Brasília perdeu as cores que teve desde o começo do mês de abril quando 8 mil indígenas acamparam no espaço da Funarte para, como explicaram, “colorir a capital federal de urucum e jenipapo, com as múltiplas cores de nossos cocares”.
A reportagem é de Anna Francischini e Aldrey Riechel, publicada por Amazônia.org, 19-04-2022.
O Acampamento Terra Livre, mobilização indígena realizada no mês de abril há 18 anos, ficou dois anos sem acontecer devido a pandemia de COVID-19, mas quando voltou, voltou maior do que nunca. Em parte, porque o momento exigiu: “enfrentamos um declarado plano de morte, etnocídio, ecocídio e genocídio, nunca visto nos últimos 34 anos de Democracia no nosso país. Bolsonaro, desde sua campanha eleitoral e já no primeiro dia de seu mandato, proferiu discursos racistas e de ódio contra os Povos Indígenas, elegendo-nos como inimigos preferenciais e promovendo o desmonte do Estado”, diz o documento final da mobilização.
O tema da ATL deste ano, que aconteceu de 4 até 14 de abril, foi “Retomar o Brasil, demarcar territórios indígenas e aldear a política”. Sônia Guajajara durante o primeiro dia explicou que: “13% do território nacional é terra indígena, mas temos um passivo muito grande de território a ser reconhecido e a ser demarcado, sobretudo nas regiões nordeste, sul, sudeste e centro oeste”. A líder indígena ainda complementa que, “dos 13% dos territórios indígenas demarcados hoje no Brasil, uma média de 98% está na Amazônia Brasileira. Então nós temos apenas 2% distribuídos nas outras regiões. Isso faz com que a demarcação continue como a bandeira prioritária de luta dos povos indígenas”.
Atualmente as demarcações e reconhecimentos dos territórios indígenas estão paralisadas. Essa foi uma das promessas de campanha do presidente Jair Bolsonaro, quando afirmou que não haveria “um centímetro a mais para demarcação”. De acordo com dados do Sistema de Informações de Áreas Protegidas (Sisarp) do Instituto Socioambiental (ISA), que consolida informações monitoradas diariamente há mais de 30 anos, 223 TIs aguardam os passos finais do processo de homologação e demarcação no Brasil.
Há ainda projetos de lei que visam dificultar ainda mais esse direito. O PL 490, que tramita no congresso desde 2007, é de autoria do ex-deputado federal, Homero Pereira (PSD-MT) e altera o Estatuto do Índio de 1973, estabelecendo que as Terras Indígenas (TIs) são aquelas que já estavam ocupadas pelos povos originários antes da promulgação da constituição federal promulgada em 5 de outubro de 1988; O Projeto de Lei cria então um marco temporal e define que, a partir dessa data, para que a demarcação de uma TI seja feita, é necessário a comprovação de posse da área.
Os povos indígenas, por outro lado, argumentam que essa teoria desconsidera a violência e as expulsões que os povos tradicionais passaram ao longo da história, principalmente durante a ditadura militar. Eles defendem a teoria do indigenato, na qual, os indígenas possuem um direito “originário” sobre suas terras.
Mas nem mesmo os territórios já reconhecidos estão livres de ameaças. Em plenária, marcando o segundo dia de mobilização indígena, o Acampamento Terra Livre (ATL) lançou a carta aberta contra o Projeto de Lei (PL) 191/2020, que pretende liberar projetos de mineração e infraestrutura dentro dos territórios. Participaram do evento integrantes da frente parlamentar mista em defesa dos direitos dos povos indígenas.
Segundo a deputada federal Joenia Wapichana, “a exploração e a cobiça do homem, tem levado a vida dos povos indígenas. Dói muito ver e ouvir notícias de crianças sendo tragadas por maquinários de garimpos; ter os povos indígenas comendo peixes contaminados com mercúrio. A gente vê a luta dos povos indígenas, que estão sofrendo com a consequência de hidrelétricas, por isso, nós não queremos ver essa história se repetir. É preciso barrar esse projeto da destruição.”
A voz dos indígenas não se limitou ao acampamento ou mesmo Brasília. Ecoaram chegando até a Europa. Durante sessão do Parlamento Europeu, povos indígenas realizaram uma plenária virtual para que as lideranças entrassem ao vivo para denunciar as violações aos direitos humanos cometidas pelo governo brasileiro para o parlamento e Organização das Nações Unidas (ONU).
O cacique Megaron Txucarramãe foi o primeiro a falar e fez diversas críticas ao atual governo. “Estamos sendo ameaçados pelo presidente Bolsonaro com seus projetos de mineração na Terra Indígena”. Ainda segundo ele, é importante o apoio de outros países, já que há uma campanha de desinformação que coloca a sociedade brasileira contra os indígenas. “Ele [Bolsonaro] joga os brasileiro contra nós, joga a opinião pública contra nós”.
E no Brasil, milhares de Indígenas caminharam pela capital federal rumo ao Congresso Nacional e ao Ministério da Justiça para reivindicar seus direitos e pedir que os projetos de leis (PLs) que causam retrocessos sejam estancados no dia 6. Segundo a estimativa dos organizadores do evento participaram da marcha mais de 6 mil indígenas de 176 povos diferentes.
Durante a marcha nomeada de “Demarcação Já”, os indígenas realizam manifestações artísticas com cantos, danças, gritos de “fora Bolsonaro” e faixas pedindo o fim da violência contra os povos originários. Em outro ato, povos Munduruku, Xukure e Truka marcharam até o Ministério da Justiça para protocolar a Petição Basta de Violência.
Acampamento Terra Livre ATL 2022 em 06/04/2022 - Brasília (DF) (Foto: Mídia Ninja | Flickr CC)
No sábado, mais uma vez, indígenas que estavam mobilizados no acampamento, saíram pelas ruas de Brasília para chamar atenção para as pautas defendidas por eles, desta vez, se unindo a atos contra o presidente Jair Bolsonaro.
Durante toda a marcha, os indígenas carregaram faixas e fizeram discursos contra o Projeto de Lei 191 que pretende legalizar mineração nos territórios indígenas e reivindicaram a retomada das demarcações de terras. Diversos cartazes e pinturas estampavam a palavra genocída. A Polícia fez uma barreira no trajeto e todos os indígenas foram revistados antes de chegar ao local de encontro da manifestação, que terminou por volta das 18 horas.
O Acampamento ainda recebeu personalidades políticas e artísticas que demonstraram apoio. Chico Cesar, Thelminha e Maria Gadú, o ex-presidente Lula e a ex-ministra do meio ambiente Marina Silva foram alguns dos nomes presentes.
O quinto dia de ATL foi marcado por uma plenária dedicada exclusivamente às pautas de mulheres indígenas. Na parte da manhã, indígenas estiveram no palco principal para relembrar as suas histórias de luta e resistência vividas por elas, denunciando a violação, discriminação, assassinado e apagamento de sua cultura, além da omissão por parte do estado.
“Nós não podemos mais permitir que nós mulheres sigamos sendo violentadas, não podemos mais permitir que nossas mulheres sejam assassinadas, muitas das vezes pelos nossos próprios parentes. Muitas das vezes dentro da sua própria casa”, explicita Sonia Guajajara.
Partindo da premissa de aldeamento da política, mulheres indígenas fizeram também o lançamento de suas pré-candidaturas. Guajajara, que pretende sair como candidata a deputada federal por São Paulo, explica que: “Nós queremos ocupar a política institucional, queremos participar das decisões deste país”.
Se lançando na política, o intuito das mulheres indígenas que vão concorrer por diferentes partidos, é fazer um contraponto à Bancada Ruralista ou Bancada da Bala, aproveitando a oportunidade para se criar uma “Bancada do Cocar”, como elas chamaram, para defender os direitos dos povos tradicionais.
“Queremos chegar não somente com um único cocar, queremos chegar com muitos. Queremos desafiar e indigenizar essa caneta, indigenizar o Congresso Nacional”, explicou Célia Xakriabá, pré-candidata de Minas Gerais.
Objetivando transformar esse cenário, foram lançadas as pré-candidaturas para concorrer aos cargos de deputadas federal, os nomes de Sonia Guajajara (SP), Celia Xakriabá (MG), Eunice Kerexu (SC), Larissa Pankararu (DF), Joenia Wapichana (RR) e Potira Potiguara (DF); já para os cargos de deputadas estadual, Simone Karipuna (AP), Val Terena (MS), Juliana Jenipapo Kanindé (CE), Chirley Pankará (SP), Eliane Bakairi (MT) e Tereza Arapium (RJ).
Quase chegando ao fim, pela primeira vez em 18 anos de mobilização, o Acampamento Terra Livre dedicou um dia para debater temas da comunidade LGBTQIA+. Durante a plenária os indígenas lançaram o manifesto “Colorindo a luta em defesa dos territórios” pedindo respeito e visibilidade para o tema.
“Levando em consideração a realidade do Brasil, – o país que mais mata pessoas Travestis e Transsexuais no mundo, registrando pelo menos uma morte por LGBTIfobia a cada 23 horas – falar da existência de corpos indígenas LGBTI+ denunciar a dupla violência que sofremos cotidianamente. É falar de sobrevivência”, diz o documento.
O ATL encerrou oficialmente no dia 14 de abril, mas as mobilizações seguirão nós territórios. “A gente termina mais um ATL com o sentimento de dever cumprido, mas não encerrado, pois nós não temos o luxo do descanso. Nossa luta é diária porque nossos algozes estão por aí, buscando mais um jeito de violentar nossa gente, de invadir nossas terras, de relativizar nossos direitos.” Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).