Para o professor e pesquisador Juremir Machado da Silva, não nos livramos dos espectros do Golpe Civil-Militar que nos ronda sob roupagens como o bolsonarismo, que apostou na quase bem-sucedida ruptura institucional após as eleições de 2022
Há sessenta anos o Brasil vivia dias turbulentos. A sombra da ditadura militar já podia ser avistada. No dia 13 de março de 1964, em um comício histórico na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, João Goulart, o Jango, fez a aposta mais arriscada de sua carreira e defendeu as Reformas de Base. “No comício da Central do Brasil Jango, deu o passo que faltava para um governo progressista: abraçou as reformas de base, entre as quais a reforma agrária. Ali ele se comprometeu com os mais pobres e foi condenado pelos mais ricos”, explica Juremir Machado da Silva em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Jango equilibrou-se no fio da navalha durante meses, até que escolheu dar o grande salto”.
Menos de um mês depois ele seria deposto por um golpe, tal como descreve Juremir, um golpe civil-midiático-militar. De algum modo, os espectros desse caldo cultural sobrevivem ainda hoje na política brasileira, com um apoio expressivo de cerca de 1/4 da população brasileira. “O Brasil não acertou realmente as suas contas com a ditadura, o que, para muitos, legitima o golpe de 1964 e sua ditadura. Sem punição a torturadores e ditadores, fica a impressão para muitos de que tudo não passou, como se diz agora, de uma disputa de narrativas, cada qual defendendo o seu lado”, avalia o entrevistado.
Ao mesmo tempo, Jango foi ousado e ingênuo. “Como disse Darcy Ribeiro, Jango caiu por seus acertos. O principal acerto foi perceber que não podia ficar em cima do muro eternamente. O principal erro foi crer num ‘dispositivo’ militar de defesa que não existia. Mas, dado o golpe, Jango acertou em não provocar uma guerra civil”, recorda Juremir. “Jango partiu para o Uruguai pensando que o golpe seria de curta duração, com eleições em 1965 e devolução do poder aos civis. Nesse ponto, iludiu-se como todo mundo. Os militares queriam ficar por muito tempo”, sublinha.
Juremir Machado (Foto: Reprodução | Youtube)
Juremir Machado da Silva é formado em Jornalismo e em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mestre e doutor em Sociologia da Cultura pela Université Paris Descartes. É professor titular da PUCRS, onde coordenou, de 2003 a 2014, o PPG em Comunicação. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Cultura, sociologia da mídia e sociologia do imaginário, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura, imaginário, mídia, comunicação, história e tecnologia. É tradutor, romancista e cronista.
Para fazer memória ao Golpe de 1964 e à Ditadura Civil-Militar, entre março e abril, o IHU vai promover diferentes conferências. A primeira delas está marcada para a quarta-feira, 13 de março, às 10h. A live, intitulada O Golpe civil-militar de 64. Impactos, (des)caminhos, processos, contará com a participação dos professores Dr. Adriano de Freixo, da Universidade Federal Fluminense - UFF, e Dr. Valerio Arcary, do Instituto Federal de São Paulo - IFSP.
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IHU – Como o Brasil, seis décadas depois do Golpe civil-militar de 1964, olha para sua própria história recente e como ela impacta em nossa compreensão do que é a democracia?
Juremir Machado da Silva – O Brasil não acertou realmente as suas contas com a ditadura, o que, para muitos, legitima o golpe de 1964 e sua ditadura. O governo Jair Bolsonaro foi uma reedição do regime militar via eleições. No fim, pretendia-se retomar o roteiro original, com a ruptura institucional amparada em leitura enviesada da Constituição. Sem punição a torturadores e ditadores, fica a impressão para muitos de que tudo não passou, como se diz agora, de uma disputa de narrativas, cada qual defendendo o seu lado. A verdade, porém, é que os militares, com apoio da mídia e do empresariado, derrubaram João Goulart e implantaram uma ditadura que durou até 1989, quando foi possível votar novamente para presidente da República.
IHU – Há um chiste de historiadores que diz: “a única coisa que muda o tempo todo é o passado”. Nesta perspectiva, como o governo Bolsonaro contribuiu para uma certa mudança (e vulgarização) da história da ditadura brasileira sintetizada na ideia de que o golpe teria sido uma “revolução’? O que isso revela sobre, pelo menos, 30% da sociedade brasileira?
Juremir Machado da Silva – Revolução é aquilo que a maioria apoia e unifica um país contra um regime de exceção. Não há revolução contra democracias. Bolsonaro vendeu novamente a ideia de que em 1964 o país foi salvo do comunismo. Em tempos de redes sociais e de fake news, essa versão encontrou eco. Parte da sociedade brasileira convive mal com a democracia e a inclusão dos habitualmente descartados da sociedade.
O bolsonarismo é a expressão de mal-estar daqueles que sentem seus privilégios se esfarelarem. Será preciso muita vigilância para impedir que a democracia se deixe aparelhar pelos seus piores inimigos.
IHU – Voltando aos anos de chumbo, há um personagem que você conhece muito bem, afinal escreveu sua biografia, e que é muito importante neste contexto: João Goulart, o Jango. Eu gostaria que o senhor comentasse sobre o “começo do fim” de seu mandato, o dia 13 de março de 1964. Como foi e qual a importância desse comício para a história do Brasil?
Juremir Machado da Silva – No comício da Central do Brasil, Jango deu o passo que faltava para um governo progressista: abraçou as Reformas de Base, entre as quais a reforma agrária. Ali ele se comprometeu com os mais pobres e foi condenado pelos mais ricos. A elite rural, o agronegócio da época, podia aceitar quase tudo, menos a reforma agrária, ainda mais sem pagamento em dinheiro vivo pelas terras desapropriadas. Jango equilibrou-se no fio da navalha durante meses, até que escolheu dar o grande salto.
IHU – Na ocasião, mais de 150 mil pessoas se reuniram em frente à Central do Brasil, momento em que Jango defendeu as reformas de base, entre elas a reforma agrária, educacional e política. Por que o presidente sofreu feroz oposição da imprensa de massa?
Juremir Machado da Silva – De maneira geral, a imprensa brasileira tem sido conservadora. Em 1961, apoiou Jango, depois da renúncia de Jânio Quadros, por se tratar de uma causa cristalina: não dar posse ao vice-presidente era como rasgar a Constituição sem ao menos um pretexto duvidoso. Em 1964, porém, a mídia ajudou a forjar muitos pretextos para derrubar Jango, tratado como incompetente, comunista, bêbado, vacilante, inapto para o cargo e fraco. A imprensa agiu como intelectual orgânica das classes proprietárias, radicalizando a situação no contexto da Guerra Fria. Espalhou-se o temor de que o Brasil se tornasse uma grande Cuba.
IHU – Ainda sobre os jornalões da época, qual foi o papel da imprensa para a consolidação do Golpe de 1964?
Juremir Machado da Silva – A imprensa criou as condições para a legitimação do golpe. Jornais como O Globo, Jornal do Brasil, Estadão, Folha de S. Paulo e Correio da Manhã apresentaram o golpe como restauração ou salvação da democracia. O Globo reconheceu seu erro 49 anos depois do ocorrido. O Correio da Manhã percebeu que havia apoiado uma ditadura dois dias depois da queda de Jango. Em 1968, com o AI-5, a imprensa passou a rejeitar a censura, mas nunca se voltou realmente contra o modelo econômico do regime. Foi um golpe midiático-civil-militar. Sem a mídia, a classe média não teria sido convertida, manipulada, adestrada para aceitar a ruptura institucional. Até grandes escritores como Carlos Drummond de Andrade e Antonio Callado pediram a saída de Jango.
IHU – O senhor poderia comentar um pouco sobre as Reformas de Base e por que razão elas, apesar de conterem um projeto de futuro para o país, jamais foram politicamente implementadas?
Juremir Machado da Silva – O Brasil era puro atraso. Pouco mais de 32 mil famílias dominavam mais de 50% da terra agricultável. Havia um déficit de moradias, o analfabetismo tocava as nuvens, precisava reforma de todo tipo: administrativa, educacional, bancária, agrária. O regime, porém, estava bom para os que se alimentavam dele. Reformar era enfrentar o parasitismo dos muitos ricos, desmontar o patriarcalismo e o clientelismo disseminados pelo país. O golpe foi dado para manter as oligarquias satisfeitas.
IHU – Jango, quando soube do desejo de depô-lo da presidência, estava em visita à China. Muitas pessoas o consideravam um comunista, mas afinal de contas ele era ou não comunista?
Juremir Machado da Silva – Jango era um fazendeiro rico, influenciado por Getúlio Vargas, com sensibilidade social e grande capacidade de escuta. Ele sabia, por exemplo, que a reforma agrária era fundamental para o capitalismo brasileiro, como meio de criar um mercado interno, dando aos pobres a possibilidade de criar riquezas e de ter poder aquisitivo para consumir os produtos da indústria nacional. O Brasil era profundamente rural, e o campesinato tinha pouco acesso à propriedade da terra, que podia ficar improdutiva e sem cumprir qualquer função social. Jango teve a coragem de tentar completar o que Vargas havia começado, levando modernização ao campo.
IHU – No livro Brasil, a construção interrompida, Celso Furtado fala sobre como o Golpe de 1964 fez com que o Brasil perdesse o cavalo encilhado de uma terceira via em relação ao capitalismo estadunidense e o comunismo soviético. Quais os efeitos disso hoje, sessenta anos depois?
Juremir Machado da Silva – Se as reformas tivessem acontecido naquela época, o Brasil teria evitado décadas de atraso. O comunismo não era a saída. O caminho era o desenvolvimento promovido com participação do Estado, um nacional-desenvolvimentismo seguro e ousado ao mesmo tempo. Para isso era preciso reinventar a classe dominante, que permanecia num estágio de parasitismo vencido na Europa à força de revoluções populares.
IHU – Retomando João Goulart, olhando hoje em perspectiva, quais foram seus principais acertos como presidente, mas também seus grandes erros de avaliação?
Juremir Machado da Silva – Como disse Darcy Ribeiro, Jango caiu por seus acertos. O principal acerto foi perceber que não podia ficar em cima do muro eternamente. O principal erro foi crer num “dispositivo” militar de defesa que não existia. Mas, dado o golpe, Jango acertou em não provocar uma guerra civil. Teria havido um banho de sangue e uma derrota acachapante. Jango partiu para o Uruguai pensando que o golpe seria de curta duração, com eleições em 1965 e devolução do poder aos civis. Nesse ponto, iludiu-se como todo mundo. Os militares queriam ficar por muito tempo.
IHU – Qual a importância de olharmos para o Golpe de 1964 a partir dos eventos anteriores e posteriores ao dia 1º de abril daquele ano para compreendermos o ecossistema político e social que levou o Brasil a 21 anos de ditadura?
Juremir Machado da Silva – O Brasil ainda não se livrou do espectro de 1964. O bolsonarismo, novo nome da ideologia que levou os militares ao poder naquele ano, ainda vai provocar crises e divisões na sociedade. É preciso mostrar todo dia que fora da democracia não há saída.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Juremir Machado da Silva – Jango deve ser lembrado como herói.