02 Janeiro 2011
O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ao longo de 2010 produziu análises da conjuntura semanais a partir da (re)leitura das "Notícias do Dia’ publicadas, diariamente, no sítio do IHU e da revista IHU On-Line publicada semanalmente. Como fecho do trabalho desse ano, apresentamos uma Conjuntura Especial que retoma os grandes conteúdos abordados pelas conjunturas semanais no ano de 2010.
Sumário:
Crise climática. Manifestação da crise civilizacional
Modelo econômico em xeque
Matrizes energéticas no centro do debate
Belo Monte. Símbolo de um modelo ultrapassado
Alternativas e protagonistas
Política. Ciclo Lula: Do pós-Consenso de Washington ao modelo neodesenvolvimentista
Lula e o Pós-Consenso de Washington
Neodesenvolvimentismo. A reorganização do capitalismo brasileiro
Lulismo. Um projeto sem rupturas e pluriclassista
Economia. Crise econômica internacional não se esgotou
A crise da zona do euro
A guerra cambial
G.20 – Ignorando as razões da crise
Brasil. Um país imune à crise mundial?
A explosão do consumo e a emergência de uma nova classe média
Movimento social. A agenda esquecida e a agenda emancipatória
A agenda esquecida
A agenda emancipatória
Eis a análise.
Crise ecológica. Manifestação da crise civilizacional
O paradoxo é sempre mais evidente: por um lado, uma sensibilidade cada vez maior quando o assunto é crise ecológica entre muitos cidadãos; por outro, uma inércia quando se trata de partir para ações concretas ou envolve interesses econômicos.
Esta seção da conjuntura global de 2010, procura reunir as principais questões referentes à temática ambiental, com especial atenção à análise dos limites do modelo neodesenvolvimentista e às alternativas, quer pessoais, quer comunitárias, quer institucionais para fazer frente à crise ecológica e na proposição de um outro estilo de vida.
A crise ecológica é, possivelmente, a manifestação por excelência de uma crise bem maior, mais vasta, mais profunda e mais aguda, denominada crise civilizacional ou epocal, que reverbera nas crises econômico-financeira, ecológica, alimentar, energética e do trabalho. Acrescente-se ainda que o conjunto dessas crises vem acompanhado de uma crise ético-cultural, ou seja, não se trata apenas de uma crise ancorada nas relações de produção, mas também e sobretudo de uma crise do sentido humano que emerge nessa transição de século.
A crise civilizacional exige uma interpretação sistêmica. As várias crises estão interrelacionadas e requerem uma abordagem a partir do paradigma da complexidade, como propõe Edgar Morin. Trata-se de perceber que "não só a parte está no todo, mas também que o todo está na parte". Tudo está interligado, entrelaçado, e há uma interdependência entre as crises. Nossos problemas não podem mais ser concebidos como separados uns dos outros.
O planeta Terra dá sinais cada vez mais evidentes de esgotamento. Os sistemas físicos e biológicos alteram-se rapidamente como nunca antes aconteceu na história da civilização humana. Desde a publicação do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), em fevereiro de 2007, já não há mais contestação de que o responsável pela evolução acelerada da tragédia ambiental seja a ação antropogênica sobre a Terra. À época, o informe dos pesquisadores e cientistas foi categórico e não deixou espaço para dúvidas ao afirmar de forma contundente – o relatório utilizou a expressão "inequívoca" – que o aquecimento global se deve à intervenção humana sobre o planeta.
As pesquisas e os estudos avançaram desde a publicação do relatório do IPCC, e a situação do mundo daquela época já está claramente defasada. Estudo recente apresentado por pesquisadores afirma que alguns limites planetários já foram ultrapassados. Segundo o estudo, três dos limites já foram transgredidos: o aquecimento global, a extinção de espécies e o ciclo do nitrogênio. Outros quatro estão próximos: uso da água doce, conversão de florestas em plantações, acidificação dos oceanos e ciclo do fósforo.
Segundo o relatório Planeta Vivo 2008, divulgado pelo WWF, nosso consumo dos recursos naturais já excede em 30% a capacidade de o planeta se regenerar. Com outras palavras, a espécie humana já necessita hoje de 1,3 planeta para satisfazer suas necessidades e desejos de consumo. A "pegada ecológica" – indicador da pressão exercida sobre o ambiente está muito forte. A média é 2,2 hectares, mas o espaço disponível para regeneração (biocapacidade) é de apenas 1,8 hectare. Avançamos o sinal. Há quem diga que o estrago já foi feito e o ponto de retorno já passou. Na análise do ambientalista James Lovelock, Gaia – o organismo vivo que é a Terra – está com febre e se nada, e urgentemente, for feito esse quadro poderá evoluir para o estado de coma, ou seja, o equilíbrio planetário entrará em colapso.
É o tipo de desenvolvimento econômico implantado, especialmente, ao longo dos últimos dois séculos, baseado no paradigma do crescimento econômico ilimitado, na ideia de progresso infinito e na concepção de que os recursos naturais seriam inesgotáveis e de que a nossa intervenção sobre a natureza se daria de maneira neutra, que se encontra a razão do impasse que vivemos. Na origem da crise ecológica está o consumo desenfreado. O estilo de vida americano e ocidental – reproduzido em grande parte do continente latino-americano – não é compatível com as possibilidades do nosso Planeta. Veja-se, a título de exemplo, o paradoxo que representa o crescimento da classe média brasileira, tão festejado, mas que é ávida por consumir mais e mais, caminhando, dessa maneira, na contramão da história.
"Essa crise ambiental não veio do nada. Não foi desastre natural, foi causada por homens", diz Nicholas Stern. Quando se pensa que uma sociedade sustentável é aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas futuras, como define Lester Brown, percebe-se que o nosso modo de produção e de consumo está comprometendo a vida das futuras gerações, ou seja, estamos decidindo a sorte de quem virá depois de nós, deixando-lhes um mundo árido, poluído e feio. Emerge com intensidade crescente a consciência de que qualquer projeto radicalmente alternativo de sociedade não pode desconsiderar a questão ecológica.
Modelo econômico em xeque
No entanto, parece haver uma crônica dissociação entre a consciência planetária que vem se adquirindo acerca da problemática ambiental e o mundo dos políticos e, consequentemente, as políticas que deveriam ser implementadas. Isso se verifica, particularmente, no caso brasileiro.
Mais de uma vez temos chamado a atenção para o descompasso entre as potencialidades brasileiras em termos de implementação de um modelo de desenvolvimento econômico alternativo e as práticas políticas vigentes – mantidas e implementadas por convicção dos governantes de plantão e por pressão de poderosos interesses econômicos, com ramificações no governo e no congresso.
O modelo econômico brasileiro continua referenciado no modelo industrial clássico, que ainda não consegue incorporar o elemento ecológico ou ecossustentável. Esse não parece ser um limite apenas dos políticos, mas também de boa parte da intelectualidade brasileira.
O atual modelo pode ser descrito como neodesenvolvimentista ,e este modelo, evidentemente pela situação em que o Brasil se encontra hoje, tem vantagens que não podem ser negadas, como veremos mais adiante nesta análise. Entretanto, é cego – ou ao menos caolho – em relação à temática ambiental. E nisso reside o limite.
Uma manifestação disso foi o debate público eleitoral. Os projetos e os debates políticos sobre o Brasil que queremos ainda prescindem este aspecto da realidade nacional. O fato é que foi um tema esquecido. A temática ambiental ficou relegada e subordinada à agenda econômica. Pior ainda, a uma agenda dependente de um padrão de desenvolvimento fordista. O modelo de desenvolvimento, tão discutido em termos de seu crescimento econômico, não o foi em termos dos impactos ambientais e sociais, salvo exceções. Estudiosos insistem em ver tremendas potencialidades na questão ecológica e que serão a ponta de lança para uma sociedade sustentável. Ou seja, defendem que o Brasil poderia aproveitar os recursos naturais disponíveis para começar a sentar as bases para uma ecoeconomia. Mas, o desenvolvimento ganhou do meio ambiente nestas eleições.
O debate sobre a reforma do Código Florestal é outro sintoma da preponderância da visão economicista. O novo Código Florestal, se aprovado, pode representar um desastre ecológico, pois ameaça florestas e espécies. Além disso, prejudica os agricultores familiares, incentiva o desmatamento e amplia as anistias a produtores rurais. O parecer do deputado Aldo Rebelo, que inclui as modificações sugeridas, é tão favorável ao agronegócio, que este tem toda a pressa para aprová-lo o mais rapidamente possível. Por outro lado, tem a oposição de ambientalistas, cientistas e movimentos da sociedade. Como não foi aprovado em 2010, certamente a "bancada da motosserra’ retorna à carga em 2011.
Matrizes energéticas no centro do debate
Os atuais modos de produzir e de consumir são vorazes em termos energéticos. A civilização moderna é insaciável por energia. A necessidade de energia impostou-se no centro do desenvolvimento neste início do século XXI. Não há país no mundo hoje que não esteja às voltas com a questão energética, que tem hoje o potencial de estrangular qualquer economia. O mundo necessita sempre mais de petróleo, carvão, gás, eletricidade, energia nuclear e agora biocombustíveis.
As matrizes energéticas, via-de-regra, se produzem a partir de uma lógica concentrada e concentradora, além de serem reféns do gigantismo. Basta pensar aqui nas gigantescas estruturas para extração e refino de petróleo, nas hidrelétricas e usinas nucleares.
As matrizes energéticas centralizadoras, poluidoras e devastadoras do meio ambiente – tributárias da sociedade industrial –, apresentam enormes ameaças à biodiversidade e perigos à civilização humana, particularmente no caso da energia nuclear. Cabe alertar que essas matrizes energéticas pertencem cada vez mais ao passado, e o século XXI exigirá outras fontes de energia, renováveis e mais limpas.
A matriz energética brasileira apóia-se largamente no petróleo – e a depender das recentes descobertas do pré-sal esse uso perdurará ainda por muito tempo e contribuem para desviar o foco das atenções – e também sobre a eletricidade, proveniente das mega-hidrelétricas. Ainda que seja uma matriz energética menos poluente que o petróleo e o carvão e renovável, o modelo adotado em nosso país causa enormes impactos ambientais e sociais, com consequências que podem ser irreversíveis.
Neste aspecto, o Brasil, em vez de assumir a vanguarda no processo de descarbonização da economia, investe em matrizes energéticas já superadas. No afã de garantir energia para sustentar o crescimento econômico e o consumo – interno e para exportação dos produtos – o governo brasileiro passou a investir pesadamente na construção de novas hidrelétricas e na retomada do projeto nuclear.
Assim, as atenções se voltam para a nova fronteira energética – a Amazônia – ainda não explorada, mas que ao mesmo tempo se constitui em um paraíso e mina em termos de biodiversidade, cuja floresta é fundamental também para o equilíbrio das chuvas no centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, entre outras coisas.
Uma série de usinas hidrelétricas já está em construção ou em fase de licitação ou apenas sendo projetada para a região. Destacam-se as usinas dos Complexos Madeira (Santo Antonio e Jirau), Tapajós e Teles Pires.
Belo Monte. Símbolo de um modelo ultrapassado
Entretanto, a obra mais emblemática está projetada para o rio Xingu, no Pará: a Usina de Belo Monte, cujo início das obras está previsto para abril de 2011, um ano após o seu leilão. Ela é a maior obra de infraestrutura já realizada no país desde a construção da Itaipu Binacional e o terceiro maior empreendimento hidrelétrico do planeta, atrás apenas do projeto chinês de Três Gargantas e da própria Itaipu. O projeto impactará 11 municípios, nove territórios indígenas, desalojará milhares de pessoas e desmatará grandes áreas de floresta e secará parte do rio Xingu. Ela é considerada uma obra autoritária e perfeitamente dispensável por parte da sociedade civil.
Belo Monte é uma obra emblemática exatamente porque revela concepções de mundo diferentes. Como afirma o sociólogo Cândido Grzybowski, "o debate sobre a Usina Hidrelétrica de Belo Monte é, antes de tudo, um debate sobre o Brasil que queremos". Por um lado, insere-se no movimento do neodesenvolvimentismo, para quem, na melhor das hipóteses, a destruição da natureza é um mal não desejado, mas necessário para garantir crescimento, consumo e geração de empregos. Por outro lado, as reações de resistência, como veremos logo abaixo, se dão justamente em defesa de outro modelo de desenvolvimento, menos agressivo com o meio ambiente e mais respeitoso dos povos originários. Em última instância, é um debate sobre o Brasil que se quer.
Alternativas e protagonistas
Um amplo movimento – esparso, difuso, pessoal, comunitário ou institucional, ora mais descentralizado, ora mais coeso ou se articulando em rede – faz erguer mundo afora sua voz em defesa da consciência ecológica, de um outro modo de produzir e de consumir, que passa por um estilo de vida mais austero.
Há pessoas e campanhas que se dispõem e propõem dispensar o carro (Dia Mundial sem Carro), comer menos ou nada de carne (vegetarianismo, veganismo, Campanha Segunda-feira sem Carne...), ter hábitos mais saudáveis de alimentação (Slow Food), produzir alimentos agroecológicos, transformar o mundo pelas atitudes (ecoblogueiros), ter um estilo de vida baseado no Bem Viver e não no viver melhor. Há campanhas apelam à mudança pessoal de atitudes (faça a sua parte) e outras que buscam comprometer as lideranças mundiais.
Em 2010, houve a confluência inédita de três grandes campanhas mundiais em torno da chamada Campanha 10:10:10: a Campanha 10:10 Global (www.1010global.org), que surgiu em 2009 na Inglaterra com a Franny Armstrong, diretora do filme A Era da Estupidez, sucesso de bilheteria sobre as mudanças climáticas; o Dia Global de Soluções Climáticas ou "350"; e o Tempo para a Criação, uma iniciativa de oração e reflexão das Igrejas Cristãs.
Essa Campanha parte da constatação de que a aproximação do perigo que a mudança climática pode representar para a vida na Terra é momento propício – o kairós – para a ação. A vida tem o instinto de se manter viva. E há "instrumentos" que podem ser aproveitados para a "salvação" da vida. Evitar que isso aconteça é sinal de responsabilidade para com toda a criação. "Ali onde cresce o perigo também cresce a luta pela salvação", no dizer de Edgar Morin.
Há ainda um outro tipo de manifestação, de resistência à implantação das mega-hidrelétricas na região amazônica, empunhado especialmente pelos povos indígenas, que veem seus direitos fundamentais sendo violados. São eles os mais diretamente atingidos por essas obras e que, além disso, encarnam uma outra relação com a natureza. Para eles, preservar a floresta e sua biodiversidade é promessa da manutenção da suas vidas. Por isso se opuseram energicamente a esses projetos, que atendem especialmente interesses alheios a eles. Essa luta é travada juntamente com os povos amazônicos, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, pescadores contra hidrelétricas que estão em fase de construção ou anunciadas nos rios Madeira, Xingu, Tapajós, Teles Pires.
Também um religioso, especialmente, tem se destacado na oposição à proliferação das hidrelétricas na região: dom Erwin Kräutler, bispo de Altamira, no Pará. Referindo-se a Belo Monte, qualifica a de "monstruosidade" e indaga diante do tamanho da destruição: "O sangue derramado desse povo clama aos céus. O projeto desenvolvimentista do governo está sendo construído sobre os cadáveres dos indígenas. O que tem mais valor, as grandes obras ou a vida humana, a família?", pergunta Kräutler.
Prospectivamente, em 2011, a Igreja católica do Brasil propõe como tema para a reflexão e a oração, no contexto da Campanha da Fraternidade, as mudanças climáticas. Poderá ser uma ótima oportunidade para continuar o debate e a ação sobre este tema crucial para o futuro da humanidade e do planeta.
Política. Ciclo Lula. Do pós-Consenso de Washington ao modelo neodesenvolvimentista
O ano de 2010 encerra o ciclo de oito anos de Lula no poder. Eleito em 27 de outubro de 2002, a vitória de Lula – naquela que foi considera a primeira eleição brasileira pós-década neoliberal – foi saudada como a possibilidade de uma "refundação do Brasil’, o início de uma "Nova Era’ [n.1] e "uma reação ao Consenso de Washington’ [n.2]. Passados oitos anos do governo Lula assistiu-se de fato a uma "refundação do Brasil’? O governo Lula significou uma ruptura ao Consenso de Washington e inaugurou uma nova Era? O balanço dos oitos anos do governo Lula foi objeto de análise ao longo do ano em várias "Conjunturas da Semana’ postadas regularmente no sítio do IHU.
A nossa interpretação é a de que Lula não rompeu efetivamente com o neoliberalismo, porém, reorientou o modelo econômico em curso e reorganizou o capitalismo brasileiro transitando do Consenso de Washigton para um modelo que denominamos de neodesenvolvimentista. Quanto à inauguração de uma nova Era apenas o tempo dirá o papel de Lula na história brasileira, mas já indicativos que permitem a expressão Era Lula – contidos no fenômeno do lulismo.
A nossa interpretação é de que a primeira década do século XXI no Brasil será, provavelmente, identificada daqui a alguns anos como o período em que se processou a segunda revolução silenciosa no país. A primeira deu-se na Era FHC e significou o desmonte da Era Vargas – a brutal transferência de ativos do Estado para o mercado. Essa segunda revolução silenciosa – protagonizada pelo governo Lula – colocou em marcha a formação de uma nova maioria econômica e política.
No bojo da revolução silenciosa conduzida pelo governo Lula assistiu-se a uma reconfiguração do capitalismo brasileiro. Ao projeto econômico de corte neoliberal do governo anterior intitulado de "inserção subordinada à economia internacional’, o governo Lula respondeu com a retomada do modelo econômico "nacional-desenvolvimentista’, com significações semelhantes e distintas daquele adotado a partir dos anos 30, como veremos.
O modelo neodesenvolvimentista de Lula, como destacamos em várias análises ao longo de 2010, caracteriza-se por três vertentes: pelo Estado financiador que, utilizando o seu banco estatal, o BNDES, exerceu o papel de indutor do crescimento econômico fortalecendo grupos privados em setores estratégicos; pelo Estado Investidor responsável pelo investimento em mega-obras de infra-estrutura que se manifestou no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e pelo Estado Social – a retomada do papel do Estado como provedor de políticas sociais, sobretudo de mitigação da pobreza, dentre as quais o Bolsa Família é a mais emblemática.
A segunda revolução silenciosa que se processa no governo Lula caracteriza-se ainda pelo reposicionamento do Brasil na geopolítica mundial. Se no período FHC, a presença do Brasil no exterior era raquítica, viu-se a elevação do Brasil à condição de potência e sua transformação num global player. O país assumiu definitivamente o papel de nação estratégica – política e econômica – no continente latino-americano e fez-se ouvir nos grandes fóruns internacionais. De mero coadjuvante passou a importante protagonista nos debates de fundo da sociedade mundial.
Para uma melhor compreensão do caráter e significado da segunda revolução silenciosa protaganizada pelo Ciclo Lula no poder, destacamos em nossas análises o que difere e permanece do atual período em relação ao anterior.
Lula e o Pós-Consenso de Washington
O governo Fernando Henrique Cardoso passou para a história brasileira como o governo que imprimiu ao país o modelo econômico caracterizado pelo trinômio liberalização, privatização e desregulação. A Era FHC assumiu características de uma verdadeira revolução silenciosa. Os anos em que FHC governou foram os anos dourados do neoliberalismo, nos quais o capitalismo brasileiro passou por uma profunda reviravolta caracterizada pela brutal transferência de ativos do Estado para o mercado. Compreender esse período é importante para entender o caráter da nova revolução silenciosa em curso nessa década, agora sob a hegemonia finda do governo Lula.
A essência dos acontecimentos dos anos 90 exige o recuo para a década de 80. Os anos 80 foram considerados a década perdida na economia mundial. No Brasil a economia ficou estagnada, aumentou a recessão e o desemprego. Uma das propostas para se combater a crise econômica e retomar o crescimento foi apresentada num paper redigido por John Williamson [n.3] em 1989.
Neste documento, o economista listava algumas recomendações dirigidas aos países dispostos a reformar suas economias para voltarem a crescer. Entre os principais pontos recomendados destaca-se a adoção de uma rigorosa disciplina fiscal, a abertura comercial, a busca por investimentos estrangeiros e as privatizações. O conjunto dessas políticas conhecidas como o Consenso de Washington defendia na essência a retirada do Estado das atividades produtivas e a total liberdade ao mercado.
Cinco anos depois do lançamento do Consenso de Washington, em 1994, Fernando Henrique Cardoso assume a presidência do Brasil e adota com vigor a agenda do "Consenso’ e inicia uma "revolução silenciosa’ no capitalismo brasileiro. A reorganização do capitalismo brasileiro realizada no governo FHC significou uma ruptura com o modelo de desenvolvimento que se desenhou no país a partir dos anos 30 – a Era Vargas – no qual o Estado jogou um papel decisivo. A agenda fundada no período FHC se orienta pelo trinômio: abertura econômica, privatização e desregulamentação do Estado.
O PSDB impulsionou a metamorfose de um Estado empresário para um Estado regulador – na visão dos tucanos condição necessária para o retorno do crescimento econômico e para que o país pudesse se inserir de forma competitiva no mercado internacional. Em poucos anos promoveram-se alterações constitucionais significativas, a mais importante foi a reformulação do capítulo constitucional sobre a economia. O Estado deixou de ser o principal indutor da economia e delegou esse papel para o mercado.
Os anos 90 ficaram conhecidos como a década neoliberal e significaram a capitulação e a rendição ao receituário neoliberal, ou ainda, a vitória do mercado e do pensamento único. Os dois mandatos de FHC (1992-2002) aprofundaram as orientações do Consenso de Washington: desregulação do Estado, quebra de monopólios, venda de empresas estatais, tentativas reiteradas de desmonte da CLT. O país tornou-se o paraíso para investimentos internacionais que assumiram o filé mignon de setores estratégicos (finanças, telefonia, mineração, energia). Paralelo a esse processo de desfibração do Estado, os movimentos sociais passaram a ser criminalizados e desqualificados como forças reacionárias contrárias à modernização do país.
Os anos FHC redundaram em mais uma década perdida sob a perspectiva do crescimento econômico. O modelo econômico da inserção competitiva na economia internacional fracassou, revelou-se como integração passiva e foi derrotado nas eleições de 27 de outubro de 2002.
Com a chegada de Lula ao poder - vista mundo afora com enorme expectativa – aguardava-se a possibilidade de se trilhar outros caminhos à ortodoxia neoliberal e adoção de um projeto de nação de caráter nacional popular. Lula, porém, logo no início do seu governo em 2003, passa a sofrer enorme pressão exercida, sobretudo, pelo mercado financeiro.
Lula assume e dá um "cavalo-de-pau na economia" [n.4] ao inverso do que se esperava e radicaliza ainda mais a ortodoxia monetária. Por "cavalo-de-pau’, entenda-se o aumento da taxa de juros de 25% para 25,5% e depois 26,5%. O aumento do superávit primário de 3,5% para 3,75% e posteriormente para 4,25%, e cortes no orçamento no montante de R$ 14 bilhões que chegaram a atingir a área social. O "cavalo-de-pau’ foi dado com receio de que a crise econômica se agravasse com a inflação recrudescendo, o dólar a US$ 4,00 e o risco Brasil aumentando. Porém, ainda antes, o PT tratou logo de acalmar o mercado financeiro nomeando para a presidência do Banco Central, o banqueiro Henrique Meirelles (ex-presidente internacional do Banco de Boston). A indicação de Meirelles foi sinalizada em Washington (EUA) na primeira viagem de Lula aos EUA.
O PT, para justificar a guinada na política econômica, invocou a "Carta ao Povo Brasileiro’ [n.5]. O documento escrito às pressas, mas calculadamente nas eleições de 2002, reafirma o compromisso do governo Lula em honrar os pagamentos com os credores. Ficou evidente que a orientação político-econômica do governo Lula imprimida em seu governo foi a manutenção da macroeconomia do governo anterior, tendo como pilares a disciplina fiscal e monetária. Os sinais foram abundantes: aumento na taxa de juros, aumento do superávit primário, cortes no orçamento que atingiram a área social, renovação do acordo com o FMI, entre outros.
Essa guinada do PT na política econômica surpreendeu a muitos, inclusive instituições internacionais. Vinod Thomas, diretor do Banco Mundial para o Brasil na época, não escondeu sua admiração pelo novo governo: "nos primeiros meses, Lula mostrou, até mais que a ênfase no social, a responsabilidade macroeconômica".
A possibilidade de se juntar o social com a ortodoxia econômica passou a ser denominada de pós-Consenso de Washington. Nas palavras de Vinod Thomas, a definição: "Acho que já existe uma nova direção que considera os pontos do Consenso de Washington (ajuste fiscal, privatização, desregulamentação) como um componente específico dentro de algo mais amplo. A crítica que se faz é a de que o Consenso de Washington sozinho não é apenas insuficiente, mas contraproducente. Porque, se a parte social não muda, não se consegue nem as melhorias econômicas pretendidas pelo Consenso de Washington. Então o pós-Consenso de Washington, ou, para alguns, o novo Consenso de Washington, seria o social junto com a economia e a política, e não depois", disse o diretor do Banco Mundial.
É o que Lula fez nesses oitos anos, com distinções entre o primeiro e o segundo mandato. No primeiro viu-se uma prevalência no ajuste fiscal e monetário e, no segundo, passou-se a recuperação do papel do Estado. Manifestação do sucesso pós-Consenso de Washington é o fato de que Lula passou a ser citado como exemplo pelo FMI e pelo Banco Mundial e circulou com desenvoltura pelo Fórum Social Mundial e pelo Fórum Econômico Mundial (Davos).
Neodesenvolvimentismo. A reorganização do capitalismo brasileiro
O segundo mandato de Lula significou uma transição da subordinação dos ditames do Consenso de Washington – sem romper totalmente – para afirmação de um modelo onde o Estado recupera o seu papel protagonista. Esse modelo que chamamos em nossas análises de modelo neodesenvolvimentista significou também uma reorganização do capitalismo brasileiro. Como destacamos anteriormente, o neodesenvolvimentismo de Lula fez-se através de um tripé: Estado financiador; Estado investidor e Estado social.
A síntese do Estado-financiador é descrita por Luciano Coutinho, presidente do BNDES: "Empresas brasileiras competentes e competitivas devem merecer o apoio do BNDES para se afirmarem internacionalmente". No jargão econômico, o BNDES elege os seus "campeões nacionais" e joga pesado para torná-los competitivos. Nessa perspectiva, a principal característica do capitalismo brasileiro hoje é a ativa participação do Estado na constituição de novos "global players’ em diferentes ramos da atividade econômica.
Na telefonia, na petroquímica, na alimentação, papel e celulose, entre outras áreas, o governo articulou a entrada do BNDES e dos Fundos de Pensão para viabilizar corporações nacional de capital privado com capacidade de disputa no mercado internacional. Também no setor sucroalcooleiro o governo financiou pesadamente usinas para a produção do etanol; apenas nesse, o banco estatal de fomento identificou 89 projetos de novas unidades, das quais 51 já estão em andamento.
O governo realizou ainda aporte de recursos regulares na Vale do Rio Doce e Embraer, entre outras. A lógica, como destacado anteriormente, é o da criação de empresas nacionais fortes, competitivas, com escala de produção suficiente para lhes dar um papel relevante no mercado mundial.
Sobre a ação do BNDES, poder-se-ia dizer que Lula reedita o governo Vargas e JK. Porém, atente-se para o fato de que o nacional-desenvolvimentismo praticado pelo governo Lula é distinto do praticado na Era Vargas. No período anterior, os investimentos realizados pelo Estado constituíram a formação de um capital produtivo sob o controle do próprio Estado. Foi assim que surgiu a CSN, a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobras, a Eletrobrás, o sistema Telebrás. Foram essas empresas que possibilitaram a modernização – conservadora – do país e o alçaram a uma das potências econômicas mundiais. O nacional-desenvolvimentismo de Lula mudou de coloração. Ele presta-se antes de tudo ao fortalecimento do capital privado. Trata-se do capitalismo sem risco, em que o governo banca o "negócio".
Ao lado do "Estado financiador’ na criação e/ou fortalecimento de grupos de capital privado nacional, o governo Lula apostou em outra vertente do nacional-desenvolvimentismo, através do "Estado investidor’. A vertente do "Estado investidor’ se manifestou no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – um conjunto de grandes obras de infra-estrutura para alavancar o crescimento econômico do país. Entre as principais, encontra-se a construção de hidrelétricas – Belo Monte; Santo Antônio e Jirau –, a transposição do Rio São Francisco, a retomada do programa nuclear, a construção e/ou duplicação de rodovias, como a polêmica BR 319. Há ainda investimentos em ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos, saneamento e habitação popular.
Ao lado do Estado financiador e investidor, o modelo neodesenvolvimentista de Lula retomou o papel do Estado como indutor da mitigação da miséria e da superação da desigualdade. Incluem-se aqui uma série de programas, dentre os quais, o mais emblemático é o Bolsa Família.
Lulismo. Um projeto sem rupturas e pluriclassista
A segunda revolução silenciosa também tem outra faceta: a política. A chegada do PT ao Estado não significou rupturas com o status quo anterior. Pelo contrário, poder-se-ia afirmar que o PT no poder desconstruiu a hegemonia – no sentido gramsciano – que anteriormente conquistou na sociedade.
O modelo neodesenvolvimentista conduzido por Lula não significou uma ruptura com os setores grão-burgueses nacionais e transnacionais. O capital produtivo e financeiro, o agronegócio, os banqueiros, os empreiteiros continuaram estão entre os maiores ganhadores no período. Lula conduziu o modelo neodesenvolvimentista de forma pluriclassista.
Na análise do sociólogo Werneck Vianna, Lula evoca o Estado Novo do período getulista. "Qual foi a operação que o Estado Novo getuliano fez? Exatamente esta: tudo o que era vivo na sociedade ele trouxe para si. Tal como agora. Trouxe para si e, de cima, formula políticas para a sociedade", diz ele. Segundo o sociólogo, "um governo que absorve as representações corporativas de trabalhadores e empresários, com um chefe de Executivo carismático a mediar interesses conflitantes, fortalecido pela crescente centralização do Estado". "Ele [Lula] tem força, carisma, para segurar essa colcha e essa federação é boa para todos".
A força de Lula substituiu o debate programático, fragilizou o PT e deu origem ao denominado fenômeno lulismo.
Dentre as várias análises, interpretações e explicações do que vem a ser o lulismo, reproduzimos, em análises desse ano, uma síntese do ensaio de André Singer intitulado "Raízes sociais e ideológicas do lulismo".
Na essência, o lulismo caracteriza-se pela forte ligação dos pobres com a figura de Lula. Singer utiliza a categoria marxista subproletariado. Segundo ele, subproletários são aqueles que "oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais". Estão nessa categoria "empregados domésticos, assalariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores destituídos das condições mínimas de participação na luta de classes". Em síntese, o subproletariado, reúne aqueles que se encontram em condição inferior aos assalariados, são os mais pobres entre os pobres.
Na análise do cientista político, é essa fração de classe que não consegue construir desde abaixo as suas próprias formas de organização porque está atomizada do sistema produtivo, que está na base do fenômeno denominado lulismo. Segundo André Singer, os mais pobres não votaram em Lula em 1989, 1994, 1998 e 2002. Não votaram, sobretudo porque ficaram com medo, porém em 2006 votaram em massa em Lula. Nesse sentido, diz Singer, o ponto de inflexão da emergência do lulismo se manifesta com força nas eleições de 2006.
Em 2006, afirma Singer, "houve um deslocamento subterrâneo de eleitores não de baixa renda, mas de baixíssima renda, o qual passou despercebido". Os mais pobres, contrariamente ao que fizeram nas eleições anteriores, sufragaram Lula em peso. "É verdadeira a interpretação de que o Brasil eleitoral se dividiu entre pobres e ricos nas eleições de 2006", afirma ele. Nas eleições de 2006, Lula coroou um processo iniciado no seu primeiro mandato que selará sua profunda identificação com os mais pobres. Identificação que "pode ter fincado raízes duradouras no subproletariado brasileiro", diz Singer.
O "pulo do gato" de Lula, que dará forma e conteúdo ao lulismo, diz Singer, "foi sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos". Ou seja, "a sensação de eleitores de renda baixa e média de que o seu poder de consumo aumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos, material de construção), seja em novos (celulares, DVDs, passagens aéreas)", na análise de Marcos Coimbra, diretor do Instituto Vox Populi, citado por Singer.
Na base desse sentimento de inclusão social e responsável por ele, encontra-se a porção social do governo Lula: o Programa Bolsa Família, o controle dos preços (cesta básica), o aumento real do salário mínimo, o crédito consignado, a ampliação de empréstimo a agricultura familiar, o microcrédito e a bancarização de pessoas de baixíssima renda e a ampliação do Beneficio de Prestação Continuada. Somado a tudo isso, têm-se ainda a ativação de setores antes inexistentes na economia (por exemplo, clínicas dentárias para a baixa renda), uma série de programas focalizados, como o Luz para Todos (de eletrificação rural), regularização das propriedades quilombolas, construção de cisternas no semi-árido. É o conjunto dessas políticas, diz Singer, que Marcelo Neri chama de "o Real de Lula", numa alusão ao Plano Real que deu a reeleição a FHC em 1998, que dá força e consolida o lulismo.
Associado aos aspectos anteriores destaca Singer, "convém lembrar que Lula é o primeiro presidente que viveu a experiência da miséria, o que não é irrelevante, dada a sensibilidade que demonstrou, uma vez na presidência, para a realidade dos miseráveis. Por isso, é plausível a tese de Francisco de Oliveira de que a eleição de 2006 comprova ter Lula se elevado "à condição de condottiere e de mito’". Também nesse sentido, analisa Singer, "tais ações colocam Lula à frente de um projeto, que é compatível com aspectos de sua biografia".
Os pobres atomizados pela sua inserção no sistema produtivo necessitavam de alguém que pudesse, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações. E aqui surge o lulismo, "um raio em céu azul, uma vez que surge de cima para baixo, sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organização autônoma das classes subalternas quando ela se dá nos moldes típicos do século XIX, isto e, dos partidos e movimentos de classe", destaca Singer. Assiste-se, portanto, a partir de 2006 a um realinhamento eleitoral – um movimento profundo, que se deu sem mobilização e sem fazer-se notar – no qual os mais pobres que antes rechaçavam Lula, passam a votar nele e no PT.
Registre-se que as eleições de 2010 referendam a hipótese de Singer que o Brasil vive um realinhamento eleitoral, ou seja, as classes médias tradicionais, que estiveram na origem do PT, reagiram à emergência de uma nova classe média, saída da combinação de políticas de transferência com políticas de distribuição de renda, e engrossaram as fileiras do candidato tucano, José Serra. Em compensação, as bases petistas foram fortalecidas por pessoas que foram puxadas para cima da linha de pobreza. São, portanto, os pobres que se identificam com Lula e suas políticas sociais e os setores que ascendem para a classe média que darão os milhares de votos que elegerão Dilma.
As conclusões de André Singer apontam a essência do lulismo como uma representação do subproletariado sem a necessidade de rupturas. "Em que pese, diz Singer, o sucesso do PT e da CUT, a esquerda não foi capaz de dar a direção ao subproletariado, uma fração de classe particularmente difícil de organizar. O subproletariado, a menos que organizado por movimentos como o MST, tende a ser politicamente constituído desde cima, como descobriu Marx a respeito dos camponeses da França em 1848. Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações".
Segundo Singer, "diferentemente da experiência peessedebista, o "Real de Lula’ veio acompanhado de uma mensagem que faz sentido para os de menor renda: pela primeira vez o Estado brasileiro olha para os mais frágeis e, portanto, se popularizou. Essa é a razão pela qual o presidente insiste que "nunca na história deste país… etc. etc.’. Irritados, os supostos "formadores de opinião’ não percebem que Lula não está se dirigindo a eles e insistem na tecla de que a história não começou com Lula, o que é verdade, mas ouvido vários degraus abaixo, o bordão adquire outro sentido".
Aos poucos Lula consolida-se como a grande liderança dos setores populares e vai se tornando quase uma unanimidade, ao ponto de se constituir como um "árbitro acima das classes". Na análise do sociólogo Werneck Vianna, Lula "(...) é um governo que absorve as representações corporativas de trabalhadores e empresários, com um chefe de Executivo carismático a mediar interesses conflitantes, fortalecido pela crescente centralização do Estado". O lulismo tem um que de conciliador de classes, afirma.
O fenômeno do lulismo na política associado ao modelo econômico neodesenvolvimentista está na origem da vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2010, ou seja, Lula apostou e transformou Dilma em uma candidatura competitiva e vencedora, conseguiu algo pouco comum no mundo da política que é a transferência de votos. Essa vitória política, entretanto, não pode ser dissociada do modelo econômico que alavancou o crescimento econômico e deu sustentação ao projeto político.
Tudo indica que o governo Dilma Rousseff será uma continuidade do Ciclo Lula, particularmente no que tange ao modelo econômico neodesenvolvimentista. As nomeações dos nomes da área econômica são um indicativo de que não haverá mudanças de rota substanciais no modelo econômico.
Economia 2010. Crise econômica internacional não se esgotou
A crise econômico-financeira que estalou nos Estados Unidos em agosto de 2007 e confirmou-se com a quebra do Lehman Brothers em setembro/2008 arrastando o mundo para uma recessão e levando milhares ao desemprego, deu sinais em 2010 que não se esgotou e continua provocando estragos. Considerada a mais grave crise econômica mundial desde 1929, os prognósticos de que os seus efeitos se fariam sentir por muito tempo parecem se confirmar.
Em 2010 assistiu-se a duas manifestações latentes, entre outras, dos efeitos dessa crise: a crise da zona do Euro e a guerra cambial.
A crise da zona do euro prolongamento da grande crise que se iniciou em agosto de 2007, a crise da zona do Euro, desatada pelos acontecimentos na Grécia, recolocou na agenda mundial o embate sobre a regulação versus livre mercado. O choque de fundo que se manifesta na zona do Euro é essencialmente sobre a forma de organizar a economia e a sociedade – um embate entre os fundamentos do neoliberalismo e o Estado de Bem-Estar Social – o "modelo social europeu".
A crise da zona do Euro foi tema da revista IHU On-Line - edição n. 330, "A crise da zona do euro e o retorno do Estado regulador em debate".
A origem da crise da zona do Euro, que teve seu epicentro na Grécia, tem a ver com o ingresso do país na Comunidade Econômica Europeia (CEE). Como todo país que ingressou no euro, a Grécia teve que, além de cumprir uma série de metas fiscais, monetárias e financeiras, renunciar à possibilidade de emitir sua própria moeda. Esse privilégio ficou nas mãos do Banco Central Europeu (BCE), entidade supranacional que funciona como um banco central independente.
O BCE tem como uma de suas regras não financiar déficits fiscais dos Estados membros. Logo, os países ficam seriamente restringidos em suas políticas econômicas pela dificuldade de obter créditos. Encontrar-se-iam nessa situação os chamados países denominados PIIGE (anagrama para Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha).
O mesmo não ocorre, por exemplo, com países que também estão na zona do Euro, mas que optaram por continuar com moeda própria. É o caso da Inglaterra. A Grécia violou a regra da zona do Euro de que o déficit orçamentário não deveria ultrapassar 3% do PIB do país. Outros países já violaram. Na Grã-Bretanha que, como se disse, não está na zona do euro, esse déficit chega a 13% do PIB. Na Espanha ele chega a 11,2%, na Irlanda a 14,3% e na Itália a 5,3%. O problema da Grécia está no fato de que os seus pares da CEE não enxergam nela forças para sair do "buraco".
A receita foi dura: cortes salariais, prolongamento do tempo de trabalho e adiamento das aposentadorias, aumento de tarifas e impostos. A sociedade grega explodiu em manifestações. Ironicamente, a Grécia, ao procurar abrigo na solidez da zona do Euro, encontrou a tragédia. Na opinião de Sami Naïr, "a Europa de Bruxelas e do Banco Central escolheu a saída da crise com a recessão, o desemprego, a deflação salarial e não com uma estratégia keynesiana de criação massiva de empregos e de uma política europeia solidária de crescimento compartilhado". Segundo o economista, a Grécia é apenas o primeiro elo da corrente e um "teste" que põe à prova a solidariedade e a capacidade da resistência europeia.
Toda a zona do Euro passou a correr risco como se assistiu nas mega-manifestações do final desse ano. A tal ponto que o prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, chegou a anunciar que o desfecho da crise poderá até resultar no fim do Euro. Algo semelhante pensa o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, para quem "o euro está enfrentando uma crise estrutural que não põe em jogo a União Europeia, mas põe em risco sua própria existência. Dependendo de como se desenrolar a crise, alguns países poderão voltar a suas moedas nacionais ou, o que é mais grave, o euro poderá se tornar inviável para todos".
Na análise de Timothy Garton Ash a receita pode ser amarga. Segundo ele, "ou a zona do euro avança para uma união fiscal, com maior perda de soberania para os Estados-membros e reduções drásticas de déficit impostas por essa limitação externa, ou alguns Estados-membros mais fracos dão o calote, seja dentro da zona do euro ou abandonando-a por completo. Nesse ponto, o capital foge, ainda mais do que já está fazendo, do fraco para o forte: isto é, da zona do euro para algum outro lugar e, dentro da zona do euro de hoje, para a Alemanha".
Essa é uma alternativa, de corte conservador. A outra, é a zona do Euro reorientar sua política econômica comum e "deixar que o neoliberalismo morra com o euro", como diz Marshall Auerback, analista econômico dos EUA e membro conselheiro do Instituto Franklin e Eleanor Roosevelt. Segundo ele, "o cúmulo da ignorância econômica é propor a destruição dessa rede de seguridade social a partir de uma extrapolação das lições equivocadas proporcionadas pelos problemas particularíssimos em que a própria Zona do Euro se meteu".
A IHU On-Line que abordou a crise do Euro ouviu ainda vários pesquisadores sobre a ameaça ao Bem-Estar Social. Os entrevistados abordaram que tipo de capitalismo sairá da crise, se um capitalismo mais regulado e sob o controle da sociedade mantendo as conquistas do Welfare State ou se um capitalismo desgarrado de quaisquer mecanismos de contenção.
A guerra cambial
A "guerra cambial" é outro desdobramento da crise econômica mundial de 2008 que estorou em 2010, que dá força às teses, como dissemos anteriormente, aos que afirmavam que as consequências dessa crise se fariam sentir por muito tempo. A essência da "guerra cambial" está relacionada à excessiva liquidez de dólares no mundo e às resistências da China em valorizar a sua moeda. Trata-se, portanto, de uma guerra de gigantes como destacou o economista Guilherme Delgado em entrevista à IHU On-Line.
No esforço do pós-crise de 2008, os Estados Unidos derrubaram a taxa de juros para estimular a retomada da economia provocando a desvalorização forte do dólar frente às demais moedas e inundando o mercado internacional de recursos. Os americanos estão inundando o mundo com dólares para cobrir os rombos de seus déficits e estão se lixando com os estragos que provocam.
Como na crise economica mundial, a lógica dessa movimentação tem por detrás o poder e os interesses do mercado financeiro. Segundo o economista Pedro Rossi, pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp (Cecon), "assistimos a subordinação das trajetórias cambiais às decisões de agentes financeiros".
O economista destaca que "o mercado internacional de moedas, conhecido também como Forex (foreign exchange market), é o mais líquido do planeta. Nele negociam-se em torno de US$ 4 trilhões por dia, segundo o Banco para Compensações Internacionais (BIS). Esse montante desmedido excede com folga as necessidades reais da economia: em 15 dias, o mercado de moedas transaciona o equivalente ao PIB mundial no ano todo; ou ainda, em cinco dias, todo o estoque de ações. Trata-se de um mercado que negocia, além dos fluxos de comércio e serviços, o estoque de riqueza global, mudando constantemente a forma de sua denominação monetária".
Esse mercado joga, diz o economista, com "uma estratégia financeira que busca usufruir o diferencial de juros entre duas moedas, onde se assume um passivo ou uma posição vendida na moeda de baixos juros e, simultaneamente, um ativo ou uma posição comprada na moeda de altos juros". Em síntese, diz Pedro Rossi, "há algum tempo assistimos a um processo de subordinação das trajetórias cambiais às decisões de portfólio dos agentes financeiros. Esse processo gera a descolagem da trajetória das taxas de câmbio em relação aos fundamentos econômicos".
O mercado financeiro, portanto, tem interesse na guerra cambial ou na "guerra global de moedas", para utilizar a expressão de Mantega, e especula nesse cenário. A guerra cambial, portanto, é um tema complexo. Situa-se no contexto da crise econômica mundial hegemonizada pelo mercado financeiro e é estimulada por políticas protecionistas dos Estados-nações. A longo prazo apenas será debelada a partir de um nova concertação mundial do tipo Bretton Woods, algo difícil de se construir. Até lá os solavancos na economia mundial continuarão e assistiremos a um "salve-se quem puder", onde cada país utiliza as armas que tem e que pode para proteger sua economia.
A guerra cambial apresenta reflexos diretos à conjuntura econômica brasileira, particularmente no que concerne aos riscos de aceleração da desindustrialização no país, como veremos à frente.
G.20 – Ignorando as razões da crise
2010 também foi o ano que confirmou que as lições da crise econômico-financeira foram ignoradas e que o jogo continua sendo jogado da mesmíssima maneira. Essa é a principal conclusão a que se pode chegar sobre o encontro do G20 ocorrido em meados desse ano em Toronto (Canadá) – o encontro das nações mais ricas do mundo – antigo G7 – somado aos países emergentes teve como pano de fundo a crise econômica mundial, e, particularmente a crise do euro. Na pauta do encontro: a crise e a reforma financeira mundial. Na esteira da crise mundial provocada pelo sistema financeiro, um dos temas em debate dizia respeito à adoção de possíveis mecanismos de controle e taxação sobre transações financeiras.
Os resultados do encontro foram pífios, as expectativas do anúncio de medidas de controle sobre o sistema financeiro frustraram. O G20 revelou mais uma vez mais absoluta incapacidade de coordenar decisões políticas de controle sobre o capital. Não houve nenhuma decisão concreta. Pior ainda, as recomendações do G20 são contraditórias ao afirmar, por um lado, que é preciso buscar a recuperação econômica e, por outro, sugerir metas ousadas de redução do déficit, o que significa cortes de investimentos, principalmente na área social.
Considerando-se os estragos mundiais provocados pela crise econômica, ganhou força a percepção de que alguma coisa estava profundamente errado no sistema econômico e algo precisava ser feito. Chegou-se a afirmar que talvez um ciclo do capitalismo pudesse estar próximo do seu encerramento. Entre tantas constatações, destacava-se que após décadas de neoliberalismo, o mito dessa corrente econômica caia por terra e que a tese de um mercado auto-regulado é uma falácia; assegurava-se da urgente e indispensável regulação do mercado financeiro e asseverava-se da importância do papel do Estado como um instrumento importante para se colocar freios na voragem do capital.
Na oportunidade, as bandeiras de luta do movimento antiglobalização, da necessidade de controle do capital financeiro – que ganhou corpo ao longo das edições do Fórum Social Mundial (FSM) – passaram até mesmo a serem assumidas por ministros das finanças de todo o mundo e pelos organismos multilaterais, como o Banco Mundial e o FMI.
Na época, criou-se unanimidade – no G20 - de que os governos tinham que agir para evitar uma séria depressão. Unanimidade essa que se traduziu em pacotes bilionários para o mercado financeiro não quebrar. Essa unidade entretanto acabou quando se trata de discutir controles de regulação sobre esse mesmo mercado. O G20 mostrou-se rápido em salvar o capitalismo e, incapaz de colocar freios nesse mesmo capitalismo.
Brasil. Um país imune à crise mundial?
Ao longo de 2010, frente à crise do euro e a guerra cambial, Lula não cansou de repetir que o país foi o último a sentir os efeitos da crise mundial e o primeiro a sair dela. Com a crise do Euro e a guerra cambial, o governo repetiu o mesmo bordão, de que os fundamentos da economia brasileira são sólidos e não há o que temer. Com crecimento de 7,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010, o país sente-se blindado. Esse discurso, porém, é para o "público". São evidentes as preocupações do governo com os desdobramentos da crise do euro e da guerra cambial.
A crise da zona do Euro e a guerra cambial indicam em seu interior contradições que o Brasil também vivencia. As crises revelam o choque entre políticas de Estado e de mercado. A própria Dilma tem emitido sinais trocados sobre esse tema. Ora, afirma que pretende um estado mais desenvolvimentista, ora sinaliza que manterá o rigor do tripé câmbio flutuante, meta de inflação e disciplina fiscal.
Particularmente, a guerra cambial reascendeu um debate permanente na sociedade brasileira, particularmente nas hostes econômicas: o risco da desindustrialização.
Os sinais dos últimes meses do ano indicam um lento processo de desindustriaização. Em novembro, a indústria de transformação apresentou o primeiro saldo negativo do ano na contratação de novos empregos na indústria. O saldo negativo foi de 9.139 vagas. O Instituto para o Desenvolvimento Industrial – Iedi em seu comunicado de novembro alerta: "Vale observar que a indústria contribuiu com um percentual de novos postos de trabalho (fluxo) muito menor do que a sua participação (16,6%) no estoque total de trabalhadores em novembro, o que significa que, relativamente, ela encolheu".
Lawrence Pih, empresário e membro do Conselho Superior de Economia e do Conselho Superior Estratégico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), e um dos primeiros apoiadores do PT ainda nos anos 1980, sobre os riscos da desindustrialização destaca que "em 1993, o País exportava 62% de manufaturados e hoje exporta 41%. Já a participação das matérias-primas na pauta de exportações aumentou de 20% para 43%. Estamos importando todos os bens manufaturados com grande grau de tecnologia. A desindustrialização já está acontecendo".
Na opinião do empresário, "basta olhar para nossa pauta de exportação. Suco de laranja e açúcar refinado entram na pauta de produtos manufaturados. São números disfarçados, porque não passam de commodities", diz ele. Lawrence Pih comenta que "o Brasil exporta celular e não tem fábrica de semicondutores. Somos só um centro de montagem".
Na análise de David Kupfer, especialista em política industrial, em recente entrevista ao IHU, "embora a economia brasileira tenha crescido mais do que a média mundial em 2010, a indústria perdeu participação no PIB. Segundo Kupfer, isso acontece porque a economia brasileira está atraindo produção internacional, o que gera um acirramento da competição pelo mercado interno. Além do mais, a desvalorização do dólar favorece as importações e as empresas nacionais compram cada vez mais insumos no exterior. "Na medida em que a economia cresce, as empresas comprarão mais do exterior ao invés de produzir no Brasil. É esse o problema que coloca o país em uma fase de transição em que, ou vai haver uma mudança estrutural na indústria – na qual ela irá mudar a sua pauta de produtos –, passará a ser mais sofisticada do ponto de vista tecnológico, conseguindo escapar das commodities para a produção de bens elaborados ou, então, haverá uma penetração crescente de importações e um recuo da produção brasileira".
Segundo ele, é urgente desatar o nó cambial para fazer frente à guerra cambial e retomar a competitividade da indústria brasileira.
O debate em torno da desindustrialização tem sido recorrente no sítio do IHU e nas revistas IHU On-Line. A IHU On-Line – edição 338 intitulada Economia brasileira. Desafios e perspectivas, editada em agosto desse ano retoma esse debate. Na revista não há consenso entre os economistas sobre uma eventual desindustrialização ou não no país. Mansueto Almeida, Regis Bonelli, Fernando Sarti, e Fernando Ferrari Filho avaliam que não há desindustrilização, porém, os economistas Julio Gomes de Almeida, Carlos Lessa, Reinaldo Gonçalves, e José Luis Oreiro consideram que há um processo de desindustrialização em curso na economia brasileira.
Dilma Rousseff já demonstrou preocupação com o processo de desindustrialização do país, entretanto, pelas escolhas e declarações, o governo está sinalizando, com muita clareza, que não irá produzir descontinuidade na política macroeconômica em curso no país. A mesma continuará sendo de disciplina macroeconômica, apoiada em um tripé que envolve superávit primário, política de metas de inflação e câmbio flutuante. Resta ver como o rigor fiscal irá compatibilizar com a retomada de uma política industrial.
A explosão do consumo e a emergência de uma nova classe média
2010 foi o ano que confirmou a vigorosa mobilidade social no Brasil. Milhares ascenderam socialmente, melhoraram a sua renda e passaram a consumir mais. Cientistas políticos, sociólogos e economistas falam do nascimento de uma nova classe média brasileira – a classe C, a mesma que assegurou a vitória de Dilma Rousseff.
Segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), 22,7 milhões de brasileiros mudaram de patamar de renda, sobretudo, nos últimos cinco ou seis anos. Os dados são do economista e pesquisador do Cesit/Unicamp, Waldir Quadros em entrevista à IHU On-Line. A maior movimentação na mobilidade aconteceu na base da pirâmide, entre os miseráveis e a massa trabalhadora que ascenderam e deram robustez à classe C – estrato social que percebe, segundo a PNAD, entre de R$ 700,00 a R$ 1.750,00 – renda individual.
Assiste-se a uma grande mobilidade social da base da pirâmide para cima na sociedade brasileira. "Os "de baixo’ estão subindo, mesmo que os "de cima’ não estejam descendo", diz Andre Singer em entrevista à IHU On-Line. Segundo ele, "vemos essa reação, por exemplo, em relação a ter muitos carros nas ruas, a ter muitas pessoas que nunca viajaram de avião e que agora estão nos aeroportos, etc". Singer comenta ainda que até os mais pobres sentem-se beneficados por esse fenômeno. Diz ele: "Em relação àquelas camadas do subproletariado que ainda não passaram para essa condição de classe C, penso que, como dizia o professor Albert Hirschman, a fila começou a andar. Às vezes não é a sua fila, mas a fila do lado. E daí vem a sensação de que a sua fila também vai começar a andar daqui a pouco".
O sociólogo Rudá Ricci vislumbra ineditismo na emergência dessa nova classe média brasileira. Segundo ele: (...) "Na primeira década do século 21, praticamente 24 milhões de pessoas são alçadas à condição de classe média no Brasil. Esta é uma situação inédita na história do país e só encontramos algo similar nos Estados Unidos, na década de 1950, depois da Segunda Guerra Mundial".
Segundo Ricci, "essa nova classe C, que ganha entre 4 e 10 salários mínimos – pensando na renda familiar e não individual – rompe com o histórico de pobreza. São pessoas jovens, com até 25 anos, magras e negras. Eles romperam portanto com a história dos pais, dos avós, dos bisavós e, por isso mesmo, consomem muito, porque querem se afastar a qualquer custo, como faria qualquer pessoa no lugar deles, do histórico de marginalidade que sempre existiu".
A irrupção dessa nova classe média se dá, sobretudo, a partir de 2002 com o crescimento da economia brasileira. Pesquisas do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) já antecipavam esse movimento. Ambas as pesquisas foram publicadas em 2008 e destacavam que aos poucos o Brasil tornava-se um país de classe média.
Nova classe média e lulismo
A nova classe média está associada ao lulismo e ao modelo neodesenvolvimentista como já destacado anteriormente. Há um debate intenso na "academia", mas não apenas nela, sobre a relação do lulismo com a nova classe média.
Acerca da emergência da nova classe média brasileira – a classe C, vale destacar que há estudos que indicam que a mesma é conservadora, políticamente, socialmente e religiosamente. Na opinião do sociólogo Rudá Ricci, os valores que orientam a nova classe média "são conservadores e individualistas". Segundo ele, essa nova classe média é "refratária a mobilizações sociais, ao espaço público, não seguem líderes (daí não aceitar a tese de André Singer de que o lulismo é uma vertente do bonapartismo) e sente que está sendo incluída no país pelo consumo". Rudá Ricci avalia que "formam um caldo de cultura popular muito conservador, que não gosta de confronto, de rupturas, da agenda de direitos civis" e ainda "tratam da fé como instrumento de negociação para o sucesso pessoal e familiar".
Em outra entrevista, Rudá Ricci comenta que a nova classe média "é muito consumista, espantosamente consumista (...) e tem muito receio de cair de novo, por isso não vota em candidatos que signifiquem ruptura, que demonstrem alguma tendência de mudar a ordem pública (...) Só votam em quem garante a ascensão social, ou seja, querem garantias de que vão continuar comprando e que vão pagar as dívidas (...) e a segunda característica é que eles não votam em quem propõe ruptura. E nesse sentido, o Lula cai como uma luva para esses anseios. Mas não como idolatria, é fundamental dizer isso. Lula combina com esse pensamento pragmático da ascensão social e da manutenção da ordem vigente", afirma Rudá.
É nessa perspectiva – receio de rupturas que ameaçem o seu novo status quo – que se explica politicamente o voto em Lula e posteriormente em Dilma dado pela nova classe C: "Eles sabiam que estavam votando num projeto que assegurava a ascensão da família", diz Rudá Ricci.
Na opinião do sociólogo a nova classe média – assim com a "antiga" classe média – é religiosamente conservadora. Segundo ele, "são famílias egocêntricas. Por exemplo, vão à igreja para conseguir o sucesso, por isso fazem muitas novenas e promessas. A religião é usada como uma estratégia de garantia e de estratégia da família".
Diz ele: "Eu mesmo coordenei uma pesquisa com os católicos praticantes e isso ficou muito claro. É o que estamos chamando de religiosidade privada, de se trabalhar a fé a partir de si e da sua família. A votação no final do 1º turno, com dados muito duros de crítica, ligadas à candidatura de Dilma, como a questão do aborto e do casamento de homossexuais, foi a primeira emergência pública política desse conservadorismo fundamentalista religioso no Brasil. Eu acho que surgirá nos próximos anos o primeiro movimento social de massa, de base, depois do regime militar, ultraconservador no Brasil. E eles vão definir as próximas eleições".
Na entrevista à IHU On-line, Rudá Ricci considera que a origem desse conservadorismo é o ressentimento: "Algo que Richard Sennett já havia esboçado teoricamente no livro O Declínio do Homem Público. O ressentimento se dá contra toda estrutura pública (incluindo as autoridades) que sempre a relegaram à pobreza. Nunca leram, coisa de ilustrados que sempre os humilharam. Só acreditam em sua família e nos grupos íntimos. E acredita que chegou sua vez. Enquanto o lulismo lhe garantir este consumo, o apoiará. Mas o conservadorismo é maior que o apoio a um político. O que cria um campo de tensões e uma espécie de bomba relógio (que já explodiu com o Tea Party , nos EUA e no movimento de classes médias da Espanha). Veremos se Dilma conseguirá desarmar ou ao menos lidar com esta bomba de efeito retardado, latente".
Rudá Ricci conclui: "Creio que vai surgir no Brasil, a exemplo do que ocorre nos EUA e na Espanha, um movimento de classe média ultraconservador que já apareceu no final do primeiro turno. Nós já temos o discurso e a liderança e, por isso, é bem provável que no final do governo Dilma apareça um movimento social deste tipo. A Igreja ultraconservadora voltará a ter força no Brasil".
Movimento social. A agenda esquecida, as lutas e a agenda emancipatória
Os movimentos sociais vivem uma profunda crise e estão longe de exercerem o protagonismo dos anos 1980 e 1990. O "imaginário de transformação social" que embalou os principais movimentos sociais e as principais lutas nos anos 1980 se perdeu. A convicção de que a realidade pode ser transformada, originário do "comunitarismo" de décadas passadas, perdeu a sua força e o encantamento com a política reduziu-se de forma significativa.
Porém, mesmo assim e apesar de sua fragilidade, os movimentos sociais continuam sendo uma referência importante na consciência crítica dos modelos em curso na sociedade e, ao mesmo tempo, estão na dianteira do processo civilizatório, ou seja, são eles que chamam a atenção para os novos temas a serem enfrentados, como a crise ecológica abordada no início desse texto.
A análise do movimento social, suas reivindicações, lutas e contradições sempre foi uma preocupação central nas "Conjunturas da Semana’ elaboradas pelo CEPAT/IHU. Não foi diferente em 2010. Ao longo do ano procuramos destacar as reivindicações, lutas e contradições.
A agenda esquecida
Chamamos atenção nessa análise síntese do ano, a elaboração da "Conjuntura da Semana Especial. Movimentos sociais: Perspectivas e desafios’, na qual a partir da IHU On-Line n. 325 que tem como tema de capa os movimentos sociais foram entrevistados vários pesquisadores para analisar os movimentos sociais, suas perspectivas e desafios.
Em 2010, destacamos as principais lutas do movimento social e demos atenção particular para a chamada "agenda esquecida", ou seja, temas que foram relegados a um segundo plano em função das opções do modelo neodesenvolvimentista, analisado anteriormente.
Destacamos em nossas análises, como temas da "agenda esquecida’, a questão agrária (reforma agrária, revisão dos índices de produtividade, limite para a propriedade da terra, a problemática dos agrotóxicos, trabalho escravo); a questão indígena (particularmente a luta do povo Guarani-Kaiowá) e a questão ambiental (luta contra as barragens, resistência aos grandes projetos de infraestrutura – sobretudo os de corte de matriz energértica, oposição ao código florestal, entre outros).
Elaboramos ainda uma Conjuntura especial acerca do Plebiscito Popular pelo Limite da Propriedade da Terra levado a cabo pelos movimentos sociais em 2010.
Destacamos três eventos importantes do movimento social em 2010: A realização do encontro nacional da Assembleia Popular, a assembleia nacional da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) e a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora. Essas três iniciativas organizadas pelo movimento social tiveram como conteúdo principal formular propostas para um Projeto para o Brasil tendo em vista as eleições de 2010.
Outra reflexão constante em nossas análises foi a relação do movimento social com o governo trazendo à tona o permante debate da autonomia versus cooptação, assim como as perspectivas do movimento social na relação com o futuro governo Dilma Rousseff.
A agenda emancipatória
Trouxemos ainda à tona a reflexão sobre os "novos movimentos sociais", ou seja, a percepção de que a novidade na proposição de uma agenda emancipatória, que leva em conta a crise civilizacional, vem, sobretudo, dos movimentos indígena, ambientalista, de gênero e anti-globalização. Em nossa análise, esses "novos movimentos", entre outros, sugerem que no interior da crise já se gestam alternativas que indicam que "outro mundo é possível". Esses novos movimentos manifestam uma "metamorfose" em curso: "Tudo recomeça por uma inovação, uma nova mensagem desviante, marginal, pequena, muitas vezes invisível para os contemporâneos", como diz Morin.
Destacamos em nossas análises que os novos movimentos sociais auxiliam na compreensão de que a chave de saída da crise encontra-se, sobretudo, e cada vez mais na categoria cultura. Frente ao "sujeito" da primeira modernidade, assiste-se à emergência da "subjetividade". Frente aos temas da política e da economia, emerge o tema da cultura. Segundo Alain Touraine, hoje "as mudanças são tão profundas que nos levam a afirmar que um novo paradigma está em vias de substituir o paradigma social, assim como este tomou o lugar do paradigma político". As categorias sociais da sociedade industrial, da primeira modernidade, tornaram-se insuficientes para a compreensão da sociedade de hoje.
Com a modernidade, surge o conceito da autonomia, o direito de recusa daquilo que sempre foi considerado como natural e de conceder-se sua própria lei – o primado do individualismo: "a liberdade de cada um imprimir sua exterioridade com o selo de sua individualidade para nela poder reconhecer-se e fazer-se reconhecer", afirma Monod. A modernidade caracteriza-se pelo protagonismo do sujeito. A novidade agora, na segunda modernidade, ou pós-modernidade, é o fato da subjetividade "substituir" o sujeito. Agora, os interesses próprios, subjetivos, são o que irrigam a maior parte da cultura cotidiana.
Atente-se, porém, que a nova subjetividade apresenta também aspectos emancipatórios. É nessa outra subjetividade que aos poucos vai se constituindo que surgem as novas resistências. Basta pensar aqui nos novos movimentos sociais, nas redes sociais, no movimento ambientalista, nos movimentos de expressão cultural, nos movimentos de gênero, no movimento antiglobalização. A "subjetividade" que substitui o "sujeito" não é necessariamente negativa. Se por um lado, exacerba os imperativos do mercado, por outro, podem também ser resistência a ele. A subjetividade da segunda modernidade pode se traduzir em biopolítica.
A biopolítica é uma resposta ao biopoder, destaca Antonio Negri, àquilo que escapa a imposição da sociedade produtivista-consumista. É a idéia de uma produção de poder a partir do poder que se exerce. Possibilita "uma resposta biopolítica da sociedade: não mais os poderes sobre a vida, mas potência da vida como resposta a esses poderes; em suma, isso abre à insurreição e à proliferação da liberdade, à produção de subjetividade e à invenção de novas formas de luta".
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Notas:
1 - As afirmações são do sociólogo Francisco Oliveira feitas logo após as eleições. Posteriormente Francisco Oliveira se afastou do PT e passou a criticá-lo. A expressão "Nova Era" remete ao fato de que tivermos nos país duas "Era’ importantes: a "Era Vargas’ e a"Era FHC’. Esses dois períodos da vida nacional foram distintos em função dos modelos econômicos aplicados. Chama-se "Era Vargas’ o conjunto das políticas econômicas e sociais com forte participação do Estado introduzidas no país a partir de 1930, que marcaram de maneira decisiva o processo de industrialização, urbanização e organização da sociedade brasileira. A "Era Vargas’ se inicia em 1930 quando Getúlio chega ao poder. Para alguns ela se encerra em 1954 com a morte do presidente, para outros, findou em 1964 com o golpe militar; e para outros, ainda, ela não teria acabado ou estaria em sua fase terminal a partir das políticas neoliberais introduzidas por Collor a partir de 1990 e reafirmadas com vigor pelos dois mandatos sucessivos de FHC, que inaugurou a "Era FHC’.
2 - A afirmação é do historiador inglês Eric Hobsbawn em entrevista para o Globo, 13-11-02.
3 – John Williamson - economista britânico - foi professor no Departamento de Economia da PUC/Rio entre 1978 e 1981, assim como Rudiger Dornbusch, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT); os dois foram figuras centrais na elaboração do "Consenso de Washington’. Vários economistas que trabalharam no governo FHC se vincularam ao que se denominou o "grupo da universidade católica do rio’. Em torno de John Williamson e Rudiger Dornbusch, se reuniram jovens professores, como Pérsio Arida, que foi presidente do Banco Central no governo FHC, André Lara Resende, que foi presidente do BNDES, Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda. E estudantes promissores como Edward Amadeo (ex-ministro do Trabalho de FHC); Gustavo Franco (ex-presidente do Banco Central); Armínio Fraga (ex-diretor do Banco Central).
4 - Fala do ministro José Dirceu numa reunião em maio de 2003 no Diretório Nacional do PT. Sem saber que suas palavras estavam sendo gravadas pela impressa, foi curto e grosso: "nós demos um cavalo-de-pau na economia".
5 – A "Carta’ – conhecida também como "Carta de Ribeirão Preto’ – foi lançada no dia 22-6-02. Reproduzimos o trecho direcionado ao mercado: "Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país".
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Conjuntura Especial. Uma síntese dos grandes temas abordados em 2010 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU