14 Julho 2023
"A obediência cristã é sempre uma escuta que procura compreender o que é pedido, é um confronto no contexto de uma relação, é a procura de um discernimento que só deve realizar quem é acompanhado e não o acompanhante", escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Vita Pastorale, 13-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na última década, não só têm sido frequentemente denunciados abusos sexuais contra menores, como é cada vez mais utilizada a expressão "abusos espirituais", especialmente na vida religiosa ou no acompanhamento espiritual. Quem conhece as antigas e veneráveis regras monásticas, a começar pela de São Bento, encontrará aí descritas atitudes da autoridade que hoje poderiam ser lidas como abusos, como a imposição de determinadas penitências corporais, a exclusão à mesa comum ou à oração coral; e, em outras regras, vigílias, horas exaustivas de oração, jejuns prolongados, exorcismos, punições físicas. Eu mesmo tive oportunidade de ver em alguns mosteiros beneditinos o abade batendo nas mãos do monge pecador estendidas no scriptorium com uma vareta, ou a reclusão em uma cela por alguns dias.
Mas o que realmente me deixa perplexo é que, ultimamente, com a expressão "abuso espiritual" na verdade também são indicadas simples sensações, emoções, e não fatos, ou seja, ações e palavras precisas por parte do suposto abusador. Hoje, para atingir uma pessoa, principalmente a autoridade, recorre-se à acusação de subjugação, de manipulação, sem saber indicar concretamente os comportamentos que enganam ou dominam.
Acima de tudo, não se leva em consideração que aqueles que fazem essas acusações são muitas vezes pessoas frágeis, sempre inclinadas a atribuir a causa de seu sofrimento a outros e, sobretudo, à autoridade.
De fato, não basta sentir-se oprimido, desconfortável ou ter medo da autoridade para poder se dizer vítima de abuso. Infelizmente, aqueles que sofreram opressão na família facilmente na vida religiosa, na comunidade ou no novo núcleo de convivência acusarão quem está perto de oprimi-los.
Certamente nas comunidades é preciso ser muito vigilante sobre a relação entre autoridade e membros individuais: a autoridade deve ser capaz de perceber se o sujeito é uma pessoa autônoma ou se vive um estado de fragilidade em que busca confirmações, ou mesmo alguém que tome decisões em seu lugar. Nesse caso, a autoridade nunca deveria se sentir no direito de pressionar em uma direção! Mais ainda, nunca chegar ao ponto de dizer: “Esta é a vontade de Deus para a sua vida. É isso que o Senhor quer de você”. Essas palavras já constituem um abuso por si só, uma substituição do Senhor pela autoridade, que nesse caso deveria antes escutar, ficar em silêncio, referir-se ao Evangelho, o único que pode iluminar, indicar instrumentos de discernimento!
Abuso espiritual ou abuso de consciência? Não quero alimentar discussões sobre o adjetivo “espiritual” aplicado aos abusos, mas prefiro chamá-los de “abusos de consciência”, como sempre fez o Papa Francisco ao evocá-los. Na verdade, os abusos são psicológicos, físicos ou sexuais e, mesmo que ocorram em um contexto religioso, não deveriam ser qualificados como "espirituais", porque só o que é obra do Espírito Santo é "espiritual". Mas o que é o abuso de consciência? É aquela ação, aquela atitude que humilha o irmão, a irmã, e a/o limita em sua liberdade humana. É, portanto, uma ação típica da má autoridade, de uma autoridade que não obedece ao Evangelho porque infunde desconfiança em si mesmos e confiança apenas naquele ou naquela que a exerce. O abuso é qualquer tentativa de controle das consciências, quando, por exemplo, se pretende uma abertura do coração que não seja livre e espontânea.
Mas se a autoridade faz crescer, então não manipula, não substitui a consciência do irmão e da irmã, e no acompanhamento espiritual coloca perguntas, desperta questionamentos, sem impor, sem pretender falar em nome de Deus. Deixemos a “obediência cega” para os ditados maximalistas dos padres do deserto! A obediência cristã é sempre uma escuta que procura compreender o que é pedido, é um confronto no contexto de uma relação, é a procura de um discernimento que só deve realizar quem é acompanhado e não o acompanhante. Este último tem a função de questionar, levantar suspeitas, deve tornar-se eco do Evangelho, mas também deve dar um passo atrás no momento do juízo, quando somente a consciência de quem é acompanhado deve poder se expressar em liberdade.
Abusos de autoridade na vida religiosa. Existem comportamentos que representam verdadeiros abusos de autoridade que já encontrei na vida religiosa: quando se acusa alguém de um pecado ou de uma ação contrária à Regra e se divulga o caso entre os irmãos e as irmãs; quando quem preside não se interessa pelo trabalho e pelas tarefas dos membros de uma comunidade e, portanto, não os apoia na vida cotidiana, nem considera o resultado de seus esforços; quando uma autoridade, para não receber críticas, não convoca ou silencia o Capítulo ou dele exclui alguém que tenha direito; quando não observa o Estatuto quanto ao Ordo de reuniões, assembleias, capítulos; quando humilha um irmão ou irmã na frente de todos. São abusos graves que infelizmente acontecem e são concretos, testemunháveis, não fruto de mexericos ou palavras soltas caluniosas.
Abusos de consciência gravíssimos são aqueles de uma autoridade que chega a afirmar: "Deus lhe fala!". Essas são blasfêmias! Se aquele que exerce a autoridade pretende ter estabelecido um relacionamento especial com o Senhor, então ele não apenas carece de humildade, mas se torna perigoso para aqueles que o escutam. Nunca se pode dizer ter recebido uma sugestão do Espírito em oração e de saber o que é bom para a pessoa que se dirige a nós. Diziam isso, talvez com outras palavras, os diretores espirituais de antigamente: "O Espírito Santo não fala com você, mas me sugeriu que eu o convidasse a seguir esta vocação!". Em todo caso, é preciso ter cuidado para nunca misturar o acompanhamento espiritual à confissão dos pecados (sacramento), assim como é bom que o superior nunca seja o confessor na comunidade.
Além desses, há abusos que dizem respeito à dinâmica de uma vida comum. É abuso de autoridade não permitir que irmãos e irmãs falem entre si, proibir críticas a quem lidera, aos responsáveis e à vida da comunidade. É um abuso qualquer restrição destinada a evitar que se saiba no exterior o que está acontecendo internamente, uma tentação sectária sempre presente. Não deve haver segredos, certamente a discrição em relação às pessoas é necessária, mas não em relação à "comunidade". Um abuso, infelizmente ainda presente em muitas comunidades, é aquele do controle pela autoridade ou pelo responsável pela formação sobre a vida dos irmãos e irmãs: o controle do correio, atualmente também o controle do uso da Internet e da correspondência, controle das relações mantidas com os hóspedes e restrição das relações mesmo que se trate de amizades livres e transparentes.
Para evitar o abuso, é essencial que o poder não se concentre nas mãos de uma única pessoa. Por isso, as instituições ordinárias da vida religiosa fornecem contrapoderes": a regra de vida, as constituições... Na realidade, haverá uma proteção eficaz contra os abusos quando se chegará de uma real divisão de poderes na comunidade. E com um órgão a invocar em caso de abusos e injustiças, que tenha a função de advertir e corrigir também a autoridade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como evitar o abuso de consciência e de poder. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU