08 Janeiro 2024
"O grande problema é que Jesus e o próprio Evangelho são revolucionarios demais para o espírito natalino. Papai Noel representa a remodelação do sistema a este inconveniente".
O artigo é de Edu Montesanti, jornalista, professor, tradutor e escritor.
Sem dar-se conta, o subconsciente ocidental é bombardeado pela mídia em cada Natal. Se o Bom Velhinho tivesse existido algum dia, onde estivesse hoje teria mais motivos para rir dos adultos que das crianças.
As pessoas não percebem como é difícil falar a verdade em um mundo cheio de gente que não percebe que vive uma mentira - Edward Snowden
Todo este sistema, decisivamente ajudado pelo bombardeio midiático sobre o imaginário coletivo, leva cidadãos (adultos) ocidentais, especialmente cristãos, a incorporar inconscientemente Papai Noel em cada dia 25 de dezembro, alegadamente data do nascimento de Jesus.
Incorporação abismantentemente profunda, tão intensa quanto bastante claros são (e tão despercebidos pelas multidões) os motivos para mais este forte instrumento de distração social, e realimentação de um sistema incapaz, por natureza, de sobreviver pelas próprias qualidades.
O Bom Velhinho faz-se presente nas mesas das famílias, e além delas: Papai Noel dita a própria postura dos indivíduos, de todas as faixas etárias na tão maravilhosa, sacrossanta data do Natal em que ele é o indiscutível protagonista.
Tanto quanto Papai Noel é um mito, é também um mito a crença de que apenas as crianças o incorporam no Natal. Se considerarmos o poder de atuação na sociedade de adultos e crianças, os adultos vivem Papai Noel de maneira muito mais intensa. De maneira tão forte, que agem como que acreditando em sua existência.
Na prática, uma vasta maioria dos adultos acreditam fortamente no mito natalino, por como se comportam. Eis mais uma grande proeza deste sistema. O “nada” natalino, repleto de mensagens inócuas que comovem pelo pouco ou nenhum significado prático, faz-se presente em absolutamente tudo, em cada detalhe, em cada gesto desde discursos presidencias até os mais humildes rincões de uma nação ocidental em 25 de dezembro. Papai Noel configura-se o vazio necessário ao Ocidente. “Somos Todos Papai Noel” poderia ser, muito bem, o lema de cada Natal.
Personagem histórico de autenticidade comprovada diferentemente de muitos trechos mencionados pela Bíblia, sem comprovação científica, Jesus foi transformado em ilustre esquecido em seu suposto aniversário. Proferir no no Natal determinadas palavras de Jesus registradas no Evangelho, soaria estranho para a grande maioria dos “tocados pela magia natalina”.
Enquanto o personagem lendário originário da cultura cristã ocidental que, com a ajuda de elfos, fábrica brinquedos em sua oficina no Polo Norte para entregar às criancas no dia 24 de dezembro de cada ano, acaba ditando, descendo de trenó dos céus à Terra cheio de simpatia e muita lenda no saco, o estado de espírito e todos os costumes na data mais solene do mundo ocidental.
O sistema ocidental precisa de um ícone que produza alguns efeitos a seu favor. O maior nome da religião dominante e dominadora desta parte do globo é uma bela ideia, sem dúvidas. Porém, certos ditos e feitos deste personagem não são nada convenientes ao sistema.
Para muito além da verdadeira data do nascimento de Jesus, o que realmente importa ao se discutir este assuno são os evidentes efeitos do Natal e de Papai Noel às sociedades cristãs-ocidentais, consequência do quanto elas são levadas a acreditar, de maneira tão prática quanto inconsciente, nesta lenda. Valendo apontar que existem lendas criadas ao longo da história de muito melhor gosto, e mais produtivas que este “Bom Velhaco” travestido de vermelho.
Os efeitos da incorporação inconsciente desta lenda entre adultos, são econômicos e sociais.
No primeiro caso através dos presentes do Bom Velhinho, o “espírito natalino”, e os pratos especiais que devem ser levados à mesa de qualquer família que se preza, ainda que ninguém saiba explicar por quê, para quê.
No segundo ponto colocado, a anestesia da consciência coletiva que o Velhinho exerce jogando paradoxalmente ao esquecimento ditos e feitos do suposto aniversariante – além dos próprios desfortúnios sociais do ano que se vai. Tudo o que ocorreu durante o ano até a data do Natal deve ser esquecido, página virada na vida de todas as famílias que se prezam em nome da “magia do Natal”, ideia precariamente vendida pela “muleta” natalina.
Afimal, de repente todas as mazelas deste sistema durante o ano tornaram-se, como passe de mágica com boa dose de gargalhada do Velhaco, velhas: hohohohohoho! Toda famIlia de bom gosto, com alma suficientemente sensível, deve apreciar e acompanhar esta inocente gargalhada.
Tudo, a partir desta “data maravilhosa”, faz-se novo: dando novo fôlego a este moribundo sistema de dominação e exploração desenfreadas, que precisa de artíficios para sobreviver e para fazer com que as multidões suportem seus tenebrosos resultados, o diário capítulo de terror mundo afora.
Sem justiça não há paz, e foi exatamente este um dos exemplos mais contundentemente insistidos pelo aniversariante do Natal – ilustre esquecido, ausente de gala em cada 25 de dezembro. Sem justiça há, sim, um país sem memória cuja história acaba contada pelos detentores do poder; país endemicamente corrupto e violento, país desigual em que o direito vale para poucos, ou seja, não há direitos mas sim privilégios.
O grande problema é que Jesus e o próprio Evangelho são revolucionarios demais para o espírito natalino. Papai Noel representa a remodelação do sistema a este inconveniente.
Feliz 2024 com memória, e com sede de justiça anunciada e vivida às últimas consequencias pelo aniversariante de 25 de dezembro, bem encarnada na história dos direitos humanos (vídeo a seguir).
[Transcrição do vídeo acima, traduzida do inglês]
Direitos humanos são os direitos que você tem, simplesmente por ser humano. É como você, instintivamente, espera e merece ser tratado como pessoa. Tal como o direito de viver livremente, o de falar o que pensa, e o de ser tratado como igual. Existem muitos tipos de direitos. A maioria se aplica a um determinado grupo. Mas os direitos humanos são os únicos que se aplicam a absolutamente todas as pessoas, em todos os lugares.
Isso significa crianças, idosos, pobres, jogadores de basquete, lixeiros, rappers, professores, africanos, indianos, albaneses, cristãos, muçulmanos, cabalas, ateus, sua mãe, seu pai, seu vizinho e você: todos têm exatamente os mesmos direitos humanos. Em outras palavras, eles são universais. Mas a questão permanece: o que são eles?
De acordo com as Nações Unidas (ONU), há um total de 30 direitos humanos que são agrupados e chamados, simplesmente, de direitos humanos. Estão todos listados em uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, o documento mais amplamente aceite no mundo sobre o assunto. Mas ele demorou muito para chegar.
No início, não existiam direitos humanos. Se você estivesse com o público certo, você estava seguro. Se você não estava do lado certo, você não estava seguro. Mas eis que um homem chamado Ciro o Grande decidiu mudar tudo isso. Depois de conquistar a Babilônia, ele fez algo completamente revolucionário. Anunciou que todos os escravos estavam livres. Ele também disse que as pessoas tinham liberdade de escolher a religião, independentemente do grupo ao qual pertenciam. Eles documentaram suas palavras em uma tábua de argila, conhecida como Cilindro de Ciro. Assim, nasceram os direitos humanos.
A ideia espalhou-se rapidamente pela Grécia, pela Índia e, finalmente, por Roma. Eles notaram que as pessoas seguiam naturalmente certas leis, mesmo que não fossem instruídas a fazê-lo. Eles chamaram isso de Lei Natural. Mas continuou sendo pisoteada por aqueles que estavam no poder. Só mil anos depois, na Inglaterra, é que finalmente conseguiram que um rei concordasse que ninguém podia anular os direitos das pessoas, nem mesmo um rei. Os direitos das pessoas foram finalmente reconhecidos, e elas estavam agora a salvo dos que estavam no poder. Ainda foi necessário que um grupo de rebeldes britânicos declarasse sua independência antes que o rei entendesse que todos os homens são criados iguais. O que não quer dizer que ele tenha gostado da ideia, mas não conseguiu impedi-los. Assim, nasceram os Estados Unidos. Os franceses prosseguiram imediatamente com sua própria revolução, com seus próprios direitos. A lista deles era ainda mais extensa, e eles insistiam que esses direitos não eram apenas “inventados”. Eles eram naturais. O conceito romano de Direito Natural tornou-se Direitos Naturais.
Infelizmente nem todos ficaram tão entusiasmados. Na França, um general chamado Napoleão decidiu derrubar a nova democracia francesa, e coroar-se Imperador… do mundo. Ele quase conseguiu isso. Mas os países da Europa uniram forças, e derrotaram-no. Os direitos humanos tornaram-se, novamente, um assunto quente. Eles redigiram acordos internacionais que concedem amplamente muitos direitos em toda a Europa. Mas apenas em toda a Europa. O resto do mundo, de alguma forma, ainda não estava incluído. Em vez disso, foram invadidos, conquistados e consumidos pelos enormes impérios da Europa. Mas um jovem advogado da Índia decidiu que já era tempo de terminar com aquilo. Seu nome era Mahatma Gandhi. E diante da violência ele insistiu que todas as pessoas da Terra tinham direitos, não apenas na Europa. Finalmente, até os europeus começaram a concordar. Mas não seria tão fácil. Duas guerras mundiais eclodiram. Hitler exterminou metade da população judaica da Terra em horríveis campos de extermínio nazistas. Ao todo, 90 milhões de pessoas morreram. Nunca os direitos humanos estiveram tão terrivelmente perto da extinção. E nunca o mundo esteve tão desesperado por mudanças.
Então os países da Terra se uniram e formaram as Nações Unidas. O objetivo básico era reafirmar a crença nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana. Mas o que eram os direitos humanos? Foram elas as proclamações de Ciro? As leis naturais de Roma? As declarações da França? Todos pareciam ter uma ideia ligeiramente diferente do que deveriam ser os direitos humanos. Mas, supervisionados por Eleanor Roosevelt, finalmente chegaram a acordo sobre um conjunto de direitos que se aplicava a absolutamente todas as pessoas: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O conceito francês de direitos naturais, finalmente, tornou-se direitos humanos.
Então, em resumo, no início, apenas algumas pessoas sortudas tinham quaisquer direitos. Até que um desses caras decidiu: “Ei, outras pessoas deveriam ter alguns direitos também”. O que foi ótimo, exceto que nem todos concordaram. E foram necessários apenas alguns milhares de anos de lutas, declarações e mais lutas até que todos finalmente concordassem que os direitos humanos deveriam ser aplicados a todos. E todos eles viveram felizes para sempre.
Exceto por um pequeno problema. Se as pessoas têm direito à alimentação e ao abrigo, por que 16 mil crianças morrem de fome todos os dias? Uma a cada cinco segundos. Se as pessoas têm liberdade de expressão, por que milhares de pessoas estão na prisão por falar o que pensam? Se as pessoas têm direito à educação, por que mais de mil milhões de adultos não sabem ler? Se a escravatura foi verdadeiramente abolida, por que 27 milhões de pessoas ainda hoje são escravizadas? Mais do dobro que em 1800. O fato é que, quando foi assinada, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não tinha força de lei. Era opcional. E apesar de muitos mais documentos, convenções, tratados e leis, ainda são pouco mais do que palavras em uma página. Portanto, a questão é: quem tornará essas palavras realidade?
Martin Luther King: hoje, eu tenho um sonho. Quando o dr. King marchou pela igualdade racial, ele estava marchando por direitos que estavam garantidos pelas Nações Unidas durante quase duas décadas. Mas mesmo assim, ele marchou. Quando Nelson Mandela defendeu a justiça social na década de 1990, o seu país já tinha concordado em abolir a discriminação há quase 40 anos. Mas ainda assim, ele lutou. Aqueles que lutam hoje contra a tortura, a pobreza e a discriminação não são gigantes nem super-heróis. Eles são pessoas. Crianças, mães, pais, professores, indivíduos de pensamento livre que se recusam a ficar calados. Que percebem que os direitos humanos não são uma lição de história. Não são palavras em uma página. Não são discursos, comerciais ou campanhas de relações públicas. São as escolhas que fazemos todos os dias como seres humanos. São a responsabilidade que todos partilhamos de respeitar uns aos outros, de ajudar uns aos outros, e de proteger os necessitados. Como disse Eleanor Roosevelt: “afinal, onde começam os direitos humanos universais em pequenos lugares perto de casa? Tão próximos e tão pequenos que não podem ser vistos em nenhum mapa do mundo. No entanto, eles são o mundo de cada pessoa. Sua vizinhança. A escola ou faculdade que ele frequenta. A fábrica, fazenda ou escritório onde trabalha. Esses são os lugares onde cada homem, mulher e criança busca justiça igual, oportunidades iguais, dignidade igual, sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado nesses lugares, eles têm pouco significado em qualquer lugar”.
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Papai Noel foi projetado para enganar mais adultos que crianças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU