21 Novembro 2017
O cinismo do ocidente faz com que, através dos meios de comunicação, as potências se apresentem como vítimas das manobras de Moscou. Ao mesmo tempo, os serviços de Putin parecem ter encontrado na rede um pilar para relatos contra-hegemônicos.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página|12, 20-11-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Leitores e espectadores de todas os suportes ideológicos, estados, partidos políticos, movimentos de distinta índole, serviços secretos, hackers, jornalistas e agitadores centrais da internet (Twitter, Facebook, Google, Instagram, etc.) compõem um amplíssimo mercado de manipulação da informação, sem precedentes na história da humanidade. Que sejam as eleições na França, nos Estados Unidos, a consulta pelo Brexit, a guerra na Ucrânia ou o separatismo catalão, a internet e seus habitantes das sombras têm sido os principais reguladores da opinião pública, com o pano de fundo da guerra entre as potências, e como parvos figurantes, estão as esferas anti-imperialistas, que expandiram as falsidades do inimigo, de seu inimigo. Um exército de fantasmas navega diariamente para defender um território semeado por interesses, em ambos os lados do Atlântico.
Os trolls são agora inocentes soldadinhos do passado, ao lado da maquinaria que foi posta em funcionamento. Os cronistas de falácias, os gestores de comunidade das redes, os perfis automáticos que geram bolhas narrativas criadas com a intenção de instalar uma fraude são os novos propagadores das verdades artificiais que se tornaram a droga do ocidente. Donald Trump impulsionou nos Estados Unidos o que já existia há muito tempo dentro da chamada guerra digital ou guerra assimétrica.
A guerra na Ucrânia, as invasões do Ocidente na soberania russa, a guerra na Síria, multiplicaram por mil o confronto subterrâneo e colocaram a Rússia de Vladimir Putin como a potência que faz e desfaz à sua vontade. O cinismo lendário do ocidente significa que, através dos meios de comunicação, as democracias ocidentais são apresentadas como vítimas das manobras de Moscou como se não tivessem sido elas, e neste caso a primeira delas, os Estados Unidos, quem levou ao paroxismo a arte da mentira com o já famoso portal Breitbart News, do ex-diretor executivo da campanha eleitoral de Trump, Stephen Bannon. Todos jogam nessa arena subterrânea onde se desferem os golpes mais fortes e na qual até mesmo as melhores intenções são usurpadas pela manipulação.
Jamie Fly, membro do German Marshall Fund e um dos criadores do instrumento de análise Hamilton 68, constata o enorme paradoxo que existe no fato de que aqueles que estão contra o ocidente, terminam, por sua vez, manipulados: "o mais preocupante que há em tudo isso é que as pessoas comuns se integram ativamente em campanhas de propaganda, embora nós, muitas vezes, seja por Twitter ou Facebook, participamos de campanhas de desinformação que provenham diretamente ou indiretamente de sistemas de propaganda. Não há nada surpreendente, então, em que os Estados se apoderem dessas áreas para propagar seus próprios interesses".
Até mesmo os heróis do passado se deram o direito de jogar, após a sua estratégia final. Julian Assange, o fundador do WikiLeaks, juntou-se a exitosa operação dos separatistas catalães que conseguiram instalar na opinião pública uma péssima impressão do Estado espanhol, apoiando-se também nos suportes russos de difusão na rede. Antes, em outubro de 2016, Trump havia dito "Eu amo o WikiLeaks". Tinha em suas mãos uma síntese de milhares de e-mails da democrata Hillary Clinton divulgados por Assange. Em julho de 2017, WikiLeaks pôs em circulação 21.000 e-mails da equipe que participava da campanha eleitoral de Emmanuel Macron. 3.000 perfis falsos no Twitter, 126 milhões de pessoas "distraídas" no Facebook: a propaganda operativa a favor de Trump esvaziou a palavra democracia de toda a sua legitimidade.
Donald Trump tem sua própria rede de falácias, mas hoje o ocidente aponta para Moscou como a entidade desestabilizadora. O instrumento Hamilton 68 que analisa o fluxo de informações divulgadas no Twitter (foi criado em agosto de 2017) constatou inclusive em quais pontos os círculos pró-russos trabalham ativamente para envenenar os debates nacionais.
Os serviços de Vladimir Putin parecem ter encontrado na rede um pilar para as narrativas contra-hegemônicas. Em certos setores, a imprensa ocidental tradicional tem mil vezes menos influência do que a Russia Today (RT) ou a Sputnik (100 países, 33 idiomas), dois meios de comunicação russos cujas informações, em ocasiões totalmente falsas, são redistribuídas através das redes e lidas com devoção por aqueles que têm uma posição anti-ocidental legítima (The Gateway Pundit ou TruthFeed).
Os meios de comunicação conspiratórios ou envolvidos no complot contam hoje com um aliado poderoso. Mas a verdade está ausente e aqueles que tentam desmentir ou esclarecer (os jornalistas) costumam encontrar-se submersos pelas ameaças físicas ou insultos que chegam a eles através da Internet. A mentira transformou em moda um estilo de gangue digital como forma de dissuasão ou intimidação, tanto para a extrema direita quanto para a ultra-esquerda. Estudos recentes relatam a "transformação" dos instrumentos de propaganda lançados durante a guerra na Ucrânia e a anexação da Crimeia pela Rússia, em "mísseis digitais" destinados a gerar caos e confusão ideológica. Ciaran Martin, responsável pelo Centro de Segurança Nacional (NCSC, do Reino Unido) disse à imprensa que "a interferência russa é uma fonte de grande preocupação". De acordo com um estudo duplo realizado pela universidade britânica de Swansea e a universidade norte-americana da Califórnia, em Berkeley, "150 mil contas no Twitter localizadas na Rússia perturbaram"o referendo sobre o Brexit em benefício da opção mais desestabilizadora para a Europa (a saída do Reino Unido).
O próprio Reino Unido acusou a Rússia de ter "atacado" os meios de comunicação e os sistemas elétricos. Os debates sobre as "interferências" estrangeiras não são novos. Em 2015, a União Europeia criou o East Stratcom Task Force, uma estrutura destinada excessivamente para combater as ofensivas digitais de Moscou. O problema não é tanto a questão ideológica, mas a veracidade, que é a que, no final de contas, manipula a opinião pública. François-Bernard Huyghe, pesquisador e especialista em Ciências da Informação no IRIS (Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas), resume: "é preciso desmontar uma mentira deliberada, lançada com objetivos estratégicos. Não basta denunciar uma ilusão ideológica". A força-tarefa da União Europeia não pode, no entanto, contrabalançar a influência das mentiras. Seus esclarecimentos têm as pernas curtas frente as potências das chamadas "fazendas de trolls", onde as mentiras são cultivadas. A fraude é, em última análise, devastadora.
Os "maus" do ocidente contra os "bons" de Moscou ou os "bons" de Moscou contra os "maus"do outro lado, semeiam suas invenções nas redes sociais. Os bons e os maus acabam amplificando sua difusão, com as quais formatam consciências, ganham adesões, modificam processos eleitorais ou instalam certezas cuja única realidade está nos milhares de perfis automatizados que devastam todas as formas de liberdade de pensar e agir. As redes sociais apareceram em um momento como a panaceia da independência frente os meios de comunicação do "sistema". Agora, o sistema se apropriou delas.
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"Bons" e "maus" geram bolhas narrativas nas redes sociais. Todos jogam no mercado da manipulação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU