Para o professor, houve um tempo em que o trabalho informal era um caminho para formalização, conquistas sociais e trabalhistas. Realidade que hoje é engolida pelo discurso do empreendedorismo
No contexto pandêmico que temos vivido, são muitas as análises quanto ao aumento dos trabalhos informais via plataformas de aplicativos e também os efeitos nocivos dessas práticas para o trabalho no médio e longo prazo. O professor e sociólogo Ruy Braga, como muitos, destaca que a pandemia acelerou um processo de degradação do trabalho no século XXI que já vinha em curso.
Porém, chama a atenção para o que representa essa degradação: uma espécie de “nova versão” da informalidade laboral, aquela que não assegura nenhum direito sindical, social ou trabalhista. “A informalidade, a rigor, para um país como o Brasil, países do Sul global de uma maneira geral, como África do Sul, Índia, México e tantos outros países, não é nenhuma novidade. No entanto, a ‘velha informalidade’ tinha certas características que eram muito transparentes”, analisa na conferência “Digitalização, desigualdade e precarização do trabalho na pandemia no Brasil. Limites e perspectivas”, promovida em formato de live pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. A seguir, reproduzimos parte da conferência de Ruy Braga em formato de entrevista. A íntegra pode ser acessada no vídeo abaixo.
A reflexão de Braga não se trata de uma defesa saudosista da antiga formalidade como se fosse uma situação menos pior do que a atual, atravessada pelas lógicas da plataformização. “Por incrível que possa parecer, a informalização da economia, às vezes muita associada com o trabalho doméstico, era basicamente um desdobramento do avanço da indústria. Assim, ao mesmo tempo que se tinha o avanço do emprego formal, também havia um aumento da informalidade”, explica. E acrescenta: “existia uma espécie de horizonte de formalização que significava, entre outras coisas, o acesso a certos direitos, garantias e benefícios, o acesso à sindicalização e a direitos sociais. O horizonte dessa velha informalidade, mesmo que não se realizasse, e não se realizava mesmo para uma parcela enorme da população, era a formalização”.
Agora, há um discurso de empreendedorismo que empurra esse trabalhador para a informalidade via plataformas de aplicativos sem que haja qualquer possibilidade de, num futuro, assegurar direitos e proteções mínimas. “É uma informalidade que aparentemente apenas imita o trabalho por conta própria, mas, em termos efetivos, verificamos que é uma coisa muito diferente. Há uma nova subordinação do trabalhador a uma empresa, geralmente, não exclusivamente, multinacional como uma grande companhia monopolista internacional, algo que não existia antes na velha informalidade”, destaca.
Por isso, defende que esse “não é o trabalho por conta própria, pelo menos não no sentido autêntico do termo, que é você trabalhar para si. Na verdade, o que se tem é o trabalho para uma empresa que diz que você é um empreendedor e não um trabalhador. Essa é a grande diferença que observamos hoje com a plataformização por meio dessas plataformas territoriais”.
Na conferência, Braga ainda detalha que o trabalho via plataformas não se resigna apenas a entregadores ou motoristas. Há uma série de outras atividades e inclusive de profissionais liberais que têm sido jogados na plataformização. “Destaco as plataformas de click work, as quais abrem suas ferramentas digitais para trabalhadores que estão espalhados pelo mundo”, onde pessoas executam tarefas mais simples como catalogar e codificar produtos em sistemas. “O segundo exemplo são as plataformas de freelancer, que têm atraído profissionais liberais, como publicitários, jornalistas, advogados, arquitetos, designers industriais, toda uma miríade de profissões qualificadas, pois são trabalhadores com formação universitária, detêm qualificações que são consideradas raras no mercado de trabalho”, completa.
Frame do vídeo de Ruy Braga durante conferência para o IHU
Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania - Cenedic. Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, é autor dos livros A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012) e A rebeldia do precariado (São Paulo: Boitempo, 2017).
A íntegra da conferência em vídeo está disponível aqui.
IHU On-Line – Em que consistem as transformações que vem sofrendo o mundo do trabalho na atualidade?
Ruy Braga – Meu recorte é sobre a plataformização do trabalho, e nessa questão vou tentar destacar o trabalho basicamente no setor de serviços nas suas múltiplas apresentações e realidades. Nesse sentido, é interessante começar com uma breve apresentação sobre quais os significados, para o trabalho, do processo de plataformização. Os significados são múltiplos, mas existe um determinado fluxo que conduz os trabalhadores a uma certa direção. Isso não quer dizer que todos os trabalhadores se submetem à plataformização da mesma maneira. Não é bem assim e vamos discutir um pouco isso.
IHU On-Line – Que fluxo é esse?
Ruy Braga – Eu ilustro com três grandes tipos de plataformas que têm se consolidado, em especial, a partir do contexto de aprofundamento da crise da globalização, que se inicia em 2008. É claro que a dinâmica de ampliação da crise é muito desigual porque depende muito das regiões, dos continentes e países, mas ela se aprofunda a partir de 2011, 2012 e, inclusive, impulsiona um ciclo de protestos sociais em escala global. É um pouco este o horizonte da história: desde 2011, 2012 até hoje tem se assistido a um processo progressivo, sistemático e muito forte de plataformização de trabalho no setor de serviços.
IHU On-Line – Quais são os tipos de plataformização que temos verificado?
Ruy Braga – São muitos e destaco aqueles que me parecem mais interessantes para articular essa discussão sobre digitalização, desigualdade e precarização. Em primeiro lugar, destaco as plataformas de click work, as quais abrem suas ferramentas digitais para trabalhadores que estão espalhados pelo mundo. Como são plataformas virtuais, praticamente se abrem para trabalhadores no mundo todo e esses trabalhadores precisam passar por um processo de cadastro, se logar nessas plataformas e realizar tarefas que são bastante simples e fragmentadas, mas que não compensam a automatização ou a programação da inteligência artificial para realizá-las.
O exemplo típico é o da Amazon Mechanical Turk, que é o mais conhecido porque a Amazon é a principal empresa em valor de mercado no mundo. Assim, ela abre essa plataforma para o mundo todo para pessoas que se inscrevem e começam, conforme a demanda, sua própria vontade e disposição de tempo, a realizar tarefas que são distribuídas pela plataforma, as quais normalmente são muito simples, como associar códigos a certos produtos, redigir pequenas sinopses a partir de determinados filmes ou resumos relativos a livros e descrições de produtos. Ou seja, são tarefas bem simples e padronizadas que teriam um custo considerado excessivo pela empresa se elas fossem entregues ao processo de inteligência artificial. Então o conteúdo do trabalho acaba ficando muito esvaziado e acaba sendo realizado de uma maneira muito mecânica por esse tipo de trabalhador, que recebe em bitcoins para realizar esse tipo de tarefa.
Na realidade, esse é um exemplo limítrofe, porque existem plataformas de click work que não são tão extremas quanto a da Amazon Mechanical Turk. Mas normalmente, quando se trata desse tipo de trabalho, a Amazon é o primeiro nome que vem à mente porque, como todos sabem, é uma grande empresa e tem sido uma ponta de lança de iniciativas de precarização do trabalho, em especial, nos seus depósitos e centros logísticos. Não à toa, fazendo referência ao filme que recentemente ganhou o Oscar, Nomadland, com direção de Chloé Zhao, o programa da Amazon, o CamperForce, é um dos momentos que se encontra retratado no livro de Jessica Bruder que deu origem ao filme. Ele mostra bastante bem como o trabalho sazonal, intermitente, aquilo que se chama de trabalho nômade nos Estados Unidos, está ligado a essas iniciativas da Amazon como uma espécie de ponta de lança.
A Amazon também enfrentou recentemente um processo de sindicalização de trabalhadores de um depósito no Alabama (EUA), com uma ampla campanha nacional e internacional que, inclusive, envolveu o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, o qual explicitamente se posicionou a favor da sindicalização dos trabalhadores da Amazon. Isso para dizer que o processo de plataformização do trabalho, em especial esse tipo de trabalho, está inserido num contexto conflitivo. Ou seja, está evoluindo de maneira muito rápida, desenvolvendo-se em diferentes direções, tanto no que diz respeito à precarização do trabalho quanto à sindicalização ou ainda outros eixos mais afinados com uma agenda de proteção trabalhista.
O segundo exemplo são as plataformas de freelancer, que têm atraído profissionais liberais, como publicitários, jornalistas, advogados, arquitetos, designers industriais, toda uma miríade de profissões qualificadas, pois são trabalhadores com formação universitária, detêm qualificações que são consideradas raras no mercado de trabalho. Não são trabalhadores subalternos, mas também se submetem a essa dinâmica de extrema taylorização do trabalho, ainda que nesse caso seja um trabalho mais qualificado.
IHU On-Line – Como funcionam as plataformas desse segundo exemplo?
Ruy Braga – Tive a oportunidade de acompanhar uma dessas plataformas que atuava no mercado de arquitetura e reformas aqui na cidade de São Paulo e o processo de trabalho era mais ou menos assim: o arquiteto se oferece para trabalhar e a plataforma oferece a ele uma quantidade “x” de clientes que buscam esses serviços através dela. E isso é o que faz com que haja uma relação entre o arquiteto e os clientes. É uma relação que se dá por meio virtual e, eventualmente, eles se encontram em algum escritório da empresa, mas em geral isso se desenvolve virtualmente.
O arquiteto fica responsável por elaborar o projeto, ou um pré-projeto, em que vai utilizar um programa que é o padrão dessa plataforma. Fica o tempo todo conectado com esses clientes, que passam informações, mas não têm nenhuma obrigação de fechar com esse arquiteto. Tive a oportunidade de perceber que a média de clientes efetivos que o profissional conseguia conquistar nesse processo era de um cliente para cada dez pré-projetos que eram apresentados. Assim, o arquiteto fica o tempo todo fazendo pré-projetos, mas não tem a segurança de estar fechando com o cliente.
Desse modo, ele apresenta os pré-projetos, e o cliente, se não gostar, simplesmente vai embora, não tem que pagar nada e não tem nenhum tipo de compromisso. Depois, vem a etapa seguinte, que é a de realização da obra, quando outro arquiteto toma a frente do acompanhamento de obra. O que se tem na verdade é uma divisão do trabalho num sentido taylorista, ou seja, uma fragmentação e distribuição de tarefas para diferentes trabalhadores, e o que está produzindo esse tipo de expediente, esse tipo de digitalização e plataformização do trabalho é um trabalhador especializado só que subordinado a uma dinâmica despótica, insegura, de trabalho. Afinal, esse profissional, que tem condições de dar conta da integralidade desse tipo de trabalho, não tem segurança de fechar contrato, não acompanha a obra e há uma desconexão entre o trabalho intelectual e depois o projeto e a obra.
Observe como esse modelo precário de trabalho é muito parecido com a dinâmica do trabalhador subalterno e a remuneração também segue essa lógica. A maior parte do que os clientes pagam fica com a plataforma e não com o arquiteto, que na verdade é superexplorado e fica bastante fragilizado no que diz respeito à própria renda. Essa perda de controle do processo de trabalho por um trabalhador qualificado é o que caracteriza essas chamadas plataformas de freelancer.
Temos também as empresas mais conhecidas pelo público de maneira geral, que são as plataformas de trabalho territorial: basicamente a empresa Uber, empresas de entrega como iFood e tantas outras que, no Brasil, tiveram um boom muito acentuado de 2016 e 2017 para cá. Esse momento é muito interessante para entendermos o tipo de regime de acumulação que essas empresas produzem, promovem e impulsionam. Todos estão lembrados que em 2015 e 2016 nós tivemos uma forte crise econômica no Brasil, que se traduziu, entre outros fatores, por elevação muito aguda e rápida do desemprego. Como as pessoas não podem ficar desempregadas por muito tempo, elas têm que se virar, tendem a ir para a informalidade, o que oportunizou a certas empresas se aproveitarem da situação e criarem uma espécie de nova informalidade ou um novo tipo de trabalho informal.
IHU On-Line – Mas a informalidade não é nenhuma novidade, correto?
Ruy Braga – A informalidade, a rigor, para um país como o Brasil, países do Sul global de uma maneira geral, como África do Sul, Índia, México e tantos outros países, não é nenhuma novidade. No entanto, a “velha informalidade” tinha certas características que eram muito transparentes. Normalmente, o que se verificava, além desse não acesso a determinados direitos e garantias trabalhistas, era o trabalho por conta própria, ou seja, o trabalhador ia vender alguma coisa na rua, montava um pequeno negócio e era um trabalho muito ligado àquele fluxo de migração campo–cidade que, no caso brasileiro, se intensificou nos anos 1950 e 1960, até meados dos anos 1970, tendo em vista o avanço da indústria no país.
Por incrível que possa parecer, a informalização da economia, às vezes muita associada com o trabalho doméstico, era basicamente um desdobramento do avanço da indústria. Assim, ao mesmo tempo que se tinha o avanço do emprego formal, também havia um aumento da informalidade. E muitas vezes o caminho da informalidade passava pela construção civil (também emprego informal na maior parte dos casos daquele período) até chegar na indústria, com carteira assinada, acesso a direitos.
O que precisamos destacar da velha informalidade são dois elementos: o primeiro deles é que está ligado ao processo de industrialização, e mesmo o trabalho por conta própria estava ligado ao processo de industrialização, tendo em vista o fato de que as pessoas que trabalhavam por conta própria vinham do campo para a cidade atraídas pela indústria.
Em segundo lugar, existia uma espécie de horizonte de formalização que significava, entre outras coisas, o acesso a certos direitos, garantias e benefícios, o acesso à sindicalização e a direitos sociais. O horizonte dessa velha informalidade, mesmo que não se realizasse, e não se realizava mesmo para uma parcela enorme da população, era a formalização, era uma perspectiva que apontava numa certa direção que podemos chamar genericamente de progresso ocupacional.
Isso era o passado ainda muito ligado à indústria. O presente, agora muito ligado à pós-indústria, ao colapso desse modelo de organização da economia em torno da indústria e dos empregos industriais e tudo aquilo que representa em termos de qualificação e renda, é muito diferente nessa nova informalidade. É uma informalidade que aparentemente apenas imita o trabalho por conta própria, mas, em termos efetivos, verificamos que é uma coisa muito diferente. Há uma nova subordinação do trabalhador a uma empresa, geralmente, não exclusivamente, multinacional como uma grande companhia monopolista internacional, algo que não existia antes na velha informalidade.
Assim, o que temos agora não é o trabalho por conta própria, pelo menos não no sentido autêntico do termo, que é você trabalhar para si. Na verdade, o que se tem é o trabalho para uma empresa que diz que você é um empreendedor e não um trabalhador. Essa é a grande diferença que observamos hoje com a plataformização por meio dessas plataformas territoriais principalmente, cujo modelo é a empresa Uber, a mais conhecida delas todas, ao ponto de especialistas usarem o termo uberismo para se referirem a este modelo neoliberal, a este regime de acumulação que está muito concentrado na dinâmica de investimento em startups, grandes fundos de investimento de risco, utilização de plataformas para mobilização de trabalhadores subalternos, em referência ao que foi antigamente o fordismo ou o toyotismo.
IHU On-Line – O que seria propriamente o uberismo, levando em conta, de um lado, a plataformização e, de outro, a desigualdade e finalmente a precarização do trabalho?
Ruy Braga – Existe uma conexão muito forte e, quando se comparam casos internacionais, percebemos nitidamente o que está acontecendo neste regime de acumulação, com estas startups que no começo operam com algum prejuízo, mas que depois crescem muito rapidamente e são vendidas para um grande conglomerado. Estas empresas se “vendem” como empresas de tecnologia, mas, na verdade, mobilizam trabalhos subalternos no setor de serviços, em especial no setor de entregas e transporte.
Esse tipo de empresa controlada por credores, ou seja, os detentores dos ativos financeiros, que têm a expectativa de garantir um fluxo de renda em um certo futuro, é o coração do que poderíamos chamar de regime de acumulação por espoliação. Ao contrário do regime de acumulação por exploração econômica do trabalho associado à indústria, o que temos hoje é uma situação diferente. Trata-se de empresas que acumulam por meio da espoliação de direitos trabalhistas e não reconhecem que os seus trabalhadores estão numa condição subalterna de trabalho ou numa relação contratual desigual. Consequentemente, os trabalhadores precisam ser protegidos por outro ente, que neste caso é o Estado ou a Justiça do Trabalho. Contratos como o do Uber beneficiam apenas uma das partes, o que deteriora o processo de proteção dos trabalhadores.
Mas o fato é que essas empresas atuam como o coração desse regime de acumulação por espoliação. Não se trata apenas da espoliação dos direitos trabalhistas; existe também a espoliação das cidades porque são empresas que usam as vias públicas e as deterioram, poluem o ar e não pagam nada por essas “externalidades negativas”, ou seja, não são responsabilizadas por absolutamente nada. São empresas que colocam milhares de outras “empresas” em circulação, em concorrência, cujo modelo de gestão envolve uma intensificação do ritmo de trabalho e, consequentemente, um aumento da exposição do trabalhador ao risco e ao acidente. São empresas que multiplicam as cidades com motociclistas e não são responsáveis por nada disso. Elas simplesmente se vendem como empresas de tecnologia que desenvolvem a conexão entre o consumidor e o fornecedor.
Então, o modelo de acumulação muda em uma certa direção, o que implica um aumento dos riscos para o trabalhador, uma elevação da jornada de trabalho e uma compressão dos rendimentos do trabalho. Isso tudo nos leva a algumas conclusões. Em primeiro lugar, essas empresas são a ponta de lança de um processo que ocorre em escala internacional e que tem relação com o desmantelamento dos pactos sociais protetivos. São empresas que se especializaram – quer porque sejam empresas corporativas internacionais, quer porque estejam atuando em mercados em que já existia uma certa condição de trabalho freelancer, quer porque estão se vendendo como empresa unicamente de tecnologia – em acumular por meio da degradação e deterioração dos pactos sociais protetivos que envolviam negociações coletivas, intermediação dos sindicatos, proteção pela Justiça do Trabalho, direitos sociais associados à carteira de trabalho. Isso tudo tem um nome: espoliação dos direitos sociais.
IHU On-Line – Qual seria a base dessa explicação?
Ruy Braga – A base, na minha avaliação, é que vivemos uma transição da economia do setor de serviços pós-industrial e é muito mais complicado assegurar uma intensificação dos ritmos do trabalho e um aumento geral da produtividade nesse setor, em comparação com o que ocorre na indústria quando se automatiza ou se investe em máquinas mais poderosas. No setor de serviços, a elasticidade do trabalho não se comporta da mesma maneira que na indústria.
Na indústria, historicamente, se estabelece uma jornada de oito horas de trabalho, mas para continuar acumulando, a indústria investe em tecnologia e inovação; no setor de serviços não funciona assim. O que funciona é algo distinto: é o prolongamento da jornada de trabalho e a compressão dos direitos do trabalho. Essa é uma dinâmica que é largamente utilizada e explorada por essas empresas.
No auge da pandemia no ano passado, os trabalhadores de entrega estavam fazendo jornadas mais longas e recebendo menos. Isso implicava que os aplicativos estavam colocando mais pessoas para trabalhar e acirravam a competição entre elas, pagando menos por entrega. Por causa disso, o trabalhador tinha que trabalhar mais e isso aumenta as desigualdades de renda. Além disso, um setor muito grande da população trabalhadora se vê sem ter uma alternativa a não ser se vender para essas empresas. Isso acontece porque tivemos uma crise em 2015 e 2016 e uma crise aguda do emprego, e do emprego para o subemprego. Tem uma massa de 14 milhões de pessoas desempregadas num momento em que somente 80% da capacidade produtiva está sendo utilizada. Nesse contexto, é claro que não há criação nem ampliação de empregos. Então, tem um aumento da dinâmica das desigualdades, fazendo com que as empresas se especializem em explorar as possibilidades de espoliação.
Em 2019, coordenei uma pesquisa em que conversamos com muitos trabalhadores de aplicativos, motoristas de Uber, e vi muito claramente a estratégia da empresa. Quando começou a ampliar o número de motoristas de aplicativos no Brasil, em 2017 e 2018, as taxas praticadas eram mais altas e a massa que estava ficando desempregada era incorporada por essas empresas, porque se sentia atraída por elas. Trabalhadores que eram terceirizados da empresa de energia elétrica da cidade de São Paulo, que ganhavam em torno de R$ 3 mil por mês, tinham jornada de trabalho e direitos garantidos, iam para o aplicativo e ganhavam R$ 5 mil trabalhando mais horas e em horários complicados. Mas ganhavam mais. Claro que é bom o trabalhador ganhar mais, mas conforme as empresas foram incorporando essa massa para competir uns com os outros, os trabalhadores tiveram que trabalhar muito mais horas para ter uma renda menor. No ano passado, com a pandemia, os rendimentos médios no setor de motorista de aplicativo caíram 60%. Então, eles ganham 40% do que ganhavam dois anos atrás. O que significa que o trabalho precário dessas plataformas pode ser uma alternativa num certo contexto, mas o desenvolvimento desse tipo de trabalho é prejudicial, sobretudo, aos interesses da classe trabalhadora.
Os trabalhadores de aplicativos são ainda mais pobres, muito jovens, com características próprias e divisões entre eles, inclusive de faixa etária e com expectativas diferentes. Lembro de ter entrevistado “motocas” [entregadores ou motoboys] que faziam entrega e que tinham tido a experiência de trabalhar com carteira de trabalho no setor de serviços e eles lamentavam o fato de já não terem a carteira de trabalho. Ao mesmo tempo, vi jovens que fazem entregas de bike que tinham outras expectativas. Eles não tinham muita preocupação com o futuro no que diz respeito à aposentadoria. Diziam que estavam fazendo aquela atividade para conseguir uma renda para gastar no final de semana. Então, tinha ali um total esgarçamento daquilo que se chamava de “a sociedade salarial” que buscava articular os rendimentos do trabalho com direitos e conquistas dos trabalhadores. Essa realidade, para aqueles jovens, não faz muito sentido, porque eles estavam mais preocupados com a festa do final de semana, com o bar, com ter uma grana no final de semana para poder gastar, do que com o futuro. Essas realidades distintas apontam numa direção para a qual estou tentando chamar a atenção, que é o desmanche do sonho e da utopia do trabalho protegido, com segurança, que garanta uma aposentadoria.
Ou seja, dessa utopia que seja capaz de superar a identidade entre inserção de tempo de trabalho e remuneração, que é basicamente bloqueada pelas mudanças da economia no que diz respeito à base, à estrutura das empresas e, ao mesmo tempo, é desmantelada por uma espécie de operação ideológica.
Hoje, é muito comum, na imprensa, observar a celebração do empreendedorismo de si, o autoempreendedorismo que, supostamente, equalizaria e igualaria o criador de uma startup e o empreendedor de si que trabalha para a plataforma, entregando comida no centro de São Paulo. Todos são vistos como empreendedores. Sabemos que na realidade não é assim. O empreendedorismo de si é o trabalho destituído de garantias, proteção e qualquer forma de organização ou associação e auto-organização, ou seja, é um tipo de trabalho que é completamente mercantilizado. Se a pessoa trabalha, ela recebe, ainda que seja pouco, e se não trabalha, não recebe, e os riscos [envolvidos no trabalho] são todos da pessoa.
Isso explica, em alguma medida, certos comportamentos dos “motocas” quando conversamos sobre política. Muitos deles relatam que votaram em Bolsonaro por conta do discurso linha-dura do presidente de acabar com a “bandidagem”, com a corrupção, e eles sentem [essa situação de violência] na pele, porque pegaram empréstimos para pagar as motos e poderem trabalhar. Se as motos são roubadas, que é algo que acontece com muita frequência, eles não conseguem pagar o seguro, ficam sem a moto e com uma dívida no banco. Quer dizer, o ódio ao bandido é muito grande nesta categoria.
Ao mesmo tempo, eles se veem como trabalhadores por conta própria, coisa que eles não são – são trabalhadores subalternos, mas existe uma autorrepresentação entre eles de que são trabalhadores por conta própria, que fazem a própria jornada de trabalho, os próprios rendimentos. Isso vem numa espécie de desconstrução da própria ideia e conceito de trabalhador ou classe trabalhadora. Não há noção estabelecida e clara de quem são o “nós” e o “eles”, qual é a clivagem que distingue uns dos outros: uns são empreendedores, outros são empreendedores igualmente? As fronteiras de classe ficam muito borradas por essa operação ideológica, ainda que as relações de produção e exploração e as relações de acumulação por espoliação continuem se reproduzindo de maneira incessante.
Esse é o desenho esquemático do uberismo e do que ele tem para oferecer a uma sociedade como a brasileira, que já é uma sociedade “pornograficamente” desigual, onde as desigualdades regionais são imensas. Então, uma sociedade tão desarticulada, tensionada, fragmentada, não pode ser unificada num regime de acumulação como este que se desenha.
Ainda que este não seja o regime de acumulação predominante, porque o número de trabalhadores é minoritário, é um regime de acumulação que serve de vanguarda para outras empresas que hoje contratam via CLT. Quando se verificam, no contexto pandêmico, os escritórios migrando para o home office, muitos trabalhadores sendo demitidos para serem contratados como PJs, o que se percebe é que o trabalho intermitente, que já se transformou na via preferencial de contratação no Brasil, pode oferecer a base para uma ampla plataformização de todas as categorias, de todas as profissões.