19 Agosto 2021
Para o professor e crítico literário Luís Augusto Fischer, as incontornáveis revoluções no campo da literatura, ocorridas nas últimas décadas, dão substrato para se pensar em um novo jeito de contar a história da literatura brasileira.
É o que ele se propõe em Duas formações, uma história — das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio, livro que a Arquipélago lançou nesta segunda-feira (16). A obra é resultado da pesquisa de pós-doutorado de Fischer, realizada na Université Sorbonne Nouvelle — Paris 3, na França.
Ao longo das páginas, o autor reflete sobre os múltiplos elementos que atravessam o percurso literário do Brasil, desde nosso passado colonial até dilemas contemporâneos, como o livro digital, as redes sociais e o apego às metrópoles. Destaca ainda a importância da canção, da voz dos povos indígenas e do movimento feminista como fenômenos sociais e históricos que devem ser levados em conta nessa narrativa.
“Cada historiador e cada história, não apenas sobre o objeto literatura, interpretam o passado, encontram linhas de força”, diz. “Trata-se de reavaliar esse patrimônio, repropor interpretações.”
Com um repertório de 40 anos dedicados a escrever e ensinar sobre história da literatura, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul também propõe um olhar atento sobre uma efeméride que promete gerar debates em 2022: o centenário da Semana de Arte Moderna.
“Será uma ótima hora para debater esse legado, que merece muitos reparos: essa versão sugere que tudo de bom, de libertário, de inovador que se fez no Brasil no século 20 (e talvez até agora) dependeu do Modernismo paulista, o que transforma Mário e seus intérpretes em visionários, por um lado, e em juízes supremos, por outro”, diz. “No entanto há muitíssima literatura de primeiro nível que nada tem a ver com Mário ou a Semana.”
Um dos críticos acadêmicos que mais transitam fora da universidade, ele também comenta nesta entrevista as novas tendências da cena literária e os autores que a compõem.
A entrevista é de Luiz Rebinski, publicada por Rascunho, 16-08-2021.
Seu livro é uma tese acadêmica que propõe uma “outra” maneira de olhar a história da literatura brasileira. Bem resumida, qual seria essa outra maneira?
Em fórmula ultrabreve, trata-se de pensar quais mudanças deve sofrer uma história da literatura produzida no Brasil de nossos dias tendo em vista duas imensas novidades: uma, o trabalho historiográfico e antropológico da última geração profissional universitária (que, por exemplo, destruiu as fantasias interpretativas de Caio Prado Júnior sobre o passado colonial brasileiro, fantasias que estão na base dos trabalhos de Candido, Schwarz e Bosi, e que, na Antropologia, apresentou interpretações de grande alcance e originalidade, como esta que atende pelo nome de “perspectivismo ameríndio”); outra, as incontornáveis revoluções no campo da literatura em si mesma (suporte digital de produção e circulação, a literatura como performance, incorporação da canção ao âmbito das letras, o surgimento de vozes novas criadas a partir da experiência negra, periférica, e indígena, etc.). Sem contar a voga de internacionalização da literatura e do pensamento, que impõe uma revisão do papel tanto da tradução na formação interna, quanto do fim de qualquer sonho nacionalista autonomista. Esse é a paisagem que o livro tenta desenhar.
De Otto Maria Carpeaux a Lúcia Miguel Pereira, passando ainda por Wilson Martins, há vários relatos sobre a história literária brasileira. Eles dão conta de nossa tradição?
Cada historiador e cada história, não apenas sobre o objeto literatura, interpretam o passado, encontram linhas de força, etc. Esses três e tantos outros são momentos desse percurso, o percurso das histórias da literatura; agora, trata-se de reavaliar esse patrimônio, repropor interpretações, etc.
Há muitas críticas em relação ao “encastelamento” da academia e seus professores, não apenas no âmbito da literatura. Seu livro está saindo por uma editora comercial, fora do circuito das editoras acadêmicas. Isso é uma maneira de levar discussões para além dos muros da universidade?
Pessoalmente sempre tive essa percepção, de que é preciso falar para fora dos muros. Mas nada contra os muros acadêmicos especificamente: ali também se produz inteligência. Esse meu livro tem a ver com isso: promovi vários seminários de pós-graduação, conversas intramuros, sobre o tema, e passei um ano estudando o assunto, num pós-doc, antes de chegar ao livro que agora vem ao mundo. Mas concordo com a insinuação da pergunta de que pode acontecer uma tendência de encastelamento, de falar apenas para os de dentro.
No ano que vem, a Semana de Arte Moderna completa 100 anos. A obra daqueles autores — e a essência do evento — reverbera ainda hoje? Como?
Outra questão imensa… Sim, reverbera porque, em suma, a visão do modernismo paulista, especialmente na versão do Mário de Andrade e seguidores/intérpretes (como Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido), é a que manda na visão mais difundida sobre história da literatura no Brasil. O que se pensa nas últimas décadas, na rotina das escolas, vestibulares, Enem, etc., sobre a literatura feita no Brasil é o que foi pensado, escrito e divulgado a partir desse núcleo, contando com a força da USP, com a conhecida história da literatura do Bosi e uma série de outros professores, críticos, pesquisadores. O centenário da Semana famosa será uma ótima hora para debater esse legado, que merece muitos reparos: essa versão sugere que tudo de bom, de libertário, de inovador que se fez no Brasil no século 20 (e talvez até agora) dependeu do Modernismo paulista, o que transforma Mário e seus intérpretes em visionários, por um lado, e em juízes supremos, por outro. No entanto, há muitíssima literatura de primeiro nível que nada tem a ver com Mário ou a Semana.
Há um movimento — de autores e editoras, principalmente — que busca fazer uma revisão histórica da literatura brasileira, dando espaço a temas e segmentos antes marginalizados. Os prêmios literários, inclusive, têm aderido a esse novo momento… Como vê esse panorama?
Mencionei acima um pouco disso: não pelos prêmios em si, nem pelas feiras de prestígio ou pelas editoras mainstream, mas por um conjunto amplo de fenômenos literários, de um lado, e pela necessidade de atualizar o debate historiográfico em si — o que sabemos hoje sobre escravidão e sobre sua herança é absolutamente inédito, em mérito e em escala, assim como o que sabemos hoje sobre a vida ameríndia —, é mesmo necessário pensar de novo a história da literatura. Agora esse movimento que tu mencionas eu não enxergo. O que sim se pode ver é um empenho, elogiável, em por exemplo reeditar autores antes negligenciados, muitas vezes em função de debates do presente, como é o caso da Carolina Maria de Jesus, cuja obra é uma excelente interrogação para o leitor e o crítico. A melhor resposta ainda não foi dada, mas o tema está na ordem do dia.
Por outro lado, há quem veja nessas iniciativas uma forma de limitar o alcance da literatura por meio de ideias como o “lugar de fala”…
Essa questão, do “lugar de fala”, não é unívoca. Há uma versão digamos doutrinária, que deve ser combatida criticamente, que vincula a história social do autor ao tema que ele aborda ou à forma que ele pratica, de modo exclusivo e excludente, o que é uma bobagem autoritária. Há outra versão, necessária e interessante, que manda prestar atenção à história social do autor, o que é prudente e mesmo há tempos levado em conta no campo da sociologia da cultura, ao menos desde Bourdieu.
E há ainda outro viés, que me chama a atenção e é polêmico, que tem a ver diretamente com o campo da teoria da literatura: há pouco mais de cem anos se constituiu o campo da teoria da literatura, e uma das premissas, ou das postulações, daquele momento, mandava separar a obra de seu autor — era para evitar o que se chamava, pejorativamente e com razão, de “biografismo”, como aquele praticado venenosamente por Sílvio Romero, que afirmou que Machado pontuava mal porque era gago. Muita gente boa praticava esse biografismo — lembro da biografia do Machado feita pela Lúcia Miguel Pereira, dos anos 1930, em que ela mencionava os “espevitamentos de mestiço” que o escritor Machado de Assis teria sabido evitar e por isso teria se transformado em bom escritor.
A teoria da literatura se definiu contra esse vínculo. Se pensarmos bem, Adorno representa em escala superior essa ideia de negação do valor do autor como parâmetro para ler a obra dele — a ideia adorniana da “objetividade da forma” depende dessa negação. Os pós-estruturalistas falaram até da “morte do autor”. E passamos umas quantas décadas erguendo teoria contra a biografia. Pois agora uma das faces do discurso do “lugar de fala” reivindica que se vincule a obra, até para conferir valor a ela, mediante consideração da origem social do autor, da pessoa do escritor. Um excesso, é claro, mas um excesso interessante para pensar a coisa toda.
Você é um crítico que acompanha de perto a cena literária contemporânea. O que há de melhor e pior nela?
Eita, não me arrisco a tanto. Evito ler o que há de ruim, embora de vez em quando cruze com textos assim. Sobre o melhor: há uma geração madura produzindo regularmente grande narrativa, Bernardo Carvalho, Fernando Bonassi, Luiz Ruffato, Alberto Mussa, Rubens Figueiredo, Lourenço Mutarelli, Beatriz Bracher, os mais velhos Chico Buarque, Cristovão Tezza, Milton Hatoum, Paulo Henriques Britto, os mais novos Paulo Scott, Marcelino Freire, Daniel Galera, enfim muita gente, e agora apareceu uma turma nova, de grande vigor, Jeferson Tenório, Natalia Borges Polesso, José Falero, Itamar Vieira Jr., Lília Guerra, Julián Fuks, Marcelo Labes. Enfim: muita gente, que citei aqui apenas no fluxo da lembrança, o que mostra claramente uma força substantiva da narrativa em nosso tempo, no Brasil. Não falo de poesia, nem de crônica, nem de teatro, que também têm o que dizer. Vivemos um tempo muito pródigo em produção literária!
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Uma nova história da literatura brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU