07 Janeiro 2011
No último dia 30 de setembro, o principal regimento da polícia de Quito se levantou contra o presidente Rafael Correa, que está levando a cabo audaciosas reformas progressistas no Equador. A tentativa de golpe de Estado causou 8 mortes e 275 feridos, mas abortou. Que lições políticas o presidente tirou dessa tentativa de derrocada? Para falar disso e de diferentes frentes de política internacional, Rafael Correa nos recebe no salão protocolar do Palácio Carondelet, em Quito.
A reportagem é de Ignacio Ramonet, publicada no jornal Le Monde Diplomatique, em sua versão em espanhol, 03-01-2011. A tradução é de Anne Ledur.
Eis a entrevista.
A tentativa de magnicídio de 30 de setembro, você qualificou como Golpe de Estado. Algumas pessoas dizem que não foi. Por que você considera que foi um Golpe e não um simples motim policial?
Meu querido Ignacio, acontece que não só eu, mas os próprios países iberoamericanos declararam, na última Cúpula do Mar del Plata, seu repúdio ao "Golpe de Estado de 30 de Setembro no Equador", porque disso ninguém tinha nenhuma dúvida. Só um cego podia negar.
Quem duvida é essa imprensa corrupta que não busca a verdade; busca prejudicar o Governo. Se nós dizemos branco, eles tem que dizer preto, só para desgastar o Governo. Mas em todos os casos, com base simplesmente na sociologia política latino-americana, dada a história da América Latina, um motim de uma força armada já se considera Golpe de Estado.
Os policiais foram claramente utilizados nesse dia com base na desinformação sobre uma lei que era favorável a eles, como agora reconhecem amplamente. Naquele momento, falávamos com as delegações que nos enviavam e nos diziam: "Não lemos a lei". Então, os explicávamos e eles saíam bem contentes.
Mas por detrás, havia toda uma conspiração para desestabilizar o Governo. De fato, no mesmo Regimento [de polícia], em Quito [que se amotinou], as reclamações não eram para um aumento salarial, mas pelo repúdio por estarmos investigando atentados aos direitos humanos, e que estávamos passando as competências do transporte aos municípios. "Morram os comunistas", "Fora Cuba e Venezuela", "Viva Lucio Gutiérrez", nos gritavam. Havia todo um plano para que se juntassem as Forças Armadas, que finalmente não o fizeram; para que saíssem os cidadãos às ruas, e não os conseguiram tirar. Trataram de tirar os estudantes às ruas, apenas de três colégios em Guayaquil o fizeram, nada mais. Organizaram saques...
Você pode entender que as oito da manhã a polícia se declare em greve e às nove já haja saques massivos em Guayaquil? Tudo isso foi claramente induzido. Trataram de tomar canais de televisão, tomar o aeroporto. Logo, apesar da violência dos feitos, em seguida pediram anistia para todos os insubordinados. A oposição, reunida em um hotel de Quito, já celebrando a queda do Governo... Quando eu estava capturado... E as informações posteriores da inteligência me indicam que isso foi planejando com três semanas de antecedência. O que mudou todo o programa foi que me apresentei no Regimento Quito e fui capturado. Mas a ideia era semear o caos durante dois ou três dias, até que o Governo caísse. Não nos resta a menor dúvida de que foi uma tentativa de Golpe de Estado, de conspiração, de desestabilização.
Você acredita que foi imprudente indo ali, ao Regimento? Você acreditou que poderia convencê-los unicamente falando com eles?
Claro, nunca imaginamos que havia esse nível de beligerância. Essa não é a forma de atuar... Eu fui muitas vezes a quartéis policiais, militares, concentrações de campesinos, indígenas, onde houve lugares de conflito, transparentemente, nessa democracia direta que nós praticamos. O presidente da República explicando, entrando em consenso, informando. Jamais nos imaginamos em uma cilada política. Alguns afirmaram que o presidente, você acaba de dizer, foi "imprudente". Imagina! O primeiro governante, chefe máximo da polícia, vai a um quartel... Isso é ser imprudente? Por favor...
Devemos superar essas coisas na América Latina. Outros disseram que eu fui me meter na boca do lobo. Que boca do lobo? Fui falar com os militares que se declaram em greve – de acordo com as informações que tínhamos, e aí sim nos falhou o serviço de inteligência – por não entender uma lei que era favorável a eles. E, como fiz em muitas ocasiões, fui pessoalmente, conversar, entrar em consenso, explicar. Mas quando chegamos, nos damos conta que se tratava de uma armadilha política. Receberam-nos com uma violência extrema. No começo, nos jogaram uma bomba lacrimogênea, não pudemos entrar. Mas eu pensei: "É algum desorientado" (despreparado?). Aconteceu-nos outras vezes. Pode haver cinco mil pessoas a favor, e cinco desorientados lançam uma bomba lacrimogênea, não por isso vamos prejudicar os cinco mil. Voltamos, e aí sim nos deixaram entrar. Então, já haviam recebido instruções de que "o presidente já estava aqui, "capturem-no!’" Bloquearam a caravana, entramos, e nos demos conta de que se tratava de algo diferente. Insisto, gritavam: "Morram os comunistas", "Fora Cuba, "Fora Venezuela", "Viva Lucio Gutiérrez"... Em seguida, percebemos que se tratava de uma cilada política.
Sua vida correu perigo nesse momento?
Nesse momento talvez não tanto; depois, no hospital policial, claro. Em um dado momento, trataram de me levar ao terceiro piso. Refugiaram-nos; não sei se é a palavra exata. Estávamos ali, no último reduto que pudemos encontrar, porque quando me levaram de emergência [depois de ter sido ferido] ao hospital policial, em seguida cercaram o hospital, para evitar que saíssemos... Então [minha escolta] me levou ao terceiro piso, que era o lugar mais seguro, e se fechou a porta. Eu tinha ainda uma segurança reduzida, quatro ou cinco pessoas que estavam dispostas a dar a vida pelo presidente. Em um determinado momento, [os golpistas] trataram de ingressar ao terceiro piso para tombar a porta, a tal ponto que eu pedi também uma arma para me defender... Mesmo que eu não soubesse disparar, mas também não ia permitir que esses sanguinários me assassinassem tão facilmente.
Claro que aí sentimos que nossas vidas estavam em perigo... Como também quando nos resgataram. Se foram as luzes, começou o tiroteio, e sentíamos as balas acima de nossas cabeças.
Em que você pensou?
Todo mundo manteve muito a serenidade. Eu pensava nas vítimas que poderiam haver entre os civis, militares e policiais. Muito doído, mais que comigo, talvez indignado porque nunca esperamos isso da Polícia... Mesmo que tenha sido uma parte reduzida, a Polícia é uma das instituições que mais temos ajudado.
Você pensou que a "Revolução Cidadã" poderia terminar com o magnicídio?
Eu acredito que ninguém é indispensável, mas todos somos necessários. Claro, tivera sido um golpe muito duro para a Revolução Cidadã o meu desaparecimento físico... Isso não depende de uma pessoa. Mas esses são os grandes desafios... Isso tem que continuar e eu estava certo de que se desaparecesse fisicamente nesse momento iam sair milhares de cidadãos tomar a frente, e não ia se deter a Revolução Cidadã. Mas obviamente seria um golpe muito duro para o processo.
Você tem a impressão de que realmente houve um grande respaldo popular?
Claro. Isso dizem as pesquisas. O que acontece é que nós não temos... É um dos grandes erros que sempre reconhecemos e que estamos corrigindo, e creio que a Assembleia de Aliança País, em 15 de novembro passado, foi o passo decisivo para corrigi-los definitivamente. Nós chegamos ao Governo [em janeiro de 2007], praticamente por uma reação espontânea da cidadania... É diferente de Evo Morales [na Bolívia], que vem de uma luta de muitos anos dos movimentos sociais e dispõe de uma estrutura de base; e a diferença de Hugo Chávez [da Venezuela], que tinha o movimento Quinta República.
Nós, por outro lado, chegamos ao Governo, sem movimento, e sempre tem sido um desafio construir essa estrutura que, com o grande capital político que temos, se transforme em uma estrutura organizada, mobilizada para impedir que grupos minúsculos possam desestabilizar o Governo, como em 30 de setembro passado. Temos estado oprimidos, não temos podido fazer, não tem sido falta de vontade, de visão, sabemos que há essa necessidade. Temos falta de recursos, não temos podido fazer mais, diante do país que recebemos, mas sabemos que é indispensável e começamos a fazer. Creio que o passo definitivo se deu em 15 de novembro.
Em todos os casos, sem essa estrutura organizada, saíram dezenas de milhares de pessoas às ruas expondo suas vidas. Porque você não imagina, Ignacio, a brutalidade com que atuaram os golpistas. Eram bandos de motociclistas mascarados disparando ao ar, baleando ambulâncias, golpeando cidadãos, os arrastando pelas ruas... Apesar disso, os cidadãos seguiam saindo, e não só em Quito, mas em todas as partes do país e do exterior, diante de nossas embaixadas. Houve uma reação multitudinária, mais mesmo se considerarmos que o Governo ainda não dispõe desse movimento político bem organizado e com capacidade de mobilização.
Você disse antes que os insurgentes trataram de fazer contato com as Forças Armadas. As Forças Armadas estavam no Golpe?
Veja, nós recebemos uma conspiração permanente e essas pessoas sabem que não vão nos vencer nas urnas, e, como parte de nosso opositores vem das Forças Armadas... O qual é uma vergonha para essa instituição, como é o caso de Lucio Gutiérrez, um "milico", um militar semi-ignorante, ambicioso de poder, mas com contatos nas Forças Armadas. Sempre sua estratégia tem sido – já desde que vieram que, nas urnas, iam nos ganhar -, infiltrar a força pública [Polícia e Forças Armadas]. Isso é produto de anos de infiltração, e tem infiltrações na Polícia e nas Forças Armadas. As Forças Armadas têm se apresentado mais profissionais, com mais liderança, e – tenho que dizer com dor, com respeito à Polícia –, com menos corrupção.
Por exemplo, um dos detonadores dessa conspiração, que a Polícia utilizou, era que estávamos investigamos atentados aos direitos humanos cometidos pela Polícia, e que o trânsito ia passar aos municípios. O trânsito é uma fonte de renda, muitas vezes, desonesta, para alguns policiais corruptos. Isso não existe nas Forças Armadas, que vivem de sua remuneração. Elas sabem que lhes duplicamos o salário. Aos policiais também, mas muitos policiais não sabem nem quanto ganham, porque sua renda vem de outros lados... Então estamos lutando contra tudo isso. Na Polícia Nacional havia acesso mais fácil à infiltração para essa manipulação. Mas, desde o início desse Governo, tentaram e, claro que há infiltrações nas Forças Armadas, mas essas se apresentaram muito mais consistentes, muito mais sólidas, muito mais profissionais.
Há alguma potência estrangeira implicada?
Não temos nenhuma evidência. Pelo contrário, houve uma grande mostra de solidariedade por parte do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Mas quando chegamos ao Governo, nossos serviços de inteligência, unidades inteiras da Polícia dependiam da embaixada dos Estados Unidos... Dependiam totalmente, os gastos para investigar, pagamentos, duplos salários... Excluímos o fato de que seguissem esses contatos, inclusive com o próprio desconhecimento do próprio governo dos Estados Unidos e da própria embaixada. Você sabe que a CIA e todas essas agências atuam com agenda própria, isso não podemos excluir. Do que, sim, temos certeza é de que há [nos EUA] todos esses grupos de extrema direita essas fundações que financiam aos grupos que conspiram contra o nosso Governo, lhes passam dinheiro de forma camuflada, capacitações, uns nomes chamativos que, finalmente, financiam a grupos opositores ao Governo e a muitos conspiradores.
O presidente Barack Obama lhe chamou para expressar sua solidariedade?
Sim senhor, muito gentilmente o presidente Obama me chamou.
Os líderes do golpe estão identificados?
Os instrumentalizados sim. Os da Polícia que foram utilizados, muitos deles inconscientemente. Tem dois oficiais e um homem da tropa que identificamos como os principais cabeças, me parece, que estão foragidos. Em todo caso, o da tropa está foragido, isso nós temos claro, e esse era um dos policiais que está sendo investigado, acusado por atentado contra os direitos humanos. Mas insisto, foram utilizados inconscientemente, sem excluir que algum conscientemente.
Mas o que vinha por detrás... Deu-lhe um aparente motivo: reclamar por uma suposta lei que os prejudicava, outros aproveitaram para se insubordinar por ser investigados por atentados aos direitos humanos ou porque rechaçam que as competências de trânsito passem aos municípios. Mas detrás disso estavam manipuladores políticos. Lamentavelmente difícil de demonstrar. Pode-se demonstrar para qualquer pessoa que tenha lógica elementar, mas em um processo jurídico, é mais complicado.
Por exemplo, uma semana antes, Lucio Gutiérrez, com [o anticastrista cubano] Carlos Alberto Montaner e [o coronel] Mario Pazmiño - que era precisamente diretor da inteligência das Forças Armadas, e o botamos porque era pago pela CIA -, se reuniram em Miami. Você pode ver as declarações... Reuniram-se com banqueiros corruptos, foragidos do país, do que lhes confiscamos as empresas, e provavelmente são o que financiam tudo isso.
Aí falaram claramente: "para que se acabe o Socialismo do século XXI há que acabar com Rafael Correa". Então, a essa altura do caminho, não acreditamos em casualidades. Essas declarações foram feitas uma semana antes que ocorresse o 30 de setembro, e depois, Lucio Gutiérrez viaja para fora do país... Aí estão os verdadeiros mentores. Você pode ver nas declarações de um manifestante de Gutiérrez, na manhã dessa quinta [30 de setembro], nas que afirmava, eram premonitório, dizia: "Os policiais vão linchar o presidente". Aí está a gravação. O irmão de Gutiérrez [Gilmar], era o que dirigia a escolta legislativa na Assembleia; se subordinaram a ele e se insubordinaram ao Governo.
Então claramente havia vínculos. E ali, claramente, entre bastidores, manejaram tudo isso. Mas o fizeram bem, é difícil poder provar em um processo judicial. Mas as provas, para alguém com lógica elementar, estão aí.
É casualidade que tenha havido uma sucessão de golpes de Estado nos países da Aliança Bolivariana dos Povos da América (Alba)?
Não é casualidade. Claramente são tentativas de desestabilização orientados aos governos de verdadeira mudança. Para a oligarquia latino-americana, para os grupos norte-americanos mais reacionários, para os "falcões" norte-americanos, a democracia na América Latina é boa até que eles digam que tem que mudá-la. A democracia não lhes interessa em absoluto, o que lhes interessa é manter seus privilégios, manter suas posições de poder.
Por isso, permanentemente, os países progressistas da região, os de verdadeira mudança, temos que suportar conspirações que você assinalou: Venezuela, em 2002; Bolívia, em 2008; Honduras, exitosa, em 2009; fracassado, Equador, em 2010. Todos golpes de Estado atípicos. Talvez o mais próximo a típico foi o de Honduras. Antes, os golpes de Estados na América Latina, se realizavam quando um general vinha com sua força, seu batalhão, sua companhia, tirava o presidente e tomava o poder. Isso já é impossível, ao menos na América Latina. Por isso têm que camuflá-lo de outras formas. Daí esse golpes de Estados que temos chamado de "não ortodoxos". Lembre que, na Venezuela, disseram que eram "protestos populares" e que o presidente havia renunciado, botaram imagens na televisão indicando que os chavistas haviam disparado, quando dispararam contra os chavistas, e criaram uma atmosfera de confrontação cidadã. Assim camuflam esses golpes.
Lembre que, no caso de Evo Morales, era a suposta autonomia que certos grupos pediam, que, na verdade, eram separatistas e queriam assassinar o próprio presidente, começaram a massacrar indígenas, etc. Então, já não chamam essas coisas por seu nome, golpe de Estado, mas que, por detrás dessas argúcias estão grupos políticos. Se o golpe tem êxito, saem à luz, senão, ficam escondidos e metem a culpa em terceiros, como ocorreu no Equador.
Que responsabilidade tiveram os meios de comunicação privados?
Enorme, são uns conspiradores permanentes. São os "cães de guarda" do status quo. Isso não é novo nem no Equador, nem na América Latina. Podemos nos remeter a 28 de janeiro de 1912, quando Eloy Alfaro foi assassinado. Veio prisioneiro de Guayaquil a Quito, num domingo, a multidão o tirou do panóptico, o massacrou, a ele, a Ulpiano Páez, o arrastaram, etc. Que o povo de Quito é criminoso, não; foi incitado, foi instigado, foi manipulado durante semanas por uma imprensa corrupta, como dizem os historiadores sérios.
Isso é o que permanentemente temos recebido desde o nosso primeiro dia de Governo, sobretudo por nos submetermos passivamente à imprensa, que se considera um poder onímodo. Até era, mas essa situação está mudando e é o que mais os preocupa. Eles têm tratado de semear a discórdia e desestabilizar o Governo desde o primeiro dia. O de 30 de setembro foi fruto do que semearam, porque eles foram os primeiros que criaram a desinformação sobre a lei. Tratando de pôr-nos contra os servidores públicos porque os propusemos pagar-lhes metade de sua indenização em ações, mas o que diziam é que antes não havia indenização.
Antes, um servidor público que trabalhava 40 anos se aposentava com seus quatro últimos salários. Ganhava-se $500, saía com $ 2000, si ganhava $3000 saía com $12000. Hoje, podem sair com até $36000, ganhe $500 o $3000. É equidade. Porque temos funcionários de 80 anos trabalhando. Não se aposentam, porque antes não tinha nenhuma indenização. As aposentadorias eram uma miséria. Já não são. Obviamente pensamos que, com esse incentivo, muita gente ia se aposentar, por isso propusemos uma lei que se possa pagar até a metade dessa indenização, que não existia antes, com ações do Estado, que é um grande investimento. Não imagina a campanha que fizeram para dizer que estávamos caloteando o setor público, manipularam, etc.
Então, aqui recebemos uma permanente conspiração desses meios de comunicação privados, que geralmente são tremendamente corruptos e tremendamente medíocres.
Na recente Cúpula Iberoamericana do Mar del Plata foi aprovada uma "cláusula democrática" que exclui os países em que se cometa um Golpe de Estado, a fórmula é mais tímida que a aprovada na Guiana, em novembro passado, pelos membros da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que prevê a imposição de sanções econômicas e o fechamento de fronteiras com o país afetado pelo golpe de Estado, e você queria mudar na Cúpula Iberoamericana. A Espanha e outros países se opuseram a isso. A declaração final inclui, contudo, uma condenação da tentativa de golpe de Estado do último dia 30 de setembro no Equador como você queria. Você ficou satisfeito?
Sim, isso de que todos os países da Iberoamérica reconheçam que houve uma tentativa de golpe de Estado no dia 30 de setembro e cale a boca dessa imprensa corrupta de que falamos e de tanto opositor medíocre que agora anda dizendo que o "presidente não foi seqüestrado", que "não houve tentativa de assassinato", que "tudo foi uma ficção"... Como fingem bem os cadáveres! É incrível o nível de aleivosia dessa gente, de audácia. Em todo caso, a resolução da Unasul foi muito mais forte. Mas que se tenha estipulado isso, inclusive marca uma mudança de época. Você dirá: mas também existe a "cláusula democrática" na OEA [Organização dos Estados Americanos], mas lembre que ali estavam os Estados Unidos, que bloqueavam tudo. Em todo caso, é claro que a credibilidade da instância é muito maior, aqui se vão executar as coisas e não se permitirão mais golpes de Estado na região.
Tem uma frase de Trotsky que diz: "A revolução necessita do chicote da contrarrevolução". Você pensa em acelerar, radicalizar a Revolução Cidadã?
Claro. Primeiro, estamos de acordo: não há revolução sem contrarrevolução. Isso não se muda, o processo de mudança na América Latina tem grandes resistências que, se não se manifestam, é que não deixaram de existir, mas estão esperando a oportunidade para liquidar esses processos de mudança por todos os meios, como demonstraram aqui, em 30 de setembro, agredindo, disparando, matando, rompendo a Constituição, tomando a Assembleia, por todos os meios... A essas pessoas, o que menos interessa é a democracia e o bem público, seu interesse é deter os processos de mudança. Claro que, depois disso, têm que ser muito mais contundentes, eficazes, precisos para aplicar a Revolução Cidadã no Equador.
Uma mudança radical, profunda e rápida da estrutura vigente, mas também para encher uns vazios que tínhamos. Sim, temos que ser autocríticos - por exemplo, venho da Academia, estas questões de segurança e inteligência não são meu campo - e talvez por descuidarmos disso, permitimos que acontecesse o 30 de setembro. Temos que pôr mais ênfase, muito mais cuidado na parte da segurança e na parte de reconstruir os mecanismos de inteligência que tivemos que praticamente desfazer e voltar a começar. Porque, insisto, não estou exagerando, Ignacio, mesmo que pareça: quando chegamos ao Governo, os diretores [das estruturas de segurança] eram impostos pela embaixada dos Estados Unidos, pagos pela embaixada dos Estados Unidos. Aqui não havia gastos reservados, não havia gastos para inteligência. Já há uma nova Lei de Segurança que criou esses fundos. Os fundos para inteligência eram pagos pela embaixada dos Estados Unidos; então era a inteligência dos Estados Unidos e não do país.
Como você definiria o conceito de Revolução Cidadã?
Já o defini: a mudança radical, profunda e rápida das estruturas vigentes. Sobretudo, as mudanças nas relações de poder. É o grande desafio da América Latina no século XXI, pelo menos na primeira etapa desse século. E a mudança definitiva das relações de poder. Esse estava em umas quantas mãos e umas quantas elites que sempre nos exploraram em mancomunagem com poderes estrangeiros, e deve acontecer ao poder das grandes maiorias, o qual a sua vez se traduz na qualidade do Estado. Passar desses Estados burgueses a verdadeiros Estados populares.
Você poderia citar alguns dos principais avanços sociais?
Bem, temos tido muitos, na verdade, e ninguém nega, só um ignorante poderia negar.. Temos tido imensos avanços na saúde, educação, inclusão social, o que se pode refletir nos incrementos de orçamento. Olhe, a melhor forma de ver quem tem a relação de poder, quem tem o poder em uma sociedade, é ver como se atribuem os recursos. A atribuição de recursos sociais reflete a relação de poder. O orçamento do Estado é o principal revelador. Assim, quando você tinha um orçamento do Estado onde a maior parte era para o serviço de dívida externa e se pagava até antecipadamente essa dívida, como antes de nosso Governo, e só partes marginais para a educação, saúde, etc., se demonstrava que aqui mandavam os credores, os bancos, o capital financeiro, e não a cidadania. Hoje, se deu a volta a essa realidade, o serviço à dívida se reduziu drasticamente, mais que se duplicou o orçamento para a saúde, educação, moradia... Temos construído mais moradia que todos os governos da história juntos. Inclusão econômica e social com o Crédito de Desenvolvimento Humano que se reorientou a um crédito de oportunidades...
Então, se avançou muitíssimo. Agora, talvez venha a etapa mais difícil. Depois da parte quantitativa: mais colégios, o número de alunos disparou, a confiança na educação pública se recuperou, livros e uniformes gratuitos; melhores hospitais também, melhores equipes, etc.
Agora vem a parte mais difícil: a qualitativa. Mais eficiência. Estamos dando melhores serviços porque aumentaram muitíssimo os recursos, mas não necessariamente por dólar investido se está dando melhor serviço. Então tem que pôr muita ênfase na eficiência e na qualidade; na eficiência em serviços hospitalares e na qualidade, por exemplo, na educação.
Uma proposta que o seu governo fez, em matéria de proteção do meio ambiente, é a chamada "iniciativa Yasuní-ITT". Você poderia nos explicar em que consiste e como imagina que pode se propagar?
Uma iniciativa revolucionária. Aqui vamos ver quem é quem, como dizia Miguel d’Scoto, quando era presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas. A medida mais concreta, mais clara é passar da retórica aos atos para combater a mudança climática. O que o Equador está projetando ao mundo é deixar em seu subsolo as suas maiores reservas comprovadas tem de petróleo e assim evitar 400 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera, em troca de uma compensação, em nível internacional, que não chega nem à metade do que estaríamos ganhando por explorar esse petróleo.
Financeiramente, o que mais nos convém é explorar esse petróleo, mas isso contribui com a mudança climática, ao aquecimento global. Esse petróleo está em una zona de altíssima biodiversidade, perto de grupos indígenas "não contatados", além disso, dos 400 milhões de toneladas de CO2... Fazemos esse tremendo sacrifício, mas corresponsabilizem-se, porque também não vamos ser bobos úteis de ninguém.
Desde o ponto de vista conceitual, a lógica é impecável e a legitimidade, porque alguns disseram que é uma "chantagem do Equador". Absurdo! É um princípio muito conhecido que o que recebe a compensação é o que tem o direito de ação ou de omissão. É dizer: se nós temos o direito de tirar o petróleo e não o fazemos voluntariamente, temos direito a uma compensação. Se no caso do bosque em pé, que está se discutindo em [o marco do Protocolo de Kyoto, quando um país tem o direito a cortar um bosque e não o faz, está se dando uma compensação... É exatamente a mesma lógica: tem direito a cortar o bosque, não o faz: compensação. Assim como também se compensa atualmente quando se faz uma ação da qual não temos obrigação, por exemplo, reflorestar. Não temos obrigação, mas estamos fazendo e contribuímos para conter a mudança climática: compensação. É o que se deve compensar.
E é o que ao que não chegou Kyoto. É a da Unasul. Hoje em dia, viajo a Cancun e vamos apresentar, precisamente, esse conceito. Já está se discutindo, o de emissões líquidas evitadas. O que tem que compensar são as emissões líquidas evitadas. Quando eu faço uma hidrelétrica e substituo uma termelétrica, estou reduzindo emissões, compenso. Quando tenho o bosque em pé, estou limpando o meio ambiente, compenso. Quando refloresto, estou reduzindo emissões, compenso. Quando exploro petróleo, estou evitando enviar emissões, também se deve compensar. É uma lógica impecável. A legitimidade da proposta é impecável. Vamos ver quem é quem. Vamos ver quem baixa a retórica aos fatos.
Você foi eleito com o apoio do movimento social e, em particular, do grande movimento indígena equatoriano. Contudo, hoje, tanto da Conaie (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) como a Pachakutik se distanciaram de seu Governo e o criticam. É algo que não se entende na Europa. Você poderia nos explicar como se produziu esse distanciamento?
Bom, aí tem alguns erros: nem a Conaie, nem a Pachakutik nos apoiaram na eleição. Eles mandaram um candidato próprio. Apesar de todos os nossos esforços em fazer uma aliança, mandaram um candidato próprio, que era meu bom amigo Luis Macas, e fez creio que 2,5% dos votos. Logo tivemos certo apoio de algumas instâncias, mas, desde o começo do Governo, tiveram uma posição bastante, eu diria até, destrutiva.
A Conaie e a Pachakutik são as mesmas. Mas diferenciemos entre certa liderança indígena e movimento indígena. Pelo contrário, o movimento indígena sempre esteve conosco. Em abril de 2009, na nova eleição presidencial, fruto da Constituição de Montecristi, a província onde tivemos mais alta porcentagem foi em Imbabura, uma das províncias com mais alta quantidade de população indígena. Então, temos um apoio muito sólido dos indígenas. Infelizmente, certas lideranças perderam totalmente a bússola, Ignacio, e não o digo de coração, não é para justificar nossa posição, é que é algo que a Europa tem que fazer: desmitificar o movimento indígena, ao menos, certas lideranças.
Todos estamos aqui reivindicando pelos indígenas, para reparar a exclusão criminal que tiveram durante séculos, mas isso não significa que sempre têm a razão. Algumas vezes, vocês vêem as posturas do movimento indígena, por exemplo, de certa liderança: "não ao petróleo", não à mineração!", "não à monocultura"… Até as últimas conseqüências, derramaremos a ultima gota de sangue para mais hospitais, mais escolas… Mas, como se fazem essas coisas, sem aproveitar, por exemplo, nossos recursos naturais não renováveis? Então são posições dogmáticas sem sentido; se perseguem os benefícios corporativistas, a educação, a educação bilíngue está em poder da Conaie e era a pior educação. Todas as avaliações diziam isso. Aos que mais devíamos ajudar, os estávamos prejudicando. Então, a reitoria, o Ministério da Educação recuperaram essa educação.
Então se devem desmitificar certas lideranças indígenas, porque a Europa acredita que porque são indígenas sempre vão estar corretos. São bons, tem gente honesta no movimento indígena, mas também tem gente corrupta. Tem gente progressista e tem gente reacionária. Há pouco, a Conaie, isso foi público e notório, fez um pacto com o setor mais reacionário da política equatoriana, que é a Junta Cívica de Guayaquil. Não sei se você a conhece. Reuniram-se e entraram em acordo que a Junta Cívica financie a mobilização da Conaie. Perderam totalmente o rumo... A Europa deve desmitificar a certas lideranças indígenas.
Seu governo está propondo uma lei sobre a propriedade dos meios de comunicação que aparece como uma das mais avançadas do mundo. Que resistências está provocando a adoção dessa lei?
Bom, não sei se você se refere ao que diz a Constituição, que proibiu que grupos financeiros possuam meios de comunicação e justamente o prazo se acabava no mês de outubro de 2010. Eu, em agosto, antecipei: "Estejam atentos! Pode-se esperar qualquer coisa." Porque tirar os meios de comunicação do setor financeiro é uma mudança real nas relações de poder. Antes, nesse país, que você podia fazer contra os bancos? Se os bancos, dos sete canais nacionais, possuíam cinco… E os outros dois, controlava mediante a publicidade. Ou seja, que se você queria legislar sobre taxas de interesse, tinha uma campanha permanente de "atentado à propriedade privada", à "iniciativa privada", à "livre empresa"; e os dois canais que não eram dos bancos tinham que ficar caladinhos porque, senão, perdiam publicidade... Era um poder enorme. Então essa é uma medida que muda realmente as relações de poder no nosso país. Já antecipei: "Estejam muito atentos! Porque essa gente vai internalizar qualquer coisa para evitar chegar outubro e ter que entregar os meios de comunicação". Não me equivoquei. Provavelmente [a tentativa de Golpe de] 30 de setembro foi uma coisa fundamentada nisso, com financiamento de parte dos banqueiros corruptos, de representantes do setor financeiro que não queriam perder seus meios de comunicação.
Mas o Golpe falhou, e em outubro tiveram que entregar os meios de comunicação. Estamos revisando algumas transações aparentemente fictícias que fizeram, mudança de propriedade, mas formal. Os mesmos banqueiros querem seguir comandando esses meios. Então é um golpe duríssimo a favor da mudança de relações de poder em função das grandes maiorias. E, por outra parte, em efeito, está se discutindo uma lei da Assembléia Nacional, uma lei avançada para que a cidadania controle os excessos de certa imprensa. Mas não imagina o ataque que essa lei recebeu essa lei, talvez a maior campanha desse país, páginas inteiras de jornais dizendo "mais respeito", "nossa liberdade está em jogo", em suma: a manipulação de sempre. Eu, realmente, não intervim muito e estou esperando que saia a lei para revisá-la.
Alguns dirigentes da oposição de esquerda, em particular do Movimento Popular Democrático, acusam o seu Governo de "corrupção", citam contratos milionários com um irmão seu, e falam de "traição ao anseio de mudança dos povos do Equador" O que você responde?
Primeiro, quem lhe disse que o Movimento Popular Democrático (MPD) era de esquerda? É o melhor aliado da direita; na Assembleia Nacional, toda sua postura sempre tem sido assim. Você sabem quem era Lucio Gutiérrez, pois até o último minuto o MPD o defendeu... Essa gente não é de esquerda; é oportunista, busca manter seus privilégios e seus espaços de poder que ganharam nas universidades e em certos espaços locais, etc. São os grandes causadores da mediocridade da educação básica, secundária e superior do país, porque aí se infiltraram. O MPD não tem nada de esquerda que não seja o discurso, não se engane. Segundo, acusar de "corrupção" a torto e a direito para ganhar créditos políticos é a maior forma de corrupção. Eu sim posso demonstrar casos de corrupção: como, por exemplo, obrigavam os professores a participar para financiar o grêmio organizado por eles. Que diga, pois, onde está a corrupção.
Porque isso é parte da mesma estratégia da direita; tratam de nos roubar o bem mais precioso que temos, que é a nossa honestidade. Que investigue e digam se o presidente enriqueceu ilicitamente ou que tomou 20 centavos que não sejam dele, que digam que ministro... Eu posso garantir os mais altos cargos do Governo. Claro, cargos médios, em algum estado, já é outra coisa, mas essa acusação é uma forma de corrupção...
Sobre os contratos milionários de meu irmão… Se meu irmão fez, às minhas costas, ilegalmente, 80 milhões em contratos, o que fiz foi suspender todos os contratos e cobrar as garantias do caso com o qual se preservou o interesse do Estado... Que me digam o que tem que fazer mais? Prendê-lo? Não, aí não havia infração penal, havia infração administrativa. Mas se tem que tem que prendê-lo, se trata de um delito de ação pública que eles também podem levar adiante. Seriam cúmplices da corrupção se sabem que há uma ação de delito público e não denunciam como qualquer cidadão pode fazer diante da Promotoria. Então isso é hipocrisia. Ou seja, que culpa eu tenho que meu irmão teve uma atitude tremendamente indelicada, desleal comigo? Tomei todas as medidas que a lei permitia para preservar os interesses do Estado, mas, como não têm de que nos acusar, seguem repetindo bobagens. Esqueça que são de esquerda, nada a ver com esquerda. Vá ver na Assembleia por quem votam. Pela extrema direita toda a vida…
Como você explica que a América Latina seja hoje a região do mundo onde mais experiências progressistas estão sendo executadas?
Coincidências muito felizes, não? E abusos na falta de limites da burguesia. Exploraram-nos demais. Ou seja, com o neoliberalismo, e depois com o senhor [George W.] Bush. O senhor Bush foi o melhor eleitor na América Latina, devemos agradecê-lo. Muitos dos governos progressistas da região chegaram ao poder graças a ele, em resposta ao repúdio às suas ações políticas. E como esses governos não o têm feito mal, pois continua essa tendência progressista na América Latina. Mas os níveis envolvidos no neoliberalismo foram tremendos. Além disso, o fracasso econômico e social, o fracasso democrático. Como se atentava a democracia! Porque com os votos não se decidia nada. Todas as políticas eram as mesmas, vinham definidas pelo exterior, ou por armadilhas institucionais que fizeram. Por exemplo, os bancos centrais autônomos. O que eram os bancos centrais autônomos? Independentemente de quem chegasse ao poder, seguia fazendo a mesma política monetária. Eram autônomos de nossa democracia, de nosso povo, mas bem dependente da burocracia internacional. Então, [esse sistema] estava feito para que nada mudasse, além do fracasso econômico, social, democrático dessas décadas de larga noite neoliberal.
A América Latina perdeu até a dignidade, a autoestima, ninguém se surpreenderia se viesse um burocrata do FMI nos dizer o que fazer, para que revisássemos as contas. Agora, desce um burocrata em um avião e pelo mesmo avião se vai embora. Eu nunca esquecerei – e isso me esclareceu muitas coisas, como acabo de dizer na Cúpula Iberoamericana -, quando fui acompanhar a Cristina [Fernández] frente ao caixão de Néstor Kirchner, passavam dezenas de milhares de argentinos, sobretudo jovens, e ninguém dizia: "obrigado, Nestor, por ter aumentado as reservas monetárias", ou "obrigado, Nestor, por ter reduzido o risco-país". Diziam: "Obrigado, Nestor, por ter nos devolvido a dignidade". Ou seja, a América Latina prefere o risco de ser livre à nefasta solvência dos servis. Havia se perdido até a dignidade. Nossa autoestima estava destroçada.
Eu acredito que é um ressurgir de tudo isso. Ver governos soberanos, progressistas, dignos, que recuperam essa dignidade de si mesmos, de nossos povos, e essa autoestima, acredito que é uma das contribuições fundamentais dessa mudança de época que a América Latina está vivendo. E acredito que é uma das explicações mais claras dessa mudança. Ou seja, por fim chegaram governos que verdadeiramente vão nos defender, que verdadeiramente vão atuar em função de nós, que verdadeiramente vão fazer o que necessitam nossos países. A gente sente essa recuperação da dignidade e da autoestima.
Na Cúpula Iberoamericana do Mar del Plata, de onde está chegando ao parecer – segundo disse a imprensa – você desejava que, na declaração final, constasse um repúdio à diplomacia dos Estados Unidos depois das revelações do WikiLeaks, mas, ao parecer, não se aceitou essa proposição.
Isso é falso. Foi uma invenção da imprensa. Li isso no jornal La Nación, da Argentina. É uma invenção que dizia "Correa foi com a intenção de condenar os EUA". Eu nem mencionei o problema do WikiLeaks na minha intervenção, você pode revisar. Que o chanceler Ricardo Patiño tratou de incluir isso na declaração final é absolutamente falso. É fruto da má fé e da mediocridade dessa imprensa argentina, que reproduz outros meios de comunicação, sem verificar a fonte.
Agora nos sobra ficar desmentindo. Não tem pés nem cabeça. Ou seja, nunca foi nossa intenção aqui, nem temos mencionado. Nossa prioridade na Cúpula era absolutamente outra, e lá conseguimos. Por exemplo, a condenação à tentativa de golpe de Estado de 30 de setembro no Equador. Mas nem mencionamos WikiLeaks. Foi uma invenção da imprensa medíocre e corrupta que a repetem sem verificar a fonte.
Na Espanha residem e trabalham centenas de milhares de equatorianos. Alguns são objeto de xenofobia e discriminação, outros se encontram com problemas de embargo de bens frente a hipotecas devido à crise econômica. Que opinião você tem com relação à atitude das autoridades espanholas com relação aos problemas dos imigrantes equatorianos?
Creio que com o Governo do presidente [José Luis] Rodríguez Zapatero, querido amigo, um governo que estimamos muito, tem havido toda a cooperação. Claro que, com dezenas de milhões de habitantes, jamais de pode controlar que venha um xenófobo e agrida um estrangeiro, seja esse um latino-americano, marroquino, etc. Mas acredito que isso não vem de uma política institucionalizada, nem é tolerada por parte do governo espanhol.
Sobre a crise, é algo complexo. O governo espanhol está passando muito duro, injustamente dura, merece mais sorte. Não quero me intrometer em assuntos internos, mas falei com o presidente Zapatero. Propusemos, na última cúpula em Madri, a Cúpula América Latina – Europa, que tem que mudar a lógica no manejo da crise, em coisas muito particulares como, por exemplo, me parece incrível o abuso nos empréstimos hipotecários. Os princípios legais desses empréstimos, a submissão total dessas pessoas aos interesses do capital. Quando o risco deveria ser do capital, a base legal de risco passa às pessoas. A que me refiro? Imaginemos que lhe emprestam 300 mil euros para una casa, e cotizam a casa em 300 mil euros. Mas acontece que veio a crise e você não pode pagar seu crédito. Qual é o respaldo do crédito hipotecário? A casa. Se você entrega a casa, deveria se extinguir o crédito. Pois não. O que dizem é: "a casa agora, a causa da crise, só vale 100 mil, e você segue me devendo 200 mil euros’. Isso é uma barbaridade. O risco cai sobre a pessoa, não sobre o capital. É lerdo, vão cair no pior dos mundos. Os bancos, com casas vazias sem poder recuperar os créditos, e os imigrantes e as famílias em geral vivendo na Espanha, sem casas… O pior dos mundos.
Tem que buscar uma solução ao problema. O capital financeiro quer sair dessa crise, que ele mesmo produz, sem custo. Quer que o custo caia sobre o resto. Essa é uma solução óbvia. A boa solução é: "senhores, tanto enquanto sigam vivendo, paguem-me o que possam como arrendamento. Se depois de dois ou três anos…" Claro, isso significa que o banco também perde, mas pelo menos recebe algo, e as pessoas não ficam na rua. Se depois dos dois ou três anos não tiverem superado a crise, isso foi como um aluguel e recuperamos a casa… Mas se saímos da crise, bom, você pode continuar pagando os créditos e amputamos os créditos de dois ou três anos de arrendamento. Ou seja, há soluções mais lógicas e menos dogmáticas, mas aí vem a soberba e a miopia do capital financeiro que quer sair de uma crise, que ele mesmo produziu, sem nenhum custo para eles. As principais vítimas são os imigrantes, e muitos equatorianos com problemas estão perdendo suas casas.
Estão voltando ao Equador?
Alguns deles sim, e estamos lhes dando todas as facilidades para fazê-lo.
Última pergunta, presidente. O G20 pretende governar o mundo. Parece normal a você?
Normal não. Mas não nos enganemos, em nível internacional também se necessitam processos similares aos que estão vivendo nossas nações no interior: mudanças na relação de poder. Não nos enganemos. O problema do meio ambiente, que nos países pobres – sobretudo a bacia amazônica – somos geradores do meio ambiente e têm que nos compensar por isso, e não vão fazer enquanto as relações de poder seguirem como estão… Mas imagine se os geradores de meio ambiente fossem os EUA ou a Europa, e os consumidores fôssemos nós, em nome da segurança jurídica, de doutrinas cosmopolitas, pela razão ou pela força, com invasões ou como seja, já teriam obrigado a pagar ou compensar. Lamentavelmente, em nível internacional, também se requer, se queremos um mundo mais justo, uma mudança nas relações de poder. Inclusive para que funcione a globalização com suas terríveis contradições, maior mobilidade de capitais e mercadorias, mas criminalização da mobilidade humana. Quem entende isso?
Criar um mercado mundial em uma sociedade mundial, mas sem governança... Quem governa o mercado mundial? Então somos vítimas desse mercado mundial e a crise é por isso, por falta de governança do mercado mundial. Eles, o G20, não querem, porque também têm sido dominados pelo capital financeiro, dar a cascavel ao gato. Em nível mundial, revise todas as políticas aplicadas na América Latina na última década: todas são em função do grande capital e, sobretudo, o capital financeiro. Algumas vezes eram benéficas para nossos países e outras não, mas sempre o denominador comum: benéfica para o grande capital e para o capital financeiro. Enquanto não muda essa lógica, enquanto a sociedade humana não volta a dominar o mercado, essas crises serão recorrentes, e seremos vítimas do mercado. Se requer uma mudança nas relações de poder em nível global, porque ao G20, que está dominado por esse capital financeiro ao interior de seus países, não interessa isso, nem sequer o discute, e uma das estratégias para essa mudança nas relações de poder em nível mundial é a integração. Uma América Latina integrada, com toda a potencialidade que temos em recursos naturais, PIB, população, etc., poderia ter muito mais presença e ser um fator determinante para a mudança, em nível internacional, nas relações de poder.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Pedi uma arma para me defender". Entrevista com Rafael Correa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU