20 Dezembro 2010
A apreciação do real e a explosão das importações colocam um novo desafio à economia brasileira. O dilema econômico é desatar o nó cambial e, para isso, assegura o economista David Kupfer, é necessário “desvalorizar ou ao menos interromper a tendência à valorização do câmbio”, diz, tendo em vista "estimular o investimento na indústria”. A dificuldade, segundo ele, se dá justamente por que o câmbio valorizado foi o instrumento utilizado para estabilizar os preços e conter a inflação. “Se tentamos sair disso, começamos a desvalorizar o câmbio e ele poderá produzir inflação. O receio do aumento da inflação levará ao aumento da taxa de juros, que gera uma revalorização do real e, novamente, não conseguiremos sair desta circularidade”, explica.
Embora a economia brasileira tenha crescido mais do que a média mundial em 2010, a indústria perdeu participação no PIB. Segundo Kupfer, isso acontece porque a economia brasileira está atraindo produção internacional, o que gera um acirramento da competição pelo mercado interno. Além do mais, a desvalorização do dólar favorece as importações e as empresas nacionais compram cada vez mais insumos no exterior. “Na medida em que a economia cresce, as empresas comprarão mais do exterior ao invés de produzir no Brasil. É esse o problema que coloca o país em uma fase de transição em que, ou vai haver uma mudança estrutural na indústria – na qual ela irá mudar a sua pauta de produtos –, passará a ser mais sofisticada do ponto de vista tecnológico, conseguindo escapar das commodities para a produção de bens elaborados ou, então, haverá uma penetração crescente de importações e um recuo da produção brasileira”.
Em entrevista à IHU On-Line concedida por telefone, o economista enfatiza que os países da América Latina devem investir em um modelo de integração comercial parecido com o desenvolvido entre China e os países asiáticos. Essa política garantirá o fortalecimento do bloco. “O empresariado brasileiro não percebe isso; ele ainda quer que os vizinhos latino-americanos comprem produtos brasileiros. Ora, entre produtos brasileiros e chineses, os países da América comprarão os produtos mais baratos”.
David Kupfer é mestre e doutor em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, é coordenador do grupo de pesquisa em Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). É autor de inúmeros artigos sobre inovação, competitividade e concorrência na indústria brasileira além de e coautor do livro Made in Brazil (Rio de Janeiro: Campus, 1996) e organizador de Economia Industrial (Rio de Janeiro, Campus, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste essa nova fase de transição apontada pelo senhor, a qual terá como desafio desatar o nó cambial?
David Kupfer – A estratégia de estabilização da economia brasileira dependeu de um processo de valorização cambial. A manutenção da apreciação do câmbio por um longo período impõe à indústria uma sucessão de regimes de funcionamento. Em uma primeira fase, a apreciação induz a indústria a buscar eficiência. Na medida em que o limite de resposta em termos de eficiência vai sendo atingido, a indústria começa a ter de simplificar determinados produtos, a abrir mão de outros e é obrigada a passar por reestruturações. Entre outras iniciativas, ela passa a importar mais insumos, entrando em um regime de global sourcing. Na medida em que a apreciação continua, a indústria acaba tendo de interromper a atividade produtiva. Então, de certo modo, ela está – pelo longo período em que o câmbio vem passando por um processo de apreciação no país, desde o final de 2004 – começando a perder competitividade para os produtos que entram no mercado interno brasileiro.
Isso gera um efeito macroeconômico preocupante: a posição da balança comercial, que estava bastante superavitária, foi se reduzindo e há uma perspectiva de que ela possa rumar para uma situação de equilíbrio ou mesmo deficitária nos próximos anos. Como o Brasil é um importador líquido de serviços, quer dizer, a outra parcela da conta de transações correntes costuma ter desempenho bastante negativo, historicamente falando. Para que haja equilíbrio das transações correntes, a indústria tem de gerar um saldo positivo. Então, na medida em que a indústria vai perdendo a capacidade de geração de saldo, a conta de transações correntes passa a gerar um resultado negativo. Nesse momento, as transações correntes já estão bastante negativas, a previsão é de 50 bilhões negativos neste ano. Em termos de PIB, significa 2,5%, que é um valor razoável, ainda considerado saudável do ponto de vista macroeconômico. Mas o déficit não pode ir muito além disso. Isso significa que a indústria terá de passar por uma rodada de reestruturação porque essa situação não é sustentável a longo prazo.
A transição pode ter duas direções: uma, evidentemente desejável, que diz respeito à melhora de acesso a determinados recursos produtivos, da própria evolução do sistema empresarial, à melhora das condições de investimento; e a outra, que corresponde a um cenário negativo, no qual a indústria vai perdendo capacidade de competição e não encontra meios de reestruturação efetivos para poder modificar a pauta de produtos, produzir tecnologia, inovações e, a partir disso, ela começa a retroceder.
Qual das duas trajetórias irá preponderar, não sei dizer. É possível a indústria desenhar uma resposta que envolva um processo de mudança estrutural e dar um salto de produtividade, de inovação, de forma a recuperar a capacidade competitiva num momento posterior. Tenho uma convicção pessoal de que essa possibilidade irá depender da qualidade da política industrial que virá a ser feita. Uma boa política industrial pegará uma indústria com uma capacidade de resposta razoável, em um momento macroeconômico favorável, uma economia atrativa – o que favorece muito. Uma boa política industrial possibilitaria esse salto. Do contrário, a trajetória de desindustrialização começará a se tornar efetiva, visível e inquestionável porque a indústria entrará em uma fase de retrocesso, de perda de peso e finalmente os números mostrarão esse recuo da indústria na matriz produtiva brasileira.
IHU On-Line - Como desatar o “nó cambial” de que fala o senhor?
David Kupfer – O nó cambial é um problema macroeconômico. Precisaríamos que o câmbio desvalorizasse – não necessariamente uma grande desvalorização – ou pelo menos interrompesse a tendência à apreciação, para estimular o processo de investimento na indústria, que é central para a mudança estrutural que mencionei como positiva.
Qual é o nó cambial? O nó é que nós utilizamos o câmbio como parte da estratégia de estabilização de preços porque ele, ao valorizar, rebaixa o teto de preços da produção doméstica e, com isso, favorece o controle da inflação. Para isso, recorreu-se a taxa de juros alta e esse é um dos principais elementos causadores do câmbio apreciado.
Qual foi a estratégia utilizada no passado? Puxar a taxa de juros para cima. Entretanto, além dos efeitos contracionistas da demanda que ajudam a desaquecer a economia, os juros elevados, acima de tudo, passam a atrair capital, o que valoriza o câmbio, que contém os preços. O nó é que, se tentamos sair disso, começamos a desvalorizar o câmbio e ele poderá produzir inflação. O receio do aumento da inflação levará ao aumento da taxa de juros, que irá gerar uma revalorização do real e, novamente, não conseguimos sair desta circularidade.
IHU On-Line – O mercado interno não tem condições de dar continuidade ao ciclo de crescimento brasileiro? O que significa queda de crescimento econômico?
David Kupfer – Durante um período se discutiu a relação entre câmbio e exportação. O câmbio valorizado desestimula as exportações por que a rentabilidade exportadora diante do dólar valorizado fica menor e, portanto, há menos incentivo para exportar. Alguém dirá que agora, em função de o mercado interno estar crescendo, o país pode se concentrar nele, compensando o fato de as exportações estarem ficando relativamente mais difíceis. No entanto, a relação entre câmbio e exportação foi uma questão importante no período de 2005 a 2008.
Hoje, a relação é entre câmbio e importação. O problema é que o crescimento do mercado interno poderá ser cada vez mais abastecido por importações e não por produção doméstica. Na medida em que a economia cresce, as empresas comprarão mais do exterior ao invés de produzir no Brasil. É esse o problema que coloca o país em uma fase de transição em que, ou vai haver uma mudança estrutural na indústria – na qual ela irá mudar a sua pauta de produtos –, passará a ser mais sofisticada do ponto de vista tecnológico, conseguirá escapar das commodities, produzindo bens elaborados, ou, então, haverá uma penetração crescente de importações e um recuo da produção brasileira.
O risco é o país, a partir disso, entrar em uma fase pós-industrial antes da hora. O Brasil, como não tem o nível de riqueza compatível com isso, ficará com problemas na geração de renda e emprego pela perda de dinamismo da produção industrial interna.
IHU On-Line – Nos últimos anos o Brasil cresceu mais do que a média mundial e esse crescimento não beneficiou, como se esperava, a indústria brasileira. Por que esse paradoxo? O problema está apenas no câmbio que permitiu a explosão das importações?
David Kupfer – Na verdade, o Brasil só está crescendo mais do que a média mundial em 2010. De qualquer modo, agora que o país cresce nesse ritmo, ele está atraindo a produção internacional. Está todo mundo de olho no mercado brasileiro e isso irá acirrar a competição doméstica.
Não gosto de metáforas, mas fazendo uma analogia futebolística, diria que o momento agora não é de pensar em ataque. Agora é a hora do contra-ataque. A defesa brasileira é que está em questão. Enquanto está se pensando na colocação de automóveis brasileiros no exterior, vários fabricantes chineses, coreanos e depois indianos pensam em colocar seus automóveis no mercado brasileiro. Do jeito que o dólar está, a economia brasileira não conseguirá resistir a isso.
A fase de transição tem elementos favoráveis e ela pode ser positiva no sentido de que, macroeconomicamente, esses déficits na conta corrente não trarão um custo de financiamento macro muito alto. E, provavelmente, na medida em que o pré-sal seja utilizado, é possível que se tenha um conforto em termo da conta de transações correntes no balanço de pagamentos. Portanto, não será preciso aquelas medidas imediatistas, que marcaram o Brasil nos últimos 30 anos.
Há um espaço de tempo, que pode durar cinco anos ou mais, em que o equilíbrio macroeconômico parece assegurado, ou seja, há uma tranquilidade macroeconômica rara na história do Brasil. Isso dá uma margem de tempo para se pensar políticas industriais mais estruturantes, profundas e não emergenciais no sentido de obter exportação e saldo a qualquer custo. Esse é um momento favorável para buscar uma visão de expansão a longo prazo e não apenas crescer, mas mudar qualitativamente.
No futuro, se tudo der certo, a indústria brasileira será mais eficiente, competitiva e preparada para conviver com o acirramento competitivo do mercado internacional.
IHU On-Line – Qual é a parcela de responsabilidade da indústria e do Estado na pouca competitividade da indústria brasileira?
David Kupfer – A resposta é meio a meio. Isto porque poupar qualquer um deles não seria justo. Nenhum dos dois está fazendo o que deveria fazer de fato. A indústria continua com pouco investimento em capacidade produtiva, há pouca ousadia em termos das escolhas de investimento, continua refratária a gastar em P&D (pesquisa e desenvolvimento) e inovação. O governo não consegue formular uma visão de longo prazo que sensibilize o empresariado a realizar as apostas necessárias e, com isso, há apenas uma gestão do cotidiano. Como o cenário está favorável, essa gestão do dia a dia conseguiu produzir alguns efeitos. Mas não será sustentável, não possibilitará um resultado bom em um período futuro. É preciso sair desta administração do cotidiano para tentar definir planos que sejam efetivos no horizonte temporal mais longo.
IHU On-Line – A questão industrial brasileira hoje se associa cada vez mais às decisões da China. Como se relacionar com esse gigante mundial?
David Kupfer – O Brasil tem de conseguir estabelecer uma relação positiva com a China porque não pode simplesmente partir para o enfrentamento ou, muito menos, aceitar a hegemonia chinesa. A China propõe comprar matérias-primas, as quais dariam ao Brasil os excedentes exportáveis suficientes para o equilíbrio macroeconômico por um período de tempo. Aceitar apenas isso significa, certamente, um recuo grande da capacidade de produzir bens industriais no país. Daqui a 10 anos, quando a China não crescer nesta velocidade, não precisar mais de tanta matéria-prima e, principalmente, quando ela descobrir as suas matérias-primas, o Brasil não terá nada para trocar e esse padrão indesejável de complementariedade vai cobrar seu preço.
Então, o país tem de ter uma integração com a China no que diz respeito a essas matérias-primas, mas tem de conseguir, em contrapartida, a penetração de empresas brasileiras no mercado chinês. O país também tem de responder às estratégias chinesas de driblar as regulações de comércio internacional pelo sistema de produção fragmentada que ela está montando com os países da Ásia. O Brasil precisa ter uma política de integração produtiva com seus vizinhos, para que eles comprem produtos latino-americanos. O empresariado brasileiro não percebe isso; ele ainda quer que os vizinhos comprem produtos brasileiros. Ora, entre produtos brasileiros e chineses, os países da América comprarão os produtos mais baratos.
Então, de algum modo, o Brasil precisa partir para um esquema de produção com uma integração mais efetiva com o Chile, a Argentina, a Bolívia, Peru, e formar uma integração produtiva de fato e, não, uma integração apenas de mercado, para que o país consiga responder a esse modelo fragmentado de produção que está em construção na Ásia e é imbatível.
IHU On-Line – A escolha dos nomes da equipe econômica de Dilma Rousseff sinaliza para que rumo em relação à política econômica, especialmente à política industrial? Quais são as novidades?
David Kupfer – Pelas escolhas e declarações, entendo que o governo está sinalizando, com muita clareza, que não irá produzir descontinuidade na política macroeconômica em curso no país. A política macroeconômica é apoiada em um tripé que envolve superávit primário – continuará se perseguindo metas de superávit primário anuais para manter sob controle a relação dívida/PIB –. Os gastos, que cresceram nos últimos anos, crescerão mais lentamente. No plano fiscal, portanto, não haverá grandes novidades. A política de metas de inflação – outra parte deste tripé -, não deverá sofrer interrupções. A novidade é utilizar outros instrumentos de política monetária, principalmente, aqueles ligados ao controle da quantidade de moeda e não somente a taxa básica de juros.
O câmbio flutuante também não será mudado e o que poderá acontecer é uma tentativa mais explícita do governo em termos de brecar a apreciação cambial e, eventualmente, promover uma suave desvalorização, utilizando instrumentos quantitativos, especificamente com referência a controle da entrada de capital externo. Assim, a política macro vai sofrer apenas modificações incrementais; não virá nada novo.
IHU On-Line – Quais seriam as bases de uma política de desenvolvimento produtivo para alavancar a retomada da produção industrial?
David Kupfer – O Brasil precisa que a taxa de investimento passe a crescer anualmente com muita rapidez. Em 2010, os investimentos cresceram muito além do PIB. Esse investimento tem de ser generalizado em vários setores como indústria, agricultura, infraestrutura, tecnologia, educação, saúde e precisa acontecer ano após ano, durante bastante tempo. A palavra chave é investimento. Durante muito tempo, o que limitou o crescimento no Brasil foi a baixa atratividade da própria economia brasileira. Agora que ela está atrativa, nos deparamos com outro limite que é o do financiamento. É difícil financiar investimento no Brasil porque ninguém quer colocar dinheiro em aplicações longas. Os empresários preferem aplicações de retorno mais rápido; o próprio governo não sabe como operar. Isso explica o porquê de o BNDES ter ficado tão onerado. O BNDES é praticamente o único instrumento de financiamento aos investimentos de longa maturação no país. Este seria um grande avanço a se promover na política econômica: a mudança do padrão de financiamento ao investimento no país. O ideal é que a empresas dependam menos de recursos próprios e possam contar com o financiamento bancário ou do mercado de capitais em maior proporção. Isso significa taxa de juros menor, mais acesso a capital, menos racionamento de crédito.
Por outro lado, a política de inovação precisa encontrar uma forma de se tornar mais eficaz, ou seja, é preciso encontrar os focos da política tecnológica, que hoje em dia se dispersa em muitos alvos sem ter objetivos claros em termos do seu processo de alocação de recursos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Desatar o nó cambial. Eis o desafio econômico brasileiro. Entrevista especial com David Kupfer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU