27 Março 2024
"A lógica conciliadora de Lula tem como base o princípio de buscar a pacificação, mas é preciso pensar se isto funciona", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 23-03-2024.
A polêmica posição do presidente sobre as rememorações do golpe de 1964 tem que ser discutida a partir de uma visão mais abrangente das relações do governo com o estamento militar.
Muito já foi dito e escrito sobre a conveniência ou a necessidade de se “remoer o passado”. Por um lado, assistimos a inúmeros e justos protestos de ex-presos políticos, parentes de militantes “desaparecidos” ou os abertamente assassinados nos porões do regime militar, assim como de dezenas de organizações que pregam a necessidade de uma justiça de transição, com a revisão da lei de anistia (no que tange a sua aplicação aos torturadores e assassinos) e a retomada da comissão de mortos e desaparecidos.
Por outro lado, vemos o governo “esquecendo” por mais de um ano em uma gaveta do ministro da Casa Civil o decreto que nomearia a Comissão dos Mortos e Desaparecidos, proposta pelo ministro Silvio Almeida. E vemos a ordem de silêncio dada por Lula aos entes governamentais para a rememoração do golpe de 64.
A posição de Lula faz parte de uma atitude que não é nova. Desde os seus primeiros governos ele adotou uma postura de evitar “provocar os quartéis”. Ordens do dia dos comandantes militares nomeados por ele repetiram, ano após ano, loas ao “movimento democrático” dos militares, execrável pretexto da quartelada que traumatizou o país por 21 anos e que deixou raízes daninhas até hoje. Sem uma palavra crítica do presidente. Lula também evitou interferir nos programas de formação dos militares ao longo desses anos, permitindo que os novos oficiais fossem doutrinados na justificativa, não só do golpe, mas em tudo que fizeram os militares ao longo de mais de duas décadas de repressão feroz.
Finalmente, Lula nunca utilizou seu poder como chefe das Forças Armadas para promover oficiais comprovadamente, senão democratas, pelo menos voltados exclusivamente às suas atividades profissionais. Notórios agentes do golpismo não tiveram qualquer óbice nas suas promoções, todas decididas exclusivamente pela hierarquia, ela também oriunda dos tempos da ditadura.
Foi assim que, por exemplo, o capitão Augusto Heleno, participante ativo em uma tentativa de golpe em 1977, do ministro do exército, general Silvio Frota, contra o presidente da época, general Ernesto Geisel, pode chegar ao posto mais alto na hierarquia militar, atravessando os governos de José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff.
Esta atitude de passagem de pano no golpismo vem de longe. Enquanto isso, oficiais legalistas foram afastados ou preteridos pelos hierarcas das Forças Armadas ao longo da história. Exemplo notório, mas longe de ser único, é o do capitão Sérgio “Macaco”, que se recusou em 1968 a utilizar o seu comando no PARASAR, do ministério da Aeronáutica, para sequestrar e lançar ao mar “inimigos do regime”.
Tenho outro exemplo menos dramático, mas significativo. Meu tio Carlos de Matos, brigadeiro e comandante da Zona Aérea de São Paulo em 1968, censurou a participação não autorizada de oficiais desta arma na invasão da faculdade de filosofia da USP, na rua Maria Antônia, e pagou este gesto com seu afastamento e colocação em disponibilidade por anos, até sua passagem prematura para a reserva.
O raciocínio de Lula foi e é, sempre, de cunho político e mais centrado no presente do que no passado ou no futuro. Neste seu novo governo o presidente se viu confrontado com uma tentativa de golpe, antes mesmo de sua posse e outra vez logo nos primeiros dias da sua gestão. Não se sabia, até recentemente, a amplitude destes complôs, agora revelados pelo inquérito do STF e da Polícia Federal.
Mas Lula tinha claro que as Forças Armadas estavam contaminadas pelo bolsonarismo e o tinham como um inimigo a ser abatido na primeira oportunidade. Sua opção foi a mesma dos seus governos anteriores e a nomeação de José Múcio Monteiro para o ministério da Defesa indicava que queria pacificar as relações. Isto não impediu que os complôs avançassem, chegando até a intentona de 8 de janeiro. Lula foi desafiado pelos ministros da Marinha e do Exército, o hoje “herói da democracia” general Gomes Freire, que se recusaram a participar da troca de comando sob o seu governo. Fingiu que não viu.
Em seguida o presidente engoliu a indisciplina e ameaça feita pelo comandante militar do Planalto no dia da intentona, impedindo a ação da polícia do DF que buscava prender os golpistas invasores dos palácios da Esplanada que tinham se refugiado no acampamento às portas do Quartel General do Exército. “Tenho mais tropa do que você”, disse o general, enquanto seus tanques se posicionavam defendendo os meliantes.
O ministro da Justiça, Flávio Dino e o interventor na secretaria de segurança do DF, Ricardo Capelli, consultaram Lula e engoliram a afrontosa indisciplina. Lula só tomou uma medida como autoridade máxima neste período, ao exigir a demissão do comandante do Exército, general Arruda, quando este se recusou a revogar a nomeação do tenente coronel Mauro Cid para o comando de uma força de combate ultra especializada, localizada a uma hora da sua residência. E nomeou o hoje também “herói da democracia”, general Thomás Paiva, para substituí-lo, não por ser de maior confiança, mas por ser o mais graduado dos candidatos natos. Parece que deu sorte e o general anda defendendo o profissionalismo na Força.
Embora tenha travado a segunda tentativa de golpe com a recusa de decretar uma GLO no Distrito Federal, pedida pelos militares através do seu representante no governo, o ministro da Defesa José Múcio Monteiro, Lula rapidamente procurou agradar as Forças Armadas com generosas dotações orçamentárias que deram aos militares mais recursos do que receberam os ministérios da Educação e da Saúde somados.
E evitou fazer a limpeza dos mais de sete mil militares contratados por Bolsonaro em seu governo, ocupando postos em vários ministérios. Até organismos estratégicos como Abin e o Gabinete de Segurança Institucional continuaram relativamente intocados, apesar das falhas ou conivências no 8 de janeiro.
Não cabe ao presidente fazer justiça e punir os infratores golpistas. Isto é tarefa para Xandão e para a PF (e deveria ser para a justiça militar, que hoje se finge de morta). Mas limpar o governo dos militares contratados por Jair Bolsonaro é, sim, uma decisão que pode (e deveria) ser tomada pelo presidente. E elaborar listas de promoções com base no profissionalismo versus ativismo político também está na alçada de Lula.
A lógica conciliadora de Lula tem como base o princípio de buscar a pacificação, mas é preciso pensar se isto funciona.
As nossas Forças Armadas, além de viverem ainda orientadas pelas doutrinas da guerra fria e pela adesão automática aos comandos dos EUA, passaram por um período de fragilização dos princípios da disciplina e da hierarquia, abalados de cima para baixo em todos os escalões da oficialidade pela anarquia bolsonarista. Foram anos de militância nas redes sociais, com manifestações políticas, sempre de extrema direita, de inúmeros oficiais.
A inteligência do governo, se é que ela existe e pode ser confiável, não teria dificuldades em identificar quem se manifestou em seus sites, facebooks e blogs nos últimos anos. Isto permitiria plotar, senão quem são os legalistas e profissionais, pelo menos os que não se arriscaram em botar a cara bolsonarista e golpista à mostra. E, desde logo, manifestar-se politicamente é algo vedado a militares da ativa e uma leva de punições disciplinares teria um efeito salutar para mostrar o rumo certo para a oficialidade. Mas o general Thomás Paiva está passando o pano no passado e cobrando de seus subordinados que se limitem, nas redes, a mensagens sobre futebol, o clima ou as suas atividades profissionais… a partir de agora.
Os golpes frustrados e denunciados, na opinião pública e na justiça, levaram o golpismo da oficialidade para a defensiva. Isto não quer dizer que não houvesse (e que continue a haver) uma enorme adesão ao bolsonarismo golpista neste estamento, mas a falta de comando na implantação do golpe paralisou esta massa de potenciais aderentes.
Não se pode achar que a passividade atual da oficialidade signifique uma segurança para o futuro. Ela está mais para uma tática de preservação de cargos e funções e por uma paciente espera de uma oportunidade. Isto já aconteceu desde o fim do regime militar e deu certo, até o desastre do governo Bolsonaro e a vacilação dos generais em endossar o golpe.
Com esta ameaça pairando permanentemente sobre a cabeça do presidente (e as nossas…) a melhor estratégia é essa adotada pelo presidente? Acalmar a fera com todo tipo de concessões faz do pitbull um doce poodle? A decisão de Lula de calar as manifestações oficiais sobre o golpe de 64 vai nesta direção. E é bem possível, senão provável, que o aniversário desta última tentativa de golpe, no próximo 8 de janeiro, encontre a mesma atitude de “evitar remoer” o passado.
O cálculo de Lula é centrado em uma certeza e em uma hipótese. A certeza é que as amplas massas não estão sensíveis a este debate do passado. Não foi por passar o pano para os militares que Lula está perdendo apoio na opinião pública, algo causado mais pela epidemia de dengue, pelos altos preços dos alimentos e pelas questões chamadas de “costumes” (maconha, aborto, …) ou do “comunismo”, estas últimas sempre atiçadas pelo bumbo evangélico e pelo bolsonarismo.
Lula não é bobo e sabia muito bem que os democratas em geral e a esquerda em particular iriam cair de pau e o fizeram. Nem os mais ferrenhos defensores do presidente no PT saíram em sua defesa, preferindo um silêncio obsequioso. Mas Lula também sabe que estes críticos não têm alternativa senão apoiá-lo, mesmo torcendo o nariz ou resmungando. Claramente, não existe alternativa de esquerda à Lula, desde que ele puxou a greve dos metalúrgicos em São Bernardo em 1978.
E não vai a haver alternativa tão cedo, pelo andar da carruagem. Ou seja, Lula avaliou que a sua hipótese de apaziguar os militares compensava receber críticas da esquerda e talvez até estas críticas o ajudassem a se demarcar junto às Forças Armadas. O cálculo político faz sentido, na lógica de Lula.
O problema não está neste último gesto, mas no conjunto da obra. É a estratégia que está errada e ela apenas mantém a espada de Dâmocles erguida, mas não afastada. Lula avalia a quantidade de problemas que tem que enfrentar no convívio difícil com um Congresso de ultradireita (e com o freio nos dentes … de Artur Lira), no esforço de retomar um desenvolvimento econômico distributivo, na crise ambiental que se agrava a cada dia e prefere não mexer no vespeiro de intervir nas Forças Armadas.
O preço a pagar é viver sob a chantagem constante de um público que tem um diferencial em relação aos outros: trata-se de gente com armas na mão e uma ideia (de direita) na cabeça. Reformar as Forças Armadas, redirecionar o seu papel na atualidade, garantir a hierarquia e a disciplina é algo difícil, mas a ocasião propiciada pela derrota do golpismo nas intentonas golpistas é única. Perdê-la por não usar a autoridade de comandante em chefe e aceitar engolir sapos cururus que corroem o seu poder de mando é, a meu ver, um erro histórico e pode comprometer, não só o futuro do seu governo, mas o futuro do país.
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Lula e os militares – concessões necessárias ou erros estratégicos? Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU