Antropóloga observa que pandemia e estados de crises que parecem ameaçar ‘os brancos’ são encarados pelos indígenas como realidade concreta e, talvez, irreversível
Enquanto nós ocidentais pensamos, analisamos, produzimos dados sobre a pandemia, a degradação ambiental, a relação entre os dois, e analisamos novamente, os indígenas vivem em outra temporalidade. Para eles, uma situação de pandemia é real desde que o primeiro ‘branco’ se aproximou e o primeiro parente adoeceu. E a degradação ambiental é vivida até antes desse sujeito chegar na aldeia. Essa é a perspectiva que a antropóloga Nicole Soares-Pinto traz ao analisar, pela figura do xamanismo, a relação que os indígenas têm com o mundo. “Os pajés têm duas visões. Pois as plantas e os animais são vistos pelos pajés em forma humana e são por eles visitados diplomaticamente em suas próprias malocas. O fundo do rio é uma aldeia, a floresta idem, visíveis e acessíveis na experiência de um corpo preparado para isso”, relata, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Para Nicole, essa relação tão estreita com as outras formas de vida não humanas faz com que essas comunidades sintam desde muito cedo o impacto do desequilíbrio. Veja que, por exemplo, se nós investigamos ainda se o desequilíbrio ambiental jogou o novo coronavírus para dentro de nós, os povos originários não apenas têm certeza como sofrem há muito as consequências de situações como essas. “Para os povos indígenas a catástrofe já aconteceu e não para de acontecer. Não é como para nós, que olhamos para a catástrofe e pensamos: ela ainda vai acontecer, tem como frear, podemos nos unir, de preferência em uma assembleia ou encontro em uma cidade bonita da Europa com alguém nos servindo, para pensar um modo de enfrentar nossos próximos anos”, dispara.
Das suas experiências etnográficas, a pesquisadora traz ao longo da entrevista uma série de vivências que revelam como os indígenas percebem e vivem essas crises. Como o caso do homem que sonhou que o sol caía por causa dos humanos e de suas ações no planeta. “Desmatamento (ou incêndios criminosos) é uma forma de afastar os seres dos cuidados uns dos outros, cortar redes de relações de maneira abrupta, com muita tristeza envolvida. Mas também raiva por parte dos espíritos Donos dos lugares, que podem querer se vingar”, explica.
A dor da perda irreparável fica ainda mais clara no relato de ancestrais que morrem, ou vão embora, como dizem, e levam consigo todo um passado de saberes que vão se esvaindo no tempo. “Estamos diante e circundados por uma série de colapsos. Mas a magnitude dessas perdas não é maior que a capacidade de reorganização e retomada demográfica dos povos indígenas, enraizadas, é muito importante saber, na garantia do seu direito territorial com a demarcação e homologação das Terras Indígenas, e em suas capacidades de “viver nas ruínas”, em pequenas parcelas de terras, cantos de mata, povoados ribeirinhos e bairros de grandes cidades”, resume.
Nicole Soares-Pinto (Foto: Aqrquivo pessoal)
Nicole Soares-Pinto é professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Possui doutorado em Antropologia Social pela Universidade de Brasília - UnB, mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná - UFPR e graduação em Comunicação Social pela mesma universidade. Pesquisa entre povos indígenas de língua tupi-tupari (Wajuru) e língua macro-jê (Djeoromitxi), rio Guaporé/ sudoeste amazônico, desde 2007. Seus interesses de pesquisa dizem respeito à relação entre povos indígenas, terra e Antropoceno.
IHU On-Line – Como podemos compreender o xamanismo? Que chave de leitura podemos apreender do mundo a partir dele?
Nicole Soares-Pinto – Xamanismo é um termo muito amplo, de origem siberiana, incluindo práticas e concepções que podem ser bastante distintas, procedimentos corporais e oníricos, encantações contra doenças, poéticas de cura e restabelecimento vital de pessoas e lugares. Numa rápida pesquisa no buscador mais comum, sabemos que o termo se refere àquele que é inspirado pelo espírito, que não perdeu a conexão ou integração.
Na Amazônia, o conceito de espírito é tudo menos de fácil compreensão. Numa definição fornecida por E. Viveiros de Castro, tal conceito não designa uma classe ou gênero de não humanos, mas uma certa vizinhança obscura entre o humano e o não humano, marcada antes por uma transcorporalidade que por uma negação da corporalidade.
Minha aproximação com o tema do xamanismo é sobretudo etnográfica e passa por minha convivência com os pajés e seus parentes nas aldeias da TI Rio Guaporé, nas margens do rio Guaporé, na divisa entre Brasil e Bolívia. Esses pajés passam por restrições corporais severas, por meio das quais são habilitados a viajar pelos cosmos, e a estabelecer relações sociais com seres outros que humanos.
(Mapa: ISA)
Eles acessam a dimensão invisível para não pajés de tudo o que existe, e por isso meus interlocutores de pesquisa dizem que os pajés têm duas visões. Pois as plantas e os animais são vistos pelos pajés em forma humana e são por eles visitados diplomaticamente em suas próprias malocas. O fundo do rio é uma aldeia, a floresta idem, visíveis e acessíveis na experiência de um corpo preparado para isso, o corpo dos pajés.
Esses corpos apresentam uma ontologia distinta, e são ditos pesados e perigosos, pois constituídos internamente por “objetos” que se revelam pessoas, animais e armas diferentes dos próprios pajés que os abrigam, quando esses especialistas xamânicos entram em combates oníricos com espíritos malfazejos, neste plano invisível para nós. Essas armas podem ainda “sair” do corpo descontroladamente. Por isso a saliva de um pajé é perigosa, sua pele é diferente das demais pessoas, ele não pode comer qualquer coisa, não pode se coçar, não pode falar alto etc.
As curas, naquele lugar do Guaporé, são experimentadas duplamente: enquanto os pajés assopram e chupam as doenças do corpo dos doentes, retirando por sua garganta flechas de espíritos em forma de pedras, eles estão, no plano onírico, investigando o paradeiro da alma dos seus pacientes e guerreando contra espíritos para trazê-la de volta e inseri-la novamente no corpo daquele que está em tratamento xamânico. Pajés também podem trazer a alma de bebês e inseri-la no útero de mulheres que a assim o desejem.
As doenças são concebidas como flechas envenenadas ou objetos patógenos inseridos nos corpos por espíritos ou duplos de tudo o que existe. São práticas localizadas de conhecimento e ação, pertinentes àqueles povos com os quais mantenho relações de interlocução, assessoria e pesquisa.
O que eu acho que o xamanismo nos fornece como chave de leitura é justamente a duplicidade de todo ser e de todo acontecimento, como a etnóloga Tânia Stolze depreende a partir de sua etnografia da caça aos porcos entre um povo tupi-guarani no Xingu, os Yudjá. Essa duplicidade aponta para o fato de que o que apreendemos como “natureza” é a “cultura” dos Outros (os não humanos ou extra-humanos).
IHU On-Line – De que forma as ideias de vida e morte se relacionam no xamanismo?
Nicole Soares-Pinto – Na minha comunicação no IHU ideias [vídeo abaixo], eu conto uma história de 2013, quando ouvi um sonho de Neirí, o pajé djeoromitxi da aldeia Baía das Onças com quem mais convivi. Neirí havia visitado Tohõ, o Sol, que o recebeu em sua casa. Sentado em seu banco e portando seu chapéu, lhe contara que estava muito envergonhado e pensava inclusive em ir embora. Com sua luz, Tohõ vê tudo o que acontece aqui na terra, e tem observado a recorrência das brigas, violências e mortes entre as pessoas. Aliado a este fato, Tohõ estava realmente aborrecido com “as fábricas, as químicas e as queimadas” dos eré (não indígenas). Toda a poluição estava prejudicando sua visão e o seu “suspiro”, sua respiração.
Tohõ, que lá de cima consegue ver tudo aqui embaixo, não estava mais respirando bem. O pajé sonhador tentou argumentar, dizendo-lhe que ele não poderia abandonar os filhos que ele mesmo havia criado. Seu comentário não surtiu muito efeito, pois Tohõ retrucou: “Antes vocês me davam colar e chapéu, me agradavam. Agora, estou ficando doente e envergonhado! Vou embora.”
Neirí acordou preocupado e observou que naquele dia Tohõ demorou a aparecer no horizonte, e, quando o fez, estava fraco. Registrando a dimensão sensível do seu sonho, em sua exegese o pajé sublinhou sua preocupação com a possibilidade da partida definitiva do Sol e o início (e/ou a volta) de um mundo completamente escuro e podre, como era nos tempos de antigamente, aquele que chamamos de mítico. Nesse tempo, o primeiro Sol caiu do céu como uma arara abatida, e deste evento sucedeu-se uma longa noite durante a qual todos os seres e todas as coisas se reanimaram tornando-se antropofágicos.
Meus interlocutores indígenas nunca dizem que alguém morreu, mas que “fulano foi embora”. Desde que cheguei em campo, em novembro de 2008, surpreendi-me com a frequência com que as pessoas chegavam até mim para contar sobre a morte de algum parente próximo, a maneira e a ocasião em que tinha ocorrido, em detalhes minuciosos. Esses eram os primeiros relatos que eu escutava quando conhecia alguém. Eventos tão pesarosos, na minha percepção, dificilmente deveriam ser contados a um desconhecido.
Percebi, contudo, que as condições de minha presença ali incitavam esses relatos. Estar sozinha, num local muito distante, longe dos meus parentes, colocava a dúvida quanto a se realmente eu os tinha, ou se, fato mais provável, eu os havia perdido recentemente. A primeira conexão estabelecida comigo era, do ponto de vista deles, uma espécie de compartilhamento do estado de luto – uma interrupção dos cuidados entre os parentes.
Mesmo depois de muitas voltas ao campo e de saberem que meus parentes, em sua maioria, estavam vivos, eu continuava despertando esses relatos. Percebi desde então uma relação entre distanciamento e morte, encapsulada numa curiosa frase de um amigo Wajuru sobre um parente morto: “Depois que ele morreu, a gente se afastou”. E morrer é, justamente, andar/seguir por um caminho, hinõ wi, na língua djeoromitxi, o caminho dos mortos. Mas a vida continua neste outro “lugar”. Quando uma plantação não vinga, se diz que aquelas sementes fugiram. Desmatamento (ou incêndios criminosos) é uma forma de afastar os seres dos cuidados uns dos outros, cortar redes de relações de maneira abrupta, com muita tristeza envolvida. Mas também raiva por parte dos espíritos Donos dos lugares, que podem querer se vingar.
A antropóloga E. Povinelli, a partir de sua interlocução com os aborígenes australianos, afirma que as coisas existem através de um esforço de atenção mútua. Então, é como se a gente pudesse dizer que vida é relação, e que relação é diferença, enquanto morte é afastamento, corte ou esgotamento de relações. Há uma espécie de analogia entre a morte de um parente e a possível partida do Sol que inviabilizaria, ao menos por um período importante, a vida na terra.
IHU On-Line – Que luzes o multinaturalismo pode trazer para uma outra compreensão acerca do Antropoceno?
Nicole Soares-Pinto – Essa é uma resposta ainda a ser ensaiada, e que precisa nunca ser encerrada. Mas se posso dizer alguma coisa, é que é preciso inicialmente pensar que para os povos indígenas a catástrofe já aconteceu e não para de acontecer. Não é como para nós, que olhamos para a catástrofe e pensamos: ela ainda vai acontecer, tem como frear, podemos nos unir, de preferência em uma assembleia ou encontro em uma cidade bonita da Europa com alguém nos servindo, para pensar um modo de enfrentar nossos próximos anos, formularmos nossos acordos, colocarmos num papel e depois, voltarmos para nossa casa, ou cidade, ou país, seguirmos com as nossas vidas.
É como se o ato de pensarmos e nos organizarmos “assembleisticamente” para sobreviver à catástrofe nos livrasse dela. Mas o fato é que não podemos nos livrar do que nós mesmos somos, ainda que precisemos arrumar um jeito o mais digno possível de habitar esse brutal paradoxo.
A política multinaturalista não é cosmopolita, é cosmopolítica: o que os povos indígenas constroem primeiramente são corpos capazes de se sustentar em uma rede de coexistências (entre humanos, não humanos, extra-humanos, mais do que humanos), onde toda e qualquer ação tem uma reação por esses outros seres, que também têm seus próprios locais, suas próprias ideias, regras de convivência e protocolos de recepção.
Os povos indígenas responsabilizam-se diante das forças cósmicas, tomando o ocidente seriamente, mas nem por isso concedendo-lhe centralidade. Com isso, sustentam o compromisso de testemunhar tanto a vitalidade da terra e suas redes coexistenciais, quanto a extinção/morte como a descontinuidade de relações de troca e cuidado entre os seres por meio de um afastamento. Os acordos e alianças políticas dos povos indígenas com os não indígenas, e sua luta frente aos Estados Nacionais, estão sustentados por esta rede e pela atenção a tais protocolos e regras com estes outros seres, derivam dela, não existem per se.
Quando perguntei, em 2016, a Moerô Djeoromitxi, um respeitado professor indígena, o que ele pensava da crise ambiental em curso, ele me disse prever o fim do mundo não com um incêndio ou um dilúvio, mas sob ações de raios cada vez mais frequentes e mortais. Ele disse: “Para mim, o mundo vai acabar com um raio bem forte”. Foi ele mesmo quem me deixou saber que tais raios e tempestades são as flechas de pajés fortes dos tempos antigos, ‘parentes’ antigos já mortos e que se encontram atualmente no patamar celeste. Foram esses pajés de antigamente que asseguraram que não morressem todos os seus parentes nas epidemias de sarampo passadas, mas que já não estão mais aqui: de lá do “céu” se comunicam com os vivos na terra, por meio de raios, trovões, chuvas, tempestades.
Do que aprendi com os povos do Guaporé, é preciso tomar atenção que não só os seres possuem duplos invisíveis, mas também os eventos e a história possuem um duplo sobrenatural: a possibilidade do fim do mundo se dá por meio da assimetria (ou da relação diferencial) disposta entre povos da terra e povos do céu, povos do presente e povos do passado (que continuam vivendo em um outro lugar). O poderoso é antigo. O passado é alteridade e alteração, mesmo que esse passado seja, enfim, contemporâneo, mas em um lugar tão distante quanto o “céu”.
Nós, cosmopolitas, se continuarmos a acreditar no “espaço público/humano” como contraparte de um conceito de “natureza” que só pode compor, neste sentido, “um mundo cego e cognoscível e apropriável”, como nos diz Isabelle Stengers, continuaremos a centrar nossas ações em nós mesmos e na manutenção de nossa excepcionalidade frente aos Outros, tanto quanto na autoridade sobre o futuro. Deste modo, não forjaremos tecnologias/modos de sobrevivência à altura dos acontecimentos.
IHU On-Line – Por que a demarcação de terras indígenas é tão central quando falamos em política de preservação ambiental?
Nicole Soares-Pinto – Porque vários estudos mostram que a presença de povos indígenas nas terras que tradicionalmente ocupam garante maior preservação ambiental. São eles que mantêm a floresta em pé, por possuírem, justamente, uma outra relação com ela. De acordo com o Relatório Anual do Desmatamento 2019 do MAP Biomas Alerta, do total, 77% em área correspondem a imóveis rurais; 12% sobrepõem-se integralmente ou em partes com Unidades de Conservação - UC; e 3,6%, uma quantidade infinitamente menor, com Terras Indígenas - TI.
Para os povos indígenas, a floresta não é um recurso a ser apropriado ou um espaço a ser cercado. Ela é um mundo inteiro, um mundo com o qual uma aldeia, um povo indígena, coexiste, isto é, deve levar em consideração de atenção e cuidado em toda e qualquer ação, desde a construção de suas moradias, até uma expedição de caça, de pesca, cada ato de plantio etc. Seu modo de habitar a terra – esse conjunto de inter-relações compreendido pelas matas, os rios, os ares, o subsolo, as árvores, as plantas, os animais todos, os espíritos, os povos, enfim, todos os existentes – escapa aos códigos da propriedade.
Como disse Kretã Kaingang em 04/06/2020 na Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas e Meio Ambiente: “O meio ambiente é tudo para nós, cada Terra demarcada é a volta de biodiversidade, da floresta, dos bichos, da água limpa e quando você não demarca você leva o desmatamento, a poluição e o garimpo”.
Vale lembrar ainda que o direito não constitui uma Terra Indígena, pois quem constitui Terras Indígenas são os povos indígenas. Seu direito às terras que tradicionalmente ocupam é um direito originário, “um direito antes do direito”. Por isso que o ato de demarcação e homologação de uma Terra Indígena é um ato meramente declaratório por parte do Estado Nacional, pois o Estado não pode legislar sobre aquilo que lhe antecede.
Em contraposição à relação indígena com a terra, há toda uma rede transnacional baseada no casamento ignóbil entre Estado e grandes corporações, que é responsável por uma política de extinção. Temos chamado essa política de neoextrativista, pois seria característica do liberalismo tardio e produtora de bolsões de abandono e condições pauperizadas de habitabilidade nas pós-colônias.
Seu gêmeo duplo é o chamado capitalismo verde, pautado na financeirização da natureza. Tanto um quanto o outro mantêm separados os agentes e seus territórios, os existentes e sua rede coexistencial de relações e cuidado, em que os seres cocriam suas condições de existência. Na definição de Deleuze e Guattari, essa separação seria própria dos “civilizados”, que continuamente dividem ou se apropriam dos fluxos da terra por meio da unificação dos diferentes povos em uma única categoria: o humano, excepcional e central. Por outro lado, os “selvagens” seriam aqueles que dividem os povos, o que eu entendo como implodir a unidade do antropos, mas preservam a unidade imanente da terra.
IHU On-Line – Além da demarcação, que outras ações o Estado deve realizar para proteger os modos de vida dos povos originais?
Nicole Soares-Pinto – Os povos indígenas têm demandas específicas nas áreas da saúde e educação, gestão e proteção territorial, direitos à repartição de benefícios advindos de conhecimentos associados, e pela efetivação do direito à consulta prévia, livre e informada sobre empreendimentos que impactam suas terras. Também seria importantíssimo que o seu direito ao veto, o direito de dizer não a projetos que impactam suas vidas, fosse estabelecido e respeitado.
Nota-se também hoje uma espécie de retomada do projeto assimilacionista do Estado em diversos âmbitos, desde a desregulamentação de leis ambientais, até o encarceramento de indígenas e a pouca observância dos seus direitos constitucionais e convencionais em casos processuais que envolvam réus indígenas. Penso ser preciso fazer uma séria discussão a este respeito.
IHU On-Line – Pensando desde o perspectivismo, especialmente dos povos amazônicos, como compreender a pandemia? Que mudanças na relação com o planeta ela nos incita?
Nicole Soares-Pinto – André Kodjowoi Djeoromitxi, tentando traduzir alguns dos pressupostos de seu mundo em uma aula para uma turma de graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Espírito Santo, no final de 2017, afirmou o seguinte:
“Nós acreditamos que existe muita doença, não é porque tem ou existe doença, é porque há muito desmatamento e acaba que os Donos da floresta e dos rios estão ficando com raiva, vai ter muita chuva, vai ter muito relâmpago, vai ter erosão, vai ter tudo, porque não se respeita a natureza. [...] o meu pai dizia: ‘Nós vamos todos adoecer, porque tem tanta queimada, estão queimando várias folhas que são venenosas e nós vamos sofrer as consequências’. E não está distante disso não, a gente realmente sofre as consequências de desmatamento!”
Adoecimento indígena, desmatamento, ignorância e inconsequência dos Brancos: triste e preciso diagnóstico. Ainda mais nesses tempos pandêmicos que estamos vivendo, em que a origem zoonótica de vários vírus é advinda de ambientes extremamente perturbados pela ação humana. Há uma importante convergência entre os conhecimentos ancestrais dos povos indígenas e os mais novos consensos científicos, e sem dúvida essa compatibilidade deveria ensejar uma mudança pragmática nossa em relação ao nosso modo de vida. Contudo, creio que qualquer reivindicação de exclusividade, autoridade e autoria sobre tal mudança seria sobretudo ingênua.
IHU On-Line – Que notícias a senhora tem sobre a forma como a pandemia impactou os Djeoromitxi e demais povos da Terra Indígena Rio Guaporé?
Nicole Soares-Pinto – Duas senhoras, Pacoreirü Djeoromitxi e Nambuiká Arikapô, faleceram durante o surto de Covid em meados de 2020 nas aldeias da TI Rio Guaporé. Não foram testadas e por isso não constam nas estatísticas oficiais. Essas duas mortes são muito significativas, porque são pessoas que nasceram antes mesmo do contato com os não indígenas, enfrentaram a epidemia de sarampo nas antigas malocas, viram a maioria de seus parentes morrer, sua terra imemorial ser invadida e descaracterizada primeiramente pela empresa seringalista, depois por grandes fazendas de gado, centrais hidrelétricas, cidades.
Ambas foram escravizadas em barracões de seringa e deslocadas forçadamente para um Posto Indígena. Falavam mais de três línguas diversas, incluindo línguas indígenas e o português, e criaram/cuidaram/fizeram crescer muitas pessoas, conduzindo seu coletivo de parentes durante muitas décadas na manutenção e recomposição de novas aldeias. A morte dessas duas mulheres por omissão do Estado é uma catástrofe para a qual não temos indicadores e conceitos suficientes.
Eu disse no início que para esses povos a catástrofe já aconteceu. Para se ter uma ideia, todos os velhos e velhas que conheci na TI Rio Guaporé viram seus pais e avós morrendo com o sarampo. No início do século, os Tupari eram cerca de três mil pessoas; em 1934, quando receberam a visita do antropólogo Snethlage, havia somente 250 indivíduos; em 1948, segundo Franz Caspar, havia 200 e, em seu retorno em 1955 (meses após uma epidemia de sarampo), apenas 66. Caspar ainda calcula que os Arikapô eram quase três mil pessoas antes da epidemia de sarampo.
Em 2008, conheci somente quatro velhas arikapô e mais uma mulher de meia idade, e soube de uma única família na TI Rio Branco cujo chefe era Mamoa, um afamado pajé, hoje falecido. Conheci também o último velho sem descendentes de uma segmentaridade wajuru (os wakunaniat, povo Cotia), também já falecido, bem como vi uma segmentaridade makurap se extinguir. A quantidade de extinções é grande e assombrosa, e eu não posso deixar de mencionar que os nomes dos seus clãs são absolutamente todos epônimos de animais e plantas.
Pensemos ainda no Aruká Juma, cuja morte por Covid ganhou os noticiários, por se tratar do último guerreiro de seu povo, ou nos Canoé e Akuntsu, retratados no filme Corumbiara, pouquíssimas pessoas sobreviventes de massacres, os dois últimos Piripkura, por exemplo, ou o índio do buraco, único sobrevivente que decidiu viver absolutamente sem nenhuma copresença humana e até hoje tem esse desejo respeitado por meio da interdição de uma área indígena, a TI Tanaru.
A lista de extinções ou quase extinções é tão grande quanto a imensa diversidade biológica, cultural e linguística documentada nesta região de cujos povos me refiro, a bacia do Madeira, a ponto de alguns arqueólogos, em especial Eduardo Neves, estarem considerando a região como um “hub civilizacional”, local de domesticação da mandioca e ponto de dispersão tupi e de antigas e duradouras ocupações (vide o sítio Teotônio e o sambaqui Monte Castelo).
Em vista dessa enorme lista de extinções que nunca para de se atualizar, não consigo não lembrar do que diz a filósofa Vinciane Deprest da morte de Martha, o último pombo-passageiro: “O mundo morre de cada ausência; o mundo explode de ausências [...] Quando um ser não existe mais, o mundo de repente se limita, e uma parte da realidade colapsa”. Estamos diante e circundados por uma série de colapsos. Mas a magnitude dessas perdas não é maior que a capacidade de reorganização e retomada demográfica dos povos indígenas, enraizadas, é muito importante saber, na garantia do seu direito territorial com a demarcação e homologação das Terras Indígenas, e em suas capacidades de “viver nas ruínas”, em pequenas parcelas de terras, cantos de mata, povoados ribeirinhos e bairros de grandes cidades.
É preciso lembrar e cuidar. Não esqueço do tom grave com que chamou minha atenção Kodjowoi quando me visitou na cidade de Vitória (ES). Desde a orla do mar, olhando para os morros da cidade todos apinhados por casas, perguntou: “quantas pessoas que moram ali e nem se lembram mais que são indígenas?”.