Pesquisa mostra: maioria sabe que é precarizada e quer direitos, mas teme perder autonomia. Valor único por entrega e remuneração por hora são as principais reivindicações. E há muitos relatos de adoecimento psíquico sob a gestão algorítmica.
O artigo é de Ricardo Festi, Laura Gontijo, Nicolle Gonçalves e Letícia Fragoso, publicado por Outras Palavras, 10-08-2023.
Uma das categorias mais simbólicas do acelerado processo de mudança nas relações de trabalho no Brasil e no mundo, os entregadores contratados por aplicativos, ainda é pouco conhecida no universo das pesquisas sociais. Foram esses trabalhadores e trabalhadoras que realizaram, durante o governo Bolsonaro, os impactantes atos chamados “Breques dos Apps”, que indicam um grau crescente de politização e de capacidade de se organizar para reinvindicar direitos, porém também um modo diferente de se organizar, que envolve resistência à representação sindical convencional.
A pesquisa apresentada a seguir, realizada pelo Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social, da Universidade de Brasília (UnB), mostra que essas trabalhadoras e trabalhadores vivem situações de extrema exploração, da qual nem sempre estão plenamente conscientes. A sedução da lógica do autoempreendimento e do desempenho faz com que larga maioria (60,3%) tenha como preferência que a categoria seja reconhecida como “autônomos/as ou por conta-própria”, ou então, alternativamente, como “MEI” [18], opção assinalada por 23,9% dos/as entrevistados. Porém, em igual medida, sofrem os danos psicológicos e físicos da carga de trabalho exaustiva, da pressão e da lógica competitiva imposta pela relação com as plataformas.
Eles sabem que necessitam ampliar seus direitos e expressam esse desejo. O fim das corridas duplas ou triplas (desejo de 78,14% dos respondentes), o fim dos bloqueios sem defesa (71,26%) e a instalação de pontos de apoio (60,32%) são algumas das pautas de direitos que receberam maior adesão. E outras pautas não ligadas diretamente à atividade por aplicativo também apareceram, como: adicional de periculosidade (57,49%), auxílio-doença e auxílio-acidente (55,06%), política de desconto para compra do veículo de trabalho (53,85%), entre outros.
Também ficou evidente que o fato de não ter de lidar diretamente com um patrão ou chefe é um valor prezado pelos entregadores e entregadoras que, sendo geralmente jovens, não têm a cultura que costuma ser associada ao “fordismo”, ou então não chegaram a ter a experiência de um emprego regular tradicional.
Mas como equacionar a liberdade e flexibilidade desejada com a consciência de que o aplicativo não exclui o patrão, apenas o torna menos visível? São desafios que essa pesquisa começa a delinear e que necessitarão de aprofundamentos. Veja a seguir o relato completo.
Para responder à questão de partida do presente artigo – Quais as percepções dos/as entregadores/as de aplicativos sobre a regulação laboral? –, o grupo de pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social, vinculado ao Departamento de Sociologia e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (PPGSOL/UnB), a partir da pesquisa “Para onde vai o trabalho humano na era digital?” [1], aplicou um questionário entre entregadores/as do Distrito Federal e Entorno[2] entre 13 de abril e 21 de junho de 2023. Essa survey chegou a mais de 700 pessoas [3], sendo respondida por 247 entregadores/as, um número expressivamente elevado para uma pesquisa com um recorte geográfico limitado.
O questionário surgiu da necessidade de compreender o processo de politização e conscientização, em particular dos/as entregadores/as e dos/as motoristas por aplicativos [4], acerca da regulação do trabalho em plataformas digitais. Este processo ganhou relevância na pauta política dos últimos anos, em particular durante a pandemia de Covid-19 e com as mobilizações e paralisações dos “Breques dos APPs”. Após a mudança de governo, em janeiro de 2023, essa discussão atingiu um novo patamar, com a constituição de mesas de negociação tripartite.
Nesse contexto, o questionário foi aplicado em duas modalidades, a virtual e a presencial (in loco). Em ambas, o questionário apresentou um total de 12 perguntas, sendo precedido de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a ser aceito pelos participantes [5]. Ao final, 170 trabalhadores/as responderam ao questionário na modalidade virtual e 77 na modalidade presencial.
Para o modo virtual, os/as pesquisadores/as entraram em contato com os/as entregadores/as através de grupos de Whatsapp, Facebook e Instagram – com recorte territorial para os trabalhadores do Distrito Federal e Entorno – momento em que era apresentada a pesquisa e o seu objetivo. Foi feita uma primeira interação com o/a trabalhador/a e, em seguida, enviado o link do questionário que podia ser acessado de qualquer celular, tablet ou computador.
Para a segunda fase de aplicação, in loco, mapeamos os principais “pontos de espera” [6] dos/as entregadores/as no Distrito Federal. O grupo de pesquisa dividiu-se em subgrupos que se distribuíram entre algumas regiões administrativas do Distrito Federal (Asa Norte e Asa Sul do Plano Piloto, Lago Sul, Guará, Águas Claras e Jardim Botânico). Os horários de aplicação foram diversos, mas em sua maioria, concentrados durante o almoço (11h-15h) e o jantar (17h-22h). Assim, além da aplicação do questionário, foi também possível realizar uma observação não participante desses espaços (inclusive com registros fotográficos) e o aprofundamento da nossa problemática com curtas entrevistas qualitativas [7].
Este artigo busca destacar e adiantar alguns dos resultados desta pesquisa. Análises mais aprofundadas serão divulgadas posteriormente, com detalhamento dos dados, nas formas de artigos científicos e relatório de pesquisa.
88% são do gênero masculino e 12% do gênero feminino;
24,24% se autodeclararam como brancos/as e 73,68% como negros/as (pretos/as e pardos/as), conforme os quesitos adotados pelo IBGE;
26,72% estão na faixa etária dos 26-30 anos, 21,46% estão entre 31-35 anos e 19,84% estão entre 20-25 anos;
Obtivemos a participação de trabalhadores/as que residem em distintas regiões administrativas do Distrito Federal: Arniqueira, Brazlândia, Ceilândia, Estrutural/SIA, Fercal, Gama, Guará, Itapoã, Jardim Botânico, Lago Norte, Paranoá, Planaltina, Plano Piloto, Recanto das Emas, Riacho Fundo, Riacho Fundo II, Samambaia, Santa Maria, São Sebastião, Sobradinho, Sobradinho II, Sol Nascente, Taguatinga e Varjão.
Também obtivemos a participação de moradores/as dos seguintes municípios do Entorno [8]: Águas Lindas de Goiás (GO), Cidade Ocidental (GO), Goianésia (GO), Luziânia (GO), Planaltina (GO), Novo Gama (GO), Santo Antônio do Descoberto (GO), Unaí (MG), Valparaíso de Goiás (GO).
Diante dos dados colhidos, chegou-se aos seguintes resultados preliminares:
Diante da pergunta “Quais reivindicações abaixo considera as principais para a categoria?”, observamos que as principais reivindicações são aquelas que apareceram nas pautas do “Breques dos Apps”: o fim das corridas duplas ou triplas (78,14%), o fim dos bloqueios sem defesa (71,26%) e a instalação de pontos de apoio (60,32%).
A maioria dos/as trabalhadores/as afirmou ainda que gostaria de possuir os seguintes direitos: adicional de periculosidade (57,49%), auxílio-doença e auxílio-acidente (55,06%), política de desconto para compra do veículo de trabalho (53,85%), equipamentos de trabalho e treinamento fornecidos pelas plataformas (48,58%), auxílio transporte (47,77%), auxílio alimentação (45,75%), direito à transparência algorítmica (44,49%) e direito à desconexão sem penalidade (35, 63%).
Com relação aos direitos identificados como próprios do regime celetista de trabalho [9], vemos que mais de um quarto dos/as trabalhadores/as respondeu que gostaria de ter acesso ao décimo terceiro salário (27,13%), uma remuneração mínima ou piso da categoria (26,72%), férias anuais remuneradas (25,91%) e descanso semanal remunerado (24,70%).
Uma minoria relatou a necessidade de possuir um contrato de trabalho (16,19%) e um limite da jornada diária e semanal de trabalho (12,55%). Em contraposição, a flexibilidade na composição dos horários de trabalho foi apontada por 27,94% dos/as trabalhadores/as entrevistados/as.
Segundo os/as trabalhadores/as abordados/as por nossa survey, a questão mais importante a ser debatida na regulação do trabalho em plataformas digitais são as condições de trabalho. Cerca de 65,59% dos/as trabalhadores/as afirmaram que gostaria que o governo observasse as seguintes questões: pontos de apoio, fornecimento de Equipamento para Proteção Individual (EPI), escritórios físicos das empresas de plataformas (para que os/as trabalhadores possam tirar dúvidas e fazer reclamações) e melhorias nos aplicativos em prol dos/as entregadores/as.
Em seguida, 48,18% afirmaram que deve ser preocupação do governo questões relacionadas à Seguridade Social [10], como seguro contra acidente, auxílio-doença, contribuição previdenciária dentre outros.
Em termos de remuneração e jornada de trabalho, 43,72% afirmaram que gostariam de independência para trabalhar com várias plataformas; 37,25% destacaram que a remuneração é um aspecto importante a ser considerado nesse debate; e 24,29% referiram a flexibilidade de horário como aspecto mais relevante a ser debatido.
Destaca-se que, dentre os/as entrevistados/as, apenas 10,12% apontaram que a carteira de trabalho assinada deveria ser pauta do debate público. Como desenvolveremos logo a seguir, foi possível identificar, a partir da aplicação presencial do questionário, que a carteira de trabalho está associada por ele ao recebimento de apenas um salário mínimo, considerando-o inferior ao necessário para a sua sobrevivência.
Quando questionados/as sobre como a remuneração deveria ser, a maioria dos/as entrevistados/as indicou preferir a remuneração por hora logada no aplicativo [11] somada às taxas de entrega ou quilômetro rodado, sendo esta opção representada por 40% do total de entrevistados/as.
Acompanhando essa perspectiva, 21,8% afirmaram que preferiam uma remuneração fixa acrescida das taxas de entrega. Apenas 21% afirmaram que desejariam que a remuneração permanecesse como se encontra atualmente estabelecida.
Nas condições atuais, o/a trabalhador/a deveria receber um valor por cada entrega realizada, sendo que a plataforma iria reter um percentual do mesmo valor. Na prática, segundo o que nos foi relatado, as plataformas têm adotado a chamada dupla, tripla ou quádrupla corrida com o valor de taxa de uma única entrega. Isto é, o/a entregador/a pega dois ou três produtos em um estabelecimento, destinados às residências próximas, e recebe por apenas uma entrega (em alguns casos, há um pequeno acréscimo para cada entrega a mais, mas nunca o valor total que seriam as duas ou três entregas adicionais). O resultado é que as plataformas ficam com um montante maior da transação entre cliente-plataforma-entregador/a, sendo que o primeiro está pagando por uma taxa de entrega que não chega em sua integralidade ao/à entregador/a.
Todo o período pelo qual o/a trabalhador/a fica à disposição da plataforma – por exemplo, estacionado em um ponto de apoio e aguardando uma chamada – não conta como hora trabalhada. Ele/a só é remunerado/a pelo período compreendido entre o recebimento do pedido à sua entrega ao cliente, não importando o tempo que este processo leva. Por isso, essa forma de remuneração tem sido identificada por alguns autores como similar à modalidade de salário por peça ou tarefa [12]. O resultado dessa gestão algorítmica e gamificada é o prolongamento da jornada de trabalho desses/as trabalhadores/as, intensificando o seu labor e incidindo de forma particularmente negativa sobre a sua subjetividade, com impactos em sua saúde mental e física [13].
A questão de a remuneração ser variável e dependente de cada entrega realizada é vista como positiva pelos/as trabalhadores/as porque estes/as sentem que podem estender a sua jornada de trabalho ao máximo para alcançar uma remuneração maior, ou seja, tem-se a ilusão de que os seus resultados estariam diretamente vinculados ao seu esforço. A limitação da jornada de trabalho, por exemplo, foi apontada por apenas 12,55% dos/as trabalhadores/as como uma reivindicação importante da categoria. No entanto, essa medida reduziria o estresse e as consequências negativas de um trabalho tão duro como é o das entregas sobre a sua saúde.
Foi possível identificar que a forma como está organizado o trabalho e a remuneração permite gerar competição entre os/as trabalhadores/as. Em um momento, Miguel [14] falou:
“Veja, ele ali possui o mesmo score que o meu, 3 pontos, mas enquanto estou aqui parado respondendo vocês ele já recebeu duas entregas e eu nenhuma. Já tem meia hora que estou parado”.
Também se sugere que a forma de remuneração seja responsável pela autoimposição de metas. Alguns/mas entregadores/as relataram ter estabelecido uma meta de remuneração, enfrentando longas jornadas de trabalho para atingi-la.
Miguel relatou, por exemplo, que a sua meta de remuneração é feita por semana e de acordo com suas dívidas, ou seja, quando está muito apertado financeiramente, procura trabalhar a maior jornada possível. João relatou que trabalha 72 horas por semana e consegue obter um salário bruto de R$ 6.000,00 (isto é, sem retirar todos os custos que ele tem com o trabalho), mas sem qualquer dia de férias nos últimos dois anos.
Conforme sugerem outras pesquisas, a remuneração bruta da grande maioria dos trabalhadores por aplicativos (sem descontar todos os custos com o trabalho que são muito altos, como combustível, plano de internet, manutenção da motocicleta etc.), em particular no Brasil, está em torno de dois salários mínimos (OLIVEIRA e FESTI, 2023; ABILIO et al, 2020; GONTIJO, 2021) e a sua jornada de trabalho entre 60 e 80 horas por semana (FAIRWORK, 2023; OLIVEIRA e FESTI, 2023). Portanto, trata-se de uma jornada de trabalho que é praticamente o dobro da praticada pela maioria dos trabalhadores/as brasileiros/as e regulamentada por lei (40 horas a 44 semanais). Nesse sentido, podemos afirmar que esses/as trabalhadores/as trabalham demais, assumem todos os custos pelo trabalho e recebem muito pouco.
Um aspecto que chamou bastante a atenção do grupo de pesquisadores/as foram os relatos de adoecimento psíquico e que se encontram relacionados com a saúde e segurança no trabalho [15]. Um grupo de três entregadores (Miguel, Rafael e Roberto) relatou durante a aplicação do questionário que o aplicativo “mexe com a mente”. Miguel chegou a afirmar que o aplicativo é capaz de acabar com o casamento de um/a trabalhador/a, porque ele/a não tem horário para chegar em casa.
Rafael afirmou que, em sua opinião, o aplicativo é como “uma droga”, no sentido de que atua como um vício, estimulando-o a trabalhar mais. João, que relatou trabalhar 72 horas semanais, indicou que ficou desligado do aplicativo por alguns meses, devido a um quadro de tristeza profunda e falta de vontade de sair da cama.
Em grande medida, esses problemas parecem se dar devido à dificuldade de se desligar do aplicativo. Esses três trabalhadores relataram que o máximo de dias de férias que conseguiam ficar era de uma semana porque temiam ficar offline do aplicativo por muito tempo e ter seu score diminuído, o que posteriormente demandaria mais trabalho para recuperar a nota perdida.
Foi possível identificar a difusão de uma opinião corrente entre os/as entregadores/as de que o melhor para a categoria seria a sua classificação como “autônomos/as” ou “por conta própria” [16]. Gabriela, uma das entregadoras que participou do questionário, ficou surpresa em saber que existia a proposta de regulamentação do trabalho em plataformas digitais segundo o regime celetista [17].
Dos/as entregadores/as que responderam ao questionário, cerca de 60,3% afirmou preferir que a categoria fosse regulamentada como “autônomos/as ou por conta-própria”, seguido da opção “MEI” [18], representada por 23,9% dos/as votantes.
Embora a maior parte dos/as entrevistados/as considerem que a melhor forma de regulamentação da categoria fosse pelo status de autônomo/a ou por conta própria, estas mesmas pessoas manifestaram o desejo de ter direitos sociais do trabalho, tais como décimo terceiro salário (27,13%), remuneração mínima ou piso da categoria (26,72%), férias anuais remuneradas (25,91%), descanso semanal remunerado (24,70%).
Um dos trabalhadores falou que, em sua opinião, as plataformas digitais não aceitariam a regulação se fossem obrigadas a pagar direitos trabalhistas e, como tal, sairiam do país. No entanto, logo em seguida ele complementou “se bem que o Brasil é muito grande, né?”, questionando a si mesmo se de fato isso seria uma possibilidade.
Como conclusões preliminares, apontamos que o debate em torno da regulação das plataformas digitais possui grandes implicações sobre a vida e o trabalho dos/as entregadores/as.
Este projeto de pesquisa em curso fará, numa próxima etapa, entrevistas em profundidade com os/as entregadores/as. Entendemos que uma survey é um instrumento importante e preliminar de toda pesquisa empírica, que não pode ser vista como um fim. Como esta e muitas outras pesquisas têm demonstrado, as respostas dos/as entregadores/as são ambíguas e cabe aos cientistas sociais analisarem-nas em sua complexidade.
Nesse sentido, a questão sobre qual seria a melhor forma de regulação da categoria, predominando a opção por um enquadramento como autônomos, MEIs ou por conta própria parece divergir sobre a enorme demanda por melhores condições de trabalho e direitos sociais trabalhistas. Fica evidente, nas respostas e entrevistas realizadas, que os/as trabalhadores/as compreendem a necessidade de que a sua atividade laboral é precarizada e que são necessárias ações para que haja maior limitação no grau de exploração praticado pelas empresas-plataformas digitais.
A continuidade da pesquisa buscará, portanto, compreender esta ambiguidade (autonomia versus direitos sociais) por meio de algumas hipóteses. A primeira delas é que a grande maioria desses/as trabalhadores/as teve como experiência laboral atividades precárias, na informalidade e/ou com carteira assinada. Diferentemente dos países que experimentaram o estado de bem-estar social, o trabalho por contrato estável, com jornada limitada a 40-44 horas, com direitos garantidos e boa remuneração é a exceção e não a regra no mercado de trabalho.
Por conta disso, constituiu-se nos últimos anos um pensamento hegemônico de que o contrato de trabalho – ou, em outras palavras, ser celetistas ou ser fichado – é sinônimo de subordinação a um patrão e, portanto, de sujeição às mais diversas formas de exploração, discriminação, assédio etc. Dessa forma, trabalhar por meio de um aplicativo dá a sensação de não haver uma relação de subordinação e, consequentemente, haveria uma maior liberdade nas escolhas da vida laboral, ainda que isso implique em jornadas excessiva de mais de 14 horas diárias por seis dias por semana.
Outra questão central é compreender o que esses/as trabalhadores/as entendem pela palavra CLT. Parece-nos que há uma falsa dicotomia construída entre direitos sociais/trabalhistas e autonomia, entre enquadramento jurídico como empregado e flexibilidade nas jornadas de trabalho.
Este não é um fenômeno singular ao Brasil. A erosão do mundo do trabalho e a desconstrução de uma identidade em torno do trabalho padronizado e com direitos dos tempos fordistas se intensificou em todo o mundo. Isso tem implicações sobre a subjetividade e a consciência de toda população. No entanto, no caso brasileiro, a polarização mencionada ganhou uma intensificação maior nos últimos meses, em especial no cenário eleitoral de 2022. Assim, a construção de uma agenda de negociação tripartite a partir de janeiro de 2023 – assim como a aplicação de uma survey sobre as percepções dos/as atores/as – estaria marcada pelos impactos do debate eleitoral polarizado.
Cabe ao governo e às partes envolvidas na construção de políticas públicas – incluindo-se aqui o papel dos pesquisadores – ouvir os/as trabalhadores/as de plataformas digitais e colocá-los/as como agentes centrais na construção deste processo de regulação.
Ricardo Colturato Festi, Brenna de Araújo Vilanova, Alceu Fernandes da Costa Neto, Amanda Evelyn Lopes da Silva, Bruno Sprovieri Togni, Caio Henrique Fiuza Moreira, Cícero Muniz Brito, Isabel Roque, João Pedro Inácio Peleja, João Vítor de Araújo Coêlho, Kethury Magalhães dos Santos, Laura Valle Gontijo, Letícia Fragoso, Matheus Rolim Florentino de Paiva, Nicolle Wagner da Silva Gonçalves, Raphael Santos Lapa, Suzi Cristina Paiva de Moura, Tábata Berg.
[1] Trata-se de uma pesquisa mais ampla, que inclui investigações sobre as condições de trabalho de motoristas e entregadores por aplicativos, trabalhadores configurados na categoria de Microempreendedores Individuais (MEIs) e servidores públicos em teletrabalho, sob um olhar comparativo a nível internacional. Este projeto conta com financiamentos provindos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do CAPES-Print e de emendas parlamentares.
[2] O Entorno é o nome dado aos 33 municípios limítrofes (29 goianos e 4 mineiros) do Distrito Federal. Juntos, formam a metrópole da capital brasileira.
[3] Para a aplicação da pesquisa utilizamos a plataforma LimeSurvey. A diferença entre o número de “respostas parciais” (491) e “respostas completas” (247) se deve ao fato de que, muitas vezes, os/as entregadores/as desistem de responder o questionário após abri-lo em seu celular ou ao longo da entrevista presencial.
[4] Projetamos aplicar uma survey com o mesmo objetivo da exposta neste texto entre os motoristas por aplicativos.
[5] A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília (UnB). Protocolo nº CAAE: 69747923.5.0000.5540.
[6] Locais em que as/os entregadoras/res ficam aguardando o seu próximo pedido. Foi uma reivindicação da categoria a criação de pontos de apoio próximos aos principais centros comerciais e de serviços. Este será objeto de outro artigo, mas vale salientar que a grande maioria dos pontos de espera eram precários, muitos sem ao menos um lugar para se sentar, tendo que aguardar em cima da motocicleta ou sentado no chão.
[7] Todo trabalho de campo foi acompanhado de posteriores descrições e relatos por escrito pelos/as pesquisadores/as.
[8] Para fins da pesquisa, considerou-se apenas os municípios com mais de 30 mil habitantes.
[9] A legislação brasileira estabelece como direitos do trabalhador celetista: remuneração; férias proporcionais com acréscimo de um terço; décimo terceiro salário proporcional; repouso semanal remunerado; limitação da jornada de trabalho em até 44 horas semanais, fundo de garantia do tempo de serviço, adicional noturno, vale-transporte, vale-alimentação, aviso prévio, rescisão de contrato, dentre outros (BRASIL, 1943). Ainda que a reforma trabalhista (lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017) tenha alterado significativamente o paradigma constitucional de proteção ao trabalho (MAIOR, 2017a) e tenha jogado por terra conquistas feitas pelos/as trabalhadores/as durante séculos de lutas (DAL ROSSO et al, 2020) – por isso a necessidade de sua revogação -, há muitas proteções mínimas estabelecidas pela lei que ainda permanecem. O trabalhador formal possui ainda os direitos previdenciários (BRASIL, 1991). O trabalhador autônomo e o trabalhador em plataformas digitais, por exemplo, não estão cobertos por essas garantias. Eles estão completamente desprotegidos em uma relação na qual eles são a parte extremamente vulnerável.
[10] A legislação estabelece que são direitos dos segurados: aposentadoria por invalidez, por idade, por tempo de contribuição, especial; auxílio-doença; salário família; salário maternidade; auxílio-acidente. São direitos dos seus dependentes: pensão por morte; auxílio-reclusão. São direitos dos segurados e dependentes: serviço social e reabilitação profissional (BRASIL, 1991).
[11] A remuneração por hora logada no aplicativo parece indicar a necessidade de instituir uma jornada legal de trabalho para esses trabalhadores.
[12] Para esta discussão, ver Dubal (2020), Cant (2019), Alkhatib, Bernstein e Levi (2017), Pires (2021), Oliveira (2021), Lapa (2023), Fontes (2017), Gontijo (2021). Para a discussão sobre impactos do salário por peça nos trabalhadores de modo geral ver Alves (2006), Guanais (2018).
[13] Ver Woodcock e Johnson (2014), Festi (2020) e Roque (2023)
[14] Para fins de garantir o anonimato dos trabalhadores, omitimos os seus nomes verdadeiros.
[15] Essas questões foram identificada em pesquisa anterior realizada pelo grupo de pesquisa, Cf. CUT/INSTITUTO Observatório Social (2021). Para uma análise mais apurada das nossas reflexões, recomendamos o Dossiê O Trabalho em Plataformas Digitais no Brasil, publicado na Revista Laborare, v. 6, n. 10, 2023 e a coletânea Festi (2023). Disponível aqui.
[16] O trabalhador autônomo é definido pela legislação como aquele que “exerce habitualmente, e por conta própria, atividade profissional remunerada; o que presta serviços a diversas empresas, agrupado ou não em sindicato (…); o que presta, sem relação de emprego, serviço de caráter eventual a uma ou mais empresas; o que presta serviço remunerado mediante recibo, em caráter eventual, seja qual for a duração da tarefa” (BRASIL, 1973). Segundo art. 442-B, dado pela reforma trabalhista, “a contratação de autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação” (BRASIL, 2017). Muitos trabalhadores autônomos se formalizam como MEI para obter acesso à garantias previdenciárias.
[17] Quando fomos questionados pelos trabalhadores sobre as propostas entregues ao governo federal sobre a regulação do trabalho em plataformas digitais, mostramos a eles as propostas protocoladas por algumas Centrais Sindicais (CUT, CTB, Conlutas), pela Integra Brasil, pela FENASMAPP e pelos pesquisadores Paula Freitas, José Dari Krein, Ana Claudia Moreira Cardoso, Sueli Sampaio Damin Custódio e Vanessa Patriota da Fonseca.
[18] A categoria Microempreendedor Individual (MEI) foi criada por meio da Lei nº 128/2008. Trata-se, segundo a legislação, de “trabalhador por conta própria que presta serviços e emite nota fiscal como empresa de pequeno porte comercial” (BRASIL, 2008). Ao se tornar MEI, o trabalhador passa a contribuir com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) obtendo acesso a direitos previdenciários, como aposentadoria por invalidez, salário-maternidade, auxílio-doença, dentre outros.
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