18 Dezembro 2017
Paulo VI e os Boney M pensam do mesmo jeito. O papa que organizou o Concílio e o grupo de disco-pop do Caribe, rival do Abba nos anos 1970, estão igualmente envergonhados com a violência dos Salmos bíblicos. No seu sucesso em 1978, Rivers of Babylon, o grupo mutila de suas partes mais cruéis o Salmo 137, do qual a música é tirada. Na passagem do latim para as “línguas vernáculas” (na terminologia vaticana: para as línguas nacionais), Paulo VI faz o mesmo em grande escala para a liturgia católica: alguns Salmos são esquecidos; outros, limpados das frases mais violentas.
A reportagem é de Marco Ventura, publicada por Corriere della Sera, 17-12-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A operação nunca agradou o biblista belga André Wénin, professor da Universidade de Louvain, 64 anos, dos quais muitos foram passados naquela que ele define como uma conversa com “a Leitura”, “uma luta para que esses textos sejam lidos na íntegra e levados a sério”.
A partir da luta de Wénin, foi publicado em outubro passado, pelas Éditions du Cerf parisienses, o volume Psaumes censurés, agora publicado na Itália pelas Edizioni Dehoniane, de Bolonha, na bela tradução de Romeo Fabbri (Salmi censurati. Quando la preghiera assume toni violenti [Salmos censurados. Quando a oração assume tons violentos]).
Os autores dos Salmos frequentemente usam uma linguagem violenta. Eles odeiam os inimigos com “um ódio total”, invocam e degustam a ira de um Deus cruel para com os malvados, recorrem a um bestiário em que se destacam leões e serpentes.
No Salmo 137, o de Rivers of Babylon, eles amaldiçoam os babilônios que incitavam a demolir Jerusalém até os fundamentos e desejam o pior para a “Filha da Babilônia”: “Feliz quem agarrar e esmagar seus nenês contra o rochedo!” [trad. Bíblia Pastoral].
Enquanto tudo isso estava em latim, e a sociedade e a teologia eram diferentes, o problema não surgia. Com o uso litúrgico das línguas faladas, na sociedade pacifista dos anos 1960, emerge o medo de escandalizar os fiéis com textos que, escreve Wénin, “mostram a Deus a imagem severa de um ser intolerante, vingativo e violento” e “exalam vingança por toda a parte”. Paulo VI, assim, acabou desconsiderando o conselho de muitos Padres conciliares e censurou, no todo ou em parte, os Salmos mais problemáticos.
A censura, enfatiza o autor, faz parte de uma estratégia que também se serve de outros meios para neutralizar textos escandalosos. De fato, tentou-se reescrevê-los de modo a “conferir-lhes um tom mais aceitável”, foram tratados como resíduos pré-cristãos, típicos dos judeus de um Antigo Testamento “rebaixado pela revelação cristã”, foram interpretados como “o reflexo do homem velho” que se opõe ao Evangelho e “do qual ainda devemos ser salvos”, e até se argumentou que, nesses Salmos, escreve ainda o autor, “aprende-se aquilo que Deus não é”.
O percurso de André Wénin é totalmente diferente; são totalmente diferentes as suas análises e a sua tese. Acima de tudo, em vez de escapar do texto, Wénin fez escrupulosamente o seu trabalho de exegeta: trabalhou sobre o texto original, sobre o hebraico antigo nas suas variações, de Salmo a Salmo.
Para os três Salmos inteiramente censurados, ou seja, o 58, o 83 e o 109, o volume propõe, assim, uma reconstrução precisa, embora acessível, das palavras-chave e da sua posição. A partir daí, o exegeta reconstruiu o significado.
Se, no Salmo 58, temem-se as presas do leão e o veneno da serpente, não é por um gosto gratuito da violência animal; em vez disso, é para significar a boca do malvado, dos “poderosos” que se creem “deuses”, que deveriam dizer a justiça e dizem o contrário “no coração” e com “as mãos”. A intervenção de Deus é implorada, com o Salmista, para que Ele quebre “os seus dentes na boca”, para que os dissolva “como lesma, que se derrete ao caminhar” [trad. Bíblia Pastoral]. Então, explica Wénin, a vingança de Deus é fazer justiça, restaurar a ordem em favor do suplicante; com o autor, é “o restabelecimento da justiça mediante o juízo”.
Ao término do Salmo, não há mais os poderosos que se creem deuses, mas o único Deus, ele sim realmente poderoso por ser justo, tão grande a ponto de levar os autores do Salmo a torná-lo múltiplo, deuses, a mesma palavra dos poderosos/deuses em francês e em italiano, mas uma palavra diferente no original, que força no plural “elohim” o singular monoteísta Deus.
Dizer a violência é fundamental, segundo Wénin. Na Bíblia, Caim é o personagem que se recusa a dizer a própria dor a Deus e que, por isso, depois, passa ao ato e acrescenta injustiça a injustiça. No Salmo, quem fala do abismo da perseguição e da injustiça, cercado pelos inimigos, precisa expressar seus verdadeiros sentimentos e expressá-los do modo mais instintivo. Isso só pode ser feito quando se confia no interlocutor. É a fé no Deus de Israel, graças à qual pode-se tirar para fora a violência sofrida e provada pelo inocente; a fé na intervenção reparadora de Deus.
Perdemos isso, de acordo com o autor, se não fizermos o esforço de ler esses Salmos até o fim e de compreender a sua forma e substância. Por isso, Wénin nos diz: “Estou com raiva da minha Igreja que priva os fiéis de um recurso extraordinário, fonte incomparável de inteligência da vida humana e de espiritualidade”. O Salmista, escreve o autor, não se resigna, se rebela: “A sua agressividade verbal tem o mesmo poder que a sua sede de justiça”. A fé no Deus da aliança, ainda para o autor, “não julga essa violência que transborda, não a censura, empresta-lhe as palavras para se expressar”; ao mesmo tempo, “a força da violência interior não sufoca o impulso para Deus, não o despedaça, mas fortalece o seu vigor”. Não é preciso tirar a violência da palavra de Deus.
É a batalha intelectual de Wénin, que conclui: “Se a Bíblia não falasse de violência, não me interessaria, não seria credível, porque não falaria do mundo em que vivemos”. Assim compreendidos, os Salmos censurados realmente merecem ser lidos. E, acima de tudo, rezados.
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Violência nos Salmos: recurso e necessidade, segundo André Wénin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU