda a humanidade vive nas mesmas condições. Há muitos países onde a liberdade de expressão não é respeitada".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Tirar a internet das pessoas é uma má ideia’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU