Pesquisadores descrevem o contexto e as disputas que estavam presentes na criação do Bolsa Família, destacam a importância da sua articulação com a rede de assistência social e se mostram apreensivos sobre o programa que o substituiu.
Evento comemorativo aos 10 anos do programa Bolsa Família realizado em 2013. (Foto: Gustavo Bezerra | PT na Câmara)
A reportagem é de Cátia Guimarães, publicada por portal EPSJV/Fiocruz, 18-01-2022.
Entre 2004 e 2019, o número de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza no Brasil reduziu 15% e 25%, respectivamente. No período de 2004 a 2009, as residências com moradores que viviam em insegurança alimentar grave, também conhecida como fome, diminuíram de 33,3% para 29,4% na zona urbana e de 43,6% para 35,1% na área rural. A mortalidade de crianças entre zero e cinco anos reduziu em 16% entre 2006 e 2015 e o total de crianças pobres com baixa estatura nessa mesma faixa etária caiu de 14,2% para 12,7%. Em 2014, o país finalmente saiu do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Tudo isso é notícia velha. A novidade é o fim do programa que, direta ou indiretamente, contribuiu para todos esses indicadores positivos e muitos outros que, ao longo dos últimos 18 anos, apontavam melhorias no desenvolvimento social do país.
Criado pela lei 10.836, de 2004, e reconhecido internacionalmente, o Bolsa Família era o maior programa condicionado de transferência de renda do mundo. E a contradição é que, para os pesquisadores ouvidos nesta reportagem, esses efeitos tão profundos e variados só foram possíveis porque, na prática, ele fez muito mais do que distribuir dinheiro entre os pobres. “O Bolsa Família não é só um programa de transferência de renda. Ao contrário, toda sua base é uma rede de proteção social. Muita gente vinha visitar o Brasil para conhecer o Bolsa Família, chegava aqui achando que ia encontrar uma tecnologia bancária, um jeito de passar o dinheiro eficiente, e descobria que, na verdade, o que estava por trás da transferência de renda eram o Cadastro Único e a rede de assistência social”, explica Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social, que esteve na criação do programa.
Agora, o mesmo documento que anunciou o atestado de óbito do Bolsa Família – a Medida Provisória nº 1.061/2021 – funcionou também como certidão de nascimento de um outro programa social que deve ocupar o seu lugar: o Auxílio Brasil. A decisão tem gerado muita expectativa, polêmica e, sobretudo, dúvidas. “A gente tem dificuldade de definir o que o Auxílio Brasil significa. Demanda um pouco mais de investigação – na verdade, demanda conhecer de fato o que será essa realidade do Auxílio Brasil depois de implementado. Mas eu diria que ele já demarca um retrocesso”, arrisca Marcelo Sitcovsky, pesquisador do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que justifica: “Enquanto o Bolsa Família concentrou, centralizou e eliminou a sobreposição de ações que havia antes dele, pode ser que o Auxílio Brasil reverta isso na medida em que pulveriza com vários tipos de bolsa”. E essa é apenas uma de muitas desconfianças críticas que os pesquisadores ouvidos pela reportagem apontam.
Percorrer a história de vida do Bolsa Família pode ajudar a entender essa preocupação. Sitcovsky conta que, quando o programa nasceu, no início dos anos 2000, a prioridade de se combater a pobreza com iniciativas de transferência de renda voltada para as populações mais necessitadas não era propriamente uma novidade. Ao contrário: desde, principalmente, os anos 1990, essa já era, segundo ele, uma diretriz clara das agências multilaterais, como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI). Iniciativas pulverizadas, tanto em âmbito federal quanto nos estados e municípios, já tinham sido implementadas por aqui – ele cita, como exemplos, o programa de vale gás, de aquisição de leite e alimentos, entre outros.
Acontece que, na mesma época, nas palavras de Sitcovsky, “a assistência social vinha de um processo de completo desmonte”. A LBA, Legião Brasileira de Assistência, tinha sido extinta em 1995, mesmo ano em que foi criado o programa Comunidade Solidária, voltado para o combate à pobreza e coordenado pela então Primeira Dama Ruth Cardoso. “Introduziu-se uma concepção que revelava a forte tendência a uma desresponsabilização do Estado no que diz respeito à assistência social. Era um processo de refilantropização e reforço à caridade”, explica o pesquisador, destacando que não é mera coincidência que a lei do novo Auxílio Brasil não defina fontes orçamentárias de longo prazo e aponte um financiamento que pode incluir dinheiro privado. “No momento em que você introduz numa lei que os custos poderão ser tanto de recursos próprios como de recursos da sociedade, você não está dando as garantias necessárias para que essa seja de fato uma política de Estado”, critica.
Voltando àquele longínquo final do século 20, Sitcovsky lembra que as conferências de assistência social e outros espaços de participação popular já sinalizavam a necessidade de se mudar os rumos dessa área no Brasil, fortalecendo o papel do Estado para que ela ocupasse, de fato, seu lugar ao lado da saúde e da previdência no tripé da Seguridade Social, como previa a Constituição de 1988. Ao mesmo tempo, multiplicavam-se debates e ações da sociedade civil para combater a pobreza – quem não se lembra da famosa campanha do Betinho, ‘Ação Cidadania contra a Fome’? “O Bolsa Família vai ser colocado como a síntese de todos esses processos de mobilização social”, diz Denise De Sordi, historiadora, pesquisadora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Pois em 2004, segundo ano de mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, essas duas histórias – da prioridade de enfrentamento da pobreza e da renovação da política de assistência social no Brasil – se encontraram. E foi principalmente desse cruzamento que derivou o sucesso do agora extinto Bolsa Família. “O governo trouxe para dentro uma série de entidades que discutiam de maneira muito séria e responsável a questão da segurança alimentar, o cenário e os dados sobre a caracterização da pobreza e da extrema pobreza no Brasil. Tinha uma discussão com a academia. Os movimentos que discutiam sobre o direito à renda, sobre o direito à alimentação, uma série de organizações sociais foram chamadas para que o Bolsa Família tivesse esse pé na realidade”, relata Priscilla Cordeiro, trabalhadora do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e conselheira do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), que compara: “Já o Auxílio Brasil surge sem nenhum lastro de discussão com as instâncias da assistência social. É um programa forjado nos gabinetes, afastado de todas as instâncias do controle social, sem gestão democrática. Não houve discussão prévia nem no Conselho Nacional de Assistência Social, nem com as entidades, nem com o conjunto de trabalhadores que operacionalizam o Sistema Único de Assistência”.
De fato, a criação da Política Nacional de Assistência Social e do Bolsa Família no mesmo período não foi apenas uma coincidência de datas. Antes de tudo, eram respostas a um cenário de assustador crescimento da miséria no país – como define De Sordi, naquela época, “quando a gente falava de pobreza, estava falando de fome”. Na esteira dessas conquistas, veio a aprovação do SUAS, em 2005, a criação dos Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS) e toda uma estrutura física, administrativa e legal que gerou o que hoje define a Assistência Social no Brasil. “Foram criados serviços de convivência, serviços de atendimento e acolhimento a pessoas em situação de rua e com necessidades [especiais] numa nova perspectiva. A assistência social viveu um novo período”, conta Sitcovsky, ressaltando, no entanto, que essa “expansão e afirmação” da área foi acompanhada de “um processo de contrarreforma da previdência e da saúde”, que comprometia o fortalecimento do tripé da Seguridade Social.
O Bolsa Família, então, respondia e interagia com a Política Nacional de Assistência Social, na medida em que um dos seus pilares, entre vários outros, é a garantia da segurança de rendimentos à população. É bem verdade que, considerando o amplo debate que acontecia na sociedade civil, não havia propriamente um consenso sobre o melhor caminho para atender esse objetivo. De Sordi explica que muitas coisas estavam em discussão naquele momento, mas a principal disputa se dava entre os que defendiam um programa focalizado, voltado para segmentos mais pobres da população, e os que lutavam pela implantação de uma renda básica de cidadania, universal. A criação do Bolsa Família – assim como de todos os programas fragmentados que existiram antes dele – mostra a vitória da opção pela focalização, negociada, naquele momento, como uma espécie de ‘meio de caminho’.
Isso porque, embora pouca gente saiba, como desdobramento prático dessa disputa, chegou a ser promulgada uma lei (nº 10.835/2004), ainda em vigor, que instituiu a renda básica de cidadania no país a partir de 2005. Como um sinal dos tempos em que foi criada, a legislação, ao mesmo tempo em que estabelecia que esse benefício seria direito de todos, “não importando sua condição socioeconômica”, também afirmava que isso deveria se dar “em etapas”, “priorizando-se as camadas mais necessitadas da população”. “Um ponto que às vezes fica um pouco esquecido é que o Bolsa Família foi previsto, ou pelo menos apresentado, como um dos passos para a instituição da renda básica de cidadania quando houvesse condições fiscais para que isso ocorresse”, lembra De Sordi. O que seria esse primeiro passo, focando apenas nos mais pobres, durou 18 anos, até ser extinto pelo governo de Jair Bolsonaro. Já a renda básica universal, que seria o ponto de chegada, acabou nunca sendo implementada.
Mas a articulação do Bolsa Família com a nova Política e a rede criada a partir dela se dava também na prática. A começar pela sua porta de entrada: era nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) que os candidatos a beneficiários se cadastravam para a fila do programa. Aliás, é também para essas unidades que uma infinidade de pessoas tem corrido diante das dúvidas sobre quem é ou não elegível para o novo Auxílio Brasil. Em geral, em vão. “Nós, da assistência social, não estamos informados. Os trabalhadores não receberam uma orientação técnica, não existe um treinamento, não existe um suporte técnico, não existe absolutamente nada, é um vazio institucional”, critica Priscilla Cordeiro, que trabalha em Pernambuco. Ainda segundo ela, no Bolsa Família a integração na rede se dava também após a entrada das pessoas no programa. Quando uma criança de uma família beneficiária apresentava dificuldade no acompanhamento pedagógico, que prejudicava o cumprimento da condicionalidade relacionada à educação, por exemplo, a escola a encaminhava para o Centro de Referência de Assistência Social daquele território para fazer atividades de contraturno em alguns dias da semana. Da mesma forma, Cordeiro explica que as pessoas idosas que participam do serviço de convivência e fortalecimento de vínculo dos CRAS são beneficiárias do Bolsa Família. “Tem uma articulação entre saúde, assistência e educação. Você vê o tempo todo essa costura, entre os programas da assistência social”, resume.
Mas a maior expressão da articulação do Bolsa Família com as estruturas de assistência social criadas na mesma época e com outras estratégias diversas que seriam geradas depois é o Cadastro Único (CadÚnico), o cadastro que nasceu junto com o programa e que serviu de ferramenta para a gestão e, principalmente, para a formulação de políticas de combate aos diversos aspectos da pobreza e da desigualdade no Brasil. E, na avaliação de alguns pesquisadores ouvidos pela Poli, a perda desse instrumento pode ser um dos maiores retrocessos da substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, sobretudo num momento de agravamento da crise social como o atual. “Os dados fornecidos no CadÚnico servem como uma bússola para orientar as políticas públicas, não só da assistência social”, resume Priscilla Cordeiro.
De fato, quem tiver a curiosidade de procurar o questionário de perguntas que alimentam o Cadastro Único, que está disponível na internet, provavelmente terá uma surpresa. O formulário principal ocupa um documento de 34 páginas, com perguntas que vão desde o nível de escolaridade e vínculo de trabalho até o tipo de escoamento do banheiro e de iluminação usada no domicílio. “O Bolsa Família funciona como um ímã ou como um radar: as pessoas desesperadas com a pobreza vêm em busca de proteção da renda e, quando entram em contato com o Estado, acabam nos passando um conjunto de informações: quem são, onde moram, quem vive com elas, do que é feita a casa, do que é feito o piso, se tem ou não água e energia... Você tem aí uma riqueza de dados nominais que permite que o Estado atue, tome decisões”, explica Tereza Campello.
Os usos são muitos. Segundo ela, a decisão sobre a alocação dos profissionais que comporiam o programa Mais Médicos, por exemplo, foi tomada a partir do cruzamento de “dois mapas”: um do Ministério da Saúde, sobre os locais em que havia equipamentos e unidades básicas de saúde, e o CadÚnico, que forneceu as informações sobre os territórios de pobreza. Da mesma forma, diz a ex-ministra, quando o governo federal decidiu construir e equipar cozinhas em escolas públicas para melhorar a merenda escolar e atacar a desnutrição infantil, a seleção das instituições contempladas foi feita a partir do CadÚnico. “Se uma escola tem maioria de crianças beneficiárias do Bolsa Família, isso para nós significa duas coisas: que a maioria das crianças são pobres e que, provavelmente, essa escola está num território também de crianças pobres. Isso é um indicador de orientação do gasto público”, explica Campello.
O pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC), a participação no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar e mesmo a isenção de taxa de inscrição em concursos públicos são outros exemplos de ações mais ou menos corriqueiras que passam pelo Cadastro Único, como lembra Denise De Sordi. Além disso, diz ela, o formulário contém campos de informação voltados para populações ribeirinhas, quilombolas, indígenas, população em situação de rua, entre outras, que, de acordo com a pesquisadora, “permitem captar também a condição específica desses grupos e dessas pessoas”. “O CadÚnico permite que a gente tenha esse retrato das questões sociais brasileiras. Ele funciona como se fosse um Censo da desigualdade social”, resume.
Tanto a Medida Provisória publicada pelo governo federal quanto a lei aprovada no Congresso Nacional instituindo o novo Auxílio Brasil citam inúmeras vezes o CadÚnico, na maioria delas condicionando o benefício descrito à permanência das pessoas no cadastro. Na letra da lei, portanto, não há por que se preocupar com a descontinuidade dessa ferramenta. Da mesma forma, em resposta enviada à reportagem via assessoria de imprensa, o Ministério da Cidadania afirma que “o ingresso e a permanência das famílias no Auxílio Brasil ocorrerão a partir da inscrição no Cadastro Único”, exatamente como acontecia com o Bolsa Família. Mas a Pasta também destaca que essa ferramenta está sendo “modernizada” para “fortalecer a relação com o Sistema Único de Assistência Social” e “com isso, aprimorar a porta de acesso dos cidadãos aos programas sociais do Governo Federal”. Por que, então, tanta desconfiança?
A resposta a essa pergunta remete a antes da morte do Bolsa Família e criação do novo programa. Se é verdade que não se sabe ainda o que significa a “modernização” que o Ministério afirma que o CadÚnico sofrerá, o que já se viu até agora foi um processo de digitalização de cadastro de beneficiários, que fez com que todo o processo de elegibilidade e pagamento do auxílio emergencial, criado em 2020 em função da pandemia de Covid-19, passasse completamente por fora da rede de assistência social. Na avaliação de Marcelo Sitcovsky, isso ajuda a explicar, inclusive, o “conflito de informações” que fez com que muita gente que era elegível para o benefício não o recebesse e outras que não teriam direito tenham conseguido acessá-lo. Mas as consequências vão além. Levando em conta que as pessoas que demandaram o auxílio emergencial encontravam-se, pelo menos momentaneamente, em situação de vulnerabilidade social, o retrato dessa população, que se ampliou e complexificou em meio à crise sanitária, é de interesse direto da assistência social. Até porque, encerrado o benefício, não se sabe se a condição dessas pessoas melhorou. “A gente não vai conseguir recuperar essas informações”, afirma De Sordi.
Entender a mudança de perfil da população que hoje precisa da assistência social é fundamental, na avaliação da pesquisadora. “A gente está novamente num patamar em que pobreza volta a significar fome”, lamenta De Sordi. E completa: “Aquela população que tradicionalmente estava no ciclo da pobreza, sendo atendida pelos programas sociais para que esse ciclo fosse rompido, passa a dividir espaço com aquela população que vem, por exemplo, da ideia de empreendedorismo, do microempreendedor, do trabalhador autônomo, do trabalhador sem carteira assinada, aquele que se empregou após a reforma trabalhista e que ficou desamparado pelo Estado”. Diante desse cenário, diz, o formato escolhido para oferta do auxílio emergencial, que “desvinculou o benefício da rede de proteção social”, acabou atendendo essas pessoas “sem necessariamente dizer que elas eram pobres”. “O auxílio emergencial dizia assim: ‘Essa é uma situação transitória, quando a pandemia passar, vocês vão voltar para os patamares de mobilidade social’. Só que não foi isso que aconteceu”, alerta.
O medo é que processo semelhante se dê com o grosso da população que será beneficiária do novo Auxílio Brasil. Isso porque, desde a experiência do auxílio emergencial, o governo tem incentivado a ideia de que o cadastro possa ser feito por meio de um aplicativo, preenchido pelas próprias pessoas – o que, na visão dos críticos, precisa ser lido como um processo que passa por fora da assistência social, quebrando os elos de uma rede mais ampla que tinha no Bolsa Família e no CadÚnico uma das suas sustentações. “CadÚnico não é um apelido, é uma ferramenta social. Para preenchê-lo, a família sentava na frente de uma assistente social, com pessoas que foram treinadas, e havia toda uma conversa. Há perguntas como ‘a sua casa é de alvenaria?’ que, sem ajuda, a pessoa às vezes não sabe responder”, ilustra Campello, destacando que o desfinanciamento da rede de assistência social, que tem trabalhado com cada vez menos gente, é outro dificultador. “Pode continuar chamando de Cadastro Único, mas não é mais Cadastro Único. Aquilo que a gente construiu não existe mais”, opina.
Para Denise De Sordi, outro indicativo de que esse cadastro perde a centralidade na gestão das políticas sociais é o fato de, no Auxílio Brasil, o NIS, Número de Identificação Social, que é vinculado ao recebimento de benefícios da assistência social, ser substituído pelo CPF.
No caso do auxílio emergencial, os poucos dados coletados foram preenchidos num sistema ligado à Caixa Econômica Federal (CEF). Também agora, embora todos os documentos do Ministério da Cidadania apontem a necessidade de registro no Cadastro Único, informações sobre o novo programa podem ser adquiridas num aplicativo chamado Auxílio Brasil Caixa. A coincidência de movimentos indica que as informações coletadas foram priorizadas para outro tipo de ação, que não passa pela assistência social: junto com o cadastro dos beneficiários, a Caixa Econômica lançou um aplicativo chamado Caixa Tem que oferece empréstimos de baixo valor (entre R$ 300 e R$ 1000) e funciona como uma “continuação do auxílio emergencial”, como definiu o presidente do banco, Pedro Guimarães, em entrevista ao jornal Correio Braziliense em setembro de 2021.
No caso do novo Auxílio Brasil, os beneficiários podem receber os recursos numa agência da CEF, em casas lotéricas ou através desse aplicativo, que oferece um conjunto de outros serviços financeiros. “O Auxílio Brasil tem também essa ideia de fornecer a entrada das pessoas nesse mundo do mercado financeiro. Você está entrando no Caixa Tem para pegar seu benefício e existe lá outra opção, de um empréstimo de, por exemplo, R$ 150, para você pagar daqui a três meses. A pessoa vai pegar, porque aquilo, para ela, é muito dinheiro”, ilustra o economista Lucas Bressan, que integra o grupo de pesquisa de Financeirização e Política Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele ressalta que o Bolsa Família também acabou incentivando um processo de financeirização, já que servia como garantia de rendimento para créditos de valores baixos, e, administrativamente, também permitia acesso a serviços bancários, mas num formato de conta bem reduzida. “O Caixa Tem abre mais o leque, porque facilita muito as pessoas pegarem o crédito. Com um clique à distância, a pessoa se endivida”, diz Bressan, lembrando que o texto original do Auxílio Brasil elaborado pelo governo federal autorizava que até 30% do benefício do novo programa fosse usado para pagamento direto de crédito consignado. Esse trecho, no entanto, foi retirado durante tramitação da MP no Congresso Nacional.
Mas também é bom lembrar que nem só de elogios viveu o Bolsa Família. Desde o nascimento, no próprio campo da assistência social, da segurança alimentar e das políticas públicas de um modo geral, o programa convive com críticas mais estruturais. Uma delas diz respeito exatamente a essa contradição de, ao garantir uma renda fixa, ainda que baixa, ele ter aproximado esses segmentos populacionais de uma certa ciranda financeira, que levou a processos de endividamento. “Uma coisa que a crise deixou mais clara é que, para fechar o mês, no Brasil as pessoas se endividam com o cartão de crédito para comprar comida no supermercado”, descreve Bressan, e completa: “Então, os bancos passaram a focar nesse público-alvo dos beneficiários do Bolsa Família, o que levou as pessoas mais pobres a terem acesso a esses instrumentos financeiro de endividamento”.
O pesquisador reconhece que, se, por um lado, o endividamento é um efeito negativo, por outro, o crédito é importante inclusive para a economia como um todo. Mas ele alerta que o problema é as pessoas dependerem do crédito para o consumo de itens de primeira necessidade. Tudo isso aponta, então, não para um problema do Bolsa Família em si, mas para a necessidade de outras políticas que furem esse ciclo de carência e dívida. E um bom exemplo, na avaliação de Bressan, foi a valorização do salário mínimo que, segundo ele, foi fundamental para o combate à pobreza nos governos Lula.
Na verdade, a demanda por políticas mais estruturantes de enfrentamento não apenas da pobreza mas também da desigualdade sempre acompanhou os debates sobre o Bolsa Família, como uma espécie de alerta tanto sobre a sua importância quanto sobre a sua insuficiência. “Para quem passa fome e de repente consegue alimentar os filhos que estão chorando porque não têm alimento, receber o benefício assistencial de transferência de renda tem um impacto enorme. É inquestionável. Mas programas de transferência de renda não se dirigem e não têm o potencial de superar a forma da sociedade desigual em que nós vivemos. Eles, na verdade, fazem parte dos vários mecanismos que garantem a reprodução desse tipo de sociedade”, resume Sitcovsky.
Além dessas análises sobre a própria concepção de política social, que são uma espécie de atualização do debate que fervilhava na sociedade civil brasileira quando o Bolsa Família foi criado, existem também críticas pontuais ao desenho ou funcionamento do programa. A fila de espera – mesmo antes da chegada do Auxílio Brasil, cerca de dois milhões de famílias elegíveis aguardavam sem receber o benefício –, por exemplo, tem sido motivo de reclamações já há alguns anos. Agregado a isso, sempre houve quem defendesse uma ampliação da cobertura, o que significaria elevar as linhas de corte, permitindo que famílias com rendas maiores às que foram estabelecidas se beneficiassem do programa.
Outro ponto crítico, talvez o maior deles, tem a ver com o valor dos benefícios, considerado por muitos pesquisadores e apontado por alguns estudos como abaixo do necessário para interromper o ciclo da pobreza. Segundo Marcelo Sitcoksky, o valor repassado pelo Bolsa Família estava abaixo da “necessidade de aquisição mesmo dos bens de primeira necessidade”, um impacto muito diferente, por exemplo, do Benefício de Prestação Continuada, outra ferramenta da assistência social voltada às populações mais vulneráveis, que atinge um contingente muito menor de pessoas, com o valor de um salário mínimo mensal. Ao final da pesquisa que empreendeu para sua tese de doutorado, defendida em 2010, ele aponta que o Bolsa Família tinha um importante papel na reprodução da força de trabalho no Brasil.
Um texto para discussão produzido por quatro pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2019, intitulado ‘Os efeitos do programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos’, analisa de forma bastante positiva a focalização da iniciativa, ou seja, mostra que ele atingia satisfatoriamente a população mais necessitada do país, mas conclui que “o principal limitador do seu impacto na pobreza não é o foco, mas o baixo valor das transferências”. O estudo também sugere que havia espaço para ampliação do investimento do Estado com o programa, mostrando que, em 2016, o gasto com o Bolsa Família representou apenas 0,44% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Embora com variações de acordo com o perfil dos beneficiários, ainda segundo o texto do Ipea, o valor médio das transferências subiu ao longo do tempo, chegando ao ponto mais alto em 2017, com R$ 180 por família. “Por terem valores relativamente baixos, as transferências são muito boas em aliviar a pobreza, mas só conseguem retirar de fato as famílias dessa situação caso sejam tomadas como referência linhas de pobreza muito baixas”, conclui o texto. Ainda assim, também de acordo com o estudo, em função do programa, desde 2004 a extrema pobreza tem caído 1,3% ao ano no país. “Esses números significam que, em 2017, mais de 3,4 milhões de pessoas deixaram de viver em pobreza extrema por causa do PBF, e 3,2 milhões foram elevadas acima da linha de pobreza”, calculam.
Não por acaso, um dos principais elementos de propaganda do Auxílio Brasil é a elevação do valor do benefício. A primeira parcela, que foi paga ainda em 2021, mesmo antes de a Medida Provisória ter sido aprovada no Congresso, já contava com um reajuste de 17,8%. De acordo com o Ministério da Cidadania, em reposta à reportagem via assessoria de imprensa, o valor médio do benefício subiu de R$ 186,68 em outubro para R$ 224,41 em novembro. Analistas, no entanto, têm ponderado que, como o benefício estava congelado desde 2018, o aumento de agora mal repõe as perdas causadas pela inflação acumulada no período, que foi de 20,8%, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 23/2021, conhecida como PEC dos Precatórios, já em dezembro do ano passado o governo pagou a primeira parcela num valor muito mais alto, que tem sido anunciado como principal vantagem do novo programa: R$ 400. Esse valor, no entanto, só tem validade até o final de 2022. O Auxílio Brasil também aumenta as faixas de renda que caracterizam as famílias como em situação de pobreza e extrema pobreza.
Para Tereza Campello, os números apresentados pelo governo, tanto em relação aos valores dos benefícios quanto sobre quantidade de famílias que serão atingidas pelo novo programa, estão sendo propositalmente descontextualizados. “O Bolsa Família atendia 14 milhões de famílias no governo Dilma [Rousseff], quando o Brasil tinha menor taxa de desemprego, menor taxa de pobreza e estava saindo do mapa da fome. Depois, vêm três anos de destruição e tem uma fila enorme no Bolsa Família. Em março de 2020, a fila do Bolsa Família já somava 17 milhões. Estão dizendo agora que o novo programa vai ampliar os beneficiários para chegar aos números que teriam sido necessários em março de 2020, antes da pandemia. Essa é uma conta ridícula porque faz de conta que não aconteceu a pandemia ou que tudo voltou ao normal, o mundo é maravilhoso e todo mundo tem emprego”, critica.
Campello coordenou os debates que resultaram num Projeto de Lei (nº 4.086) sobre o tema apresentado pelo Partido dos Trabalhadores à Câmara dos Deputados ainda em agosto de 2020. Chamada de ‘Mais Bolsa Família’, a proposta era reajustar o valor e ampliar o número de beneficiários alcançados, tendo em vista a piora dos indicadores de pobreza e desemprego no país. E essa foi apenas uma entre várias iniciativas nesse sentido submetidas por diferentes partidos e parlamentares ao legislativo federal em meio às crises econômica e sanitária. “Essas 17 milhões de famílias já eram pobres em 2019. Se quisessem atendê-las, isso poderia ter sido feito sem mudança nenhuma na lei, sem mudança de nenhum dispositivo, sequer precisava de decreto. Era só apertar um botão e trazer as pessoas para dentro do Bolsa Família. Não quiseram, estão fazendo na véspera de eleição”. Ainda assim, de acordo com o Ministério da Cidadania, em novembro, no lançamento do Auxílio Brasil, o número de famílias beneficiárias não tinha sido ampliado, totalizando 14,5 milhões.