03 Novembro 2016
Em 2007, pouco antes do início da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Aparecida, Brasil – que foi aberta pelo Papa Bento XVI e encerrada pelo cardeal Bergoglio com o documento de síntese que já antecipa as grandes linhas do seu Pontificado –, o filósofo e historiador uruguaio Alberto Methol Ferré – bem conhecido pelo arcebispo de Buenos Aires e futuro Papa Francisco – refletiu sobre a reunião eclesial dando uma contribuição que foi publicada no livro-entrevista A América Latina do século XXI. Este livro foi reeditado em 2014 com o prólogo “Mais atual do que nunca”, do Dr. Guzmán Carriquiry Lecour, vice-presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, e também inclui um capítulo novo intitulado “Afinidades eletivas entre um Papa e um filósofo”.
Publicamos um extrato do capítulo “Apogeu e crise da modernidade”, considerando a pertinência das reflexões que ali se fazem em relação à viagem ecumênica do Papa Francisco à Suécia para a comemoração dos 500 anos da Reforma, em consonância com a aplicação do Concílio.
A reportagem é de Alver Metalli e publicada por Tierras de América, 01-11-2016. A tradução é de André Langer.
Como sintetizaria os grandes resultados do Concílio?
Com o Concílio, a Igreja ultrapassa tanto a Reforma Protestante como o Iluminismo secular. Supera-os no sentido de que assume o melhor de um e de outro. Podemos também dizê-lo da seguinte maneira: recria uma nova reforma e um novo iluminismo, que eram, além disso, as duas grandes questões que ficaram sem serem resolvidas, com as quais nunca se haviam fechado verdadeiramente as contas. Com o Concílio, a Reforma e o Iluminismo se tornam, finalmente, algo do passado, perdem substância e razão de ser, e realizam o melhor de si mesmos na intimidade católica da Igreja. A Igreja, ao assimilá-los, anula-os como adversários e recolhe sua potência construtiva.
O que significa essa assimilação?
Para responder a todos os desafios – para “aggionar-se” – a Igreja tinha que reassumir o conjunto da modernidade, da qual tinha se defendido ao longo do processo de decomposição da velha cristandade medieval e barroca. As características fundamentais da modernidade chamavam-se Reforma Protestante e Iluminismo secular. A Igreja tinha dado algumas respostas a uma e outro, mas limitadas e, de algum modo, insuficientes, no sentido de que tinha refutado e rejeitado alguns elementos inaceitáveis da Reforma e do Iluminismo, mas não distinguiu suficientemente a verdade do erro. Um erro é forte, precisamente, pela verdade que encerra, e só se pode responder a ele compreendendo o núcleo de verdade que encerra. Paul Samuelson disse com ironia que até um relógio parado afirma a verdade duas vezes por dia.
Na minha opinião, o Concílio Vaticano II supera pela primeira vez a modernidade, compreendendo o melhor da Reforma Protestante e o melhor do Iluminismo.
O que é “o melhor” da Reforma?
A afirmação do Povo de Deus e do laicato como povo sacerdotal. Em certo sentido, a Igreja era o setor mais iluminado, e dentro dela o clero era o componente mais letrado; os religiosos sabiam ler e escrever, copiavam livros, transmitiam o conhecimento. Então, controlavam a herança cultural do passado e sua transmissão, ao passo que o conjunto da sociedade era em sua maior parte analfabeto. Pode-se considerar que o “melhor” da Reforma é uma reivindicação da participação ativa do povo na Igreja; é o povo elevado à condição de realeza e povo sacerdotal.
Mas a Reforma acabará tirando valor ao sacerdócio ministerial e isto a levará a questionar a hierarquia, a sucessão apostólica, a totalidade da tradição da Igreja, abrindo o caminho a múltiplas e subjetivas interpretações, vistas e tratadas não como depositum fidei do povo em seu conjunto, mas como posse de cada um, no sentido individual.
É dessa maneira que a Reforma Protestante se atomiza em múltiplas Igrejas. Basta observar que o Protestantismo não se difunde por um movimento de desdobramento, mas por uma multiplicação incessante de comunidades desconectadas entre si. Hoje, a multiplicação se produz de forma sectária.
Em que sentido diz que o Concílio assume o núcleo interno da Reforma Protestante?
O Concílio proclama a missão sacerdotal do povo, do qual o papado e o clero fazem parte em termos de serviço.
O povo cristão não é um povo amorfo, mas estruturado em torno do papado, que garante a transmissão do depositum fidei, um colégio cardinalício que colabora perpetuando a suprema autoridade, uma tradição escrita verdadeira e autorizada, uma colegialidade exercida em contato com o povo, etc.
Vamos à segunda questão pendente. O cristianismo uniu intimamente razão natural e fé. O Iluminismo esgrime a razão natural contra a Igreja. Como se chega a esta oposição?
A crise da Reforma produziu guerras de religião, a paz estava comprometida, os cristãos se matavam entre si em todos os lugares. Nesta situação, o Iluminismo representa a tentativa de reunificar e pacificar uma Europa dilacerada e dividida. Mobiliza-se para legitimar a paz religiosa, estabelecendo um acesso natural e racional a Deus, contra o sobrenaturalismo do Protestantismo que não aceita os prolegômenos da razão natural. Em certo sentido, o Protestantismo exalta a fé contra a razão natural; o Iluminismo é uma resposta secular que afirma a razão natural como superior e mais verdadeira que a fé que cada um pode alimentar de forma subjetiva.
O ecumenismo que o Iluminismo pretende atestar tem o objetivo de substituir a multiplicidade de Igrejas em conflito, submetendo tudo e todos a uma razão natural superior que diz estar na base da verdadeira racionalidade humana. Quem quiser acrescentar ao deus da razão natural uma crença particular, pode fazê-lo, mas é uma experiência livre e facultativa de cada um. Todos, ao contrário, devem se reconhecer no deus da razão natural, porque ali acontece a unidade mínima universal da multiplicidade religiosa. Esta é a essência do ecumenismo maçônico.
Então, o Iluminismo tinha um caráter de protesto contra a absorção do secular no religioso, rejeita uma religiosidade obscura. Por um lado, rejeitava as formas eclesiásticas que desconhecem a autonomia do secular tanto na ordem da política e do Estado como na ordem do conhecimento, desde as ciências naturais até as humanas. Por outro lado, ele se opunha a uma espiritualidade que negava o valor do mundo, que invocava o céu desprezando o valor das realidades terrestres, em oposição à terra. O Iluminismo, pelo contrário, pretendia afirmar o valor das realidades terrestres contra o clericalismo católico e o pessimismo protestante. Neste núcleo polêmico – sumariamente resumido – está contido, na minha opinião, o melhor do Iluminismo.
Este duplo protesto cumpre uma trajetória que não detalharemos aqui; bastará observar que desemboca no secularismo e acaba na expulsão do religioso da vida histórica, o enclausura em um âmbito privado ou, mais simplesmente, o nega. Mas isto já é outro assunto. É bom reiterar que os iluministas viam o céu como uma invasão da terra; então, o céu era um obstáculo para o progresso das realidades terrestres. Parecia uma alternativa: ou o céu ou a terra, ou Deus ou o homem. Um iluminado como Feuerbach, “pai” de Marx e Engels, afirmava isso com clareza quando dizia que o verdadeiro cristianismo não necessita nem da cultura – considerada um princípio mundano contrário ao sentimento religioso –, nem do amor natural. Proudhon estava persuadido de que se tinha empreendido uma luta implacável contra o céu para que a terra pudesse ser ela mesma.
Qual é “o melhor” do Iluminismo que o Concílio resgata?
O Concílio, ao contrário do que defendia a derivação Iluminista, mostra que a fé não desconhece a autonomia do secular e que contribui para novas razões para o desenvolvimento humano. O Céu fecunda a Terra, empurra-a sabiamente para o seu crescimento integral, eleva-a, purifica-a.
O Concílio afirma a autonomia do conhecimento da natureza e da história; a teologia não pretende substituir as ciências humanas, eleva o conhecimento colocando-o à luz da fé. Portanto, não se sente em conflito com as ciências naturais; além disso, respeita a sua autonomia essencial. Em segundo lugar, o Concílio reafirma os direitos humanos. Veja que muitos católicos, figuras de peso como Maritain e Teilhard de Chardin, participam do processo de formulação da declaração sobre os direitos humanos proclamada pela ONU e o apoiam.
O Iluminismo deísta fundamentou os direitos humanos em Deus, tanto na Assembleia Constituinte francesa como na Declaração da Independência norte-americana. Na modernidade, o Iluminismo que afirmou os direitos humanos em virtude da sua posição racional, perde sua referência a Deus em amplos setores e, consequentemente, abandona o mesmo fundamento da lei natural sobre a qual se apoiam tais direitos.
Sem dúvida, a Igreja nunca foi aquela caricatura que o Iluminismo quis representar, mas algumas vezes assumiu formas históricas que deformaram seu gênio e proporcionaram o pretexto para reduzi-la a uma caricatura de si mesma. Está claro que estas formas não lhe eram inerentes, inclusive pelo simples fato de que o Concílio foi possível. Ao ficar o homem sem Deus, também a lei se transforma em uma norma que cada subjetividade individualmente entendida se coloca por si mesma e para si mesma: “Eu sou a lei”. Deste modo, já não pode haver uma lei universal, porque o universal sempre será extrínseco ao sujeito, não interno.
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Methol Ferré e aquelas considerações latino-americanas sobre o Concílio e a Reforma Protestante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU